Que se comece por explicar que este não é um perfil como tantos outros. Pela história, pela nuance da veracidade dos factos, pela situação particular de que se trata de um ser humano que foi dado como executado por um pelotão de fuzilamento e que mais tarde acabou por aparecer em discursos à nação em direto. Portanto, há que ter em mente que se trata de informação proveniente da Coreia do Norte e, como na esmagadora maioria da informação que de lá advém, é difícil começar um artigo sem utilizar inúmeras vezes o termo “alegadamente”. Para rematar: este primeiro parágrafo, ainda que seja um plágio à Slate, não deixa de ser pertinente por todas as razões supramencionadas.
Segundo o dicionário da Priberam, o substantivo masculino “rumor” pode significar: a) Ruído surdo e confuso; b) [Figurado] Murmúrio geral proveniente de indignação ou de descontentamento; c) Ruído confuso de muitas vozes; d) Fama, notícia.
Ora, se houvesse um diagrama para interpretar as notícias sobre a Coreia do Norte, estas seriam certamente algumas das suas linhas condutoras. Não há grande dúvida quanto a isso. Assim, os contornos da história da alegada ex-namorada do líder norte-coreano não fogem a esta esquemática. E é difícil começar simplesmente por um vulgo “nascida em”; primeiro, porque não é possível; depois, porque é preciso contextualizar e explicar porque razão a imprensa, nomeadamente a sul-coreana, lhe anda a dedicar várias linhas.
Escreve o Korean Herald, publicação sul-coreana em língua inglesa, que é crível que Hyon Song-wol esteja na casa dos 40 anos e tenha estado romanticamente envolvida com Kim no início dos anos 2000, quando ambos se encontravam a vivenciar os périplos próprios da adolescência. Alegadamente. E representa o autêntico enigma que é a cultura popular do seu país de origem.
Hyon Song-wol tem aguçado a curiosidade da imprensa da Coreia do Sul desde que se sentou na mesa de negociações entre as duas nações e que levou a que a Coreia do Norte aceitasse participar nos Jogos Olímpicos de Inverno que vão decorrer entre 9 a 25 de fevereiro em PyeongChang, que fica cerca de 80 quilómetros a sul da zona desmilitarizada, que divide a península coreana.
O acordo entre Pyongyang e Seul, que estão tecnicamente em guerra há mais de 65 anos, para as Olimpíadas de Inverno foi possível depois de o líder norte-coreano, Kim Jong-un, ter levantado a possibilidade, durante a sua mensagem de Ano Novo, de a Coreia do Norte enviar uma delegação à competição.
São 22 os atletas norte-coreanos que vão competir nos Jogos Olímpicos de Inverno na cidade sul-coreana de PyeongChang, divididos em cinco modalidades desportivas, incluindo numa equipa feminina conjunta de hóquei no gelo, composta por atletas das duas Coreias. A delegação de Pyongyang vai integrar ainda 24 treinadores e representantes oficiais.
A delegação artística da Coreia do Norte, composta por sete pessoas, será chefiada por Hyon Song-wol. Esta foi recebida entusiasticamente e numa autêntica apoteose (de curiosidade). É a primeira figura pública do Norte a visitar o Sul nos últimos quatro anos.
Líder das Moranbong Band, um super grupo norte-coreano feminino bastante popular no país, Hyon atravessou a militarizada fronteira entre as duas coreias para preparar tudo aquilo que é necessário para apresentar da melhor maneira a comitiva de 140 pessoas de Samjiyon, na Coreia do Norte, que vai viajar até à Coreia do Sul para disputar os Jogos de Inverno. A sua “trupe da arte”, assim lhe chama a imprensa internacional, vai dar dois espetáculos: um em Seoul e outro em Gangneung.
Mas quem é afinal Hyon Song-wol? Em 2014, o New York Times, passou em revista o trajeto da cantora e resume, se bem que num contexto diferente, o porquê da recente onda de curiosidade: “Hyon Song-wol não é bem a versão norte-coreana da Beyoncé. Mas como cantora popular e líder da girls band mais conhecida da nação, que frequentemente atua em mini-saias, atrai bastante atenção.”
Esta segunda-feira, dia 22 de janeiro, marca o regresso da estrela pop a Pyongyang após duas visitas para conhecer as instalações onde vão ocorrer os espetáculos. Não teceu qualquer comentário quando passou pelos repórteres, curiosos e toda uma barreira de flashs. E de acordo com a agência de notícias da Coreia do Sul, a Yonhap, à saída do hotel onde se encontrava hospedada, estava um autêntico mar de gente à sua espera. Mas os jornalistas apenas receberam um “sorriso subtil” às questões que iam lançando.
O rosto de Hyon, de acordo com a CNN, não só fez as manchetes das revistas e jornais, como abria e fechava noticiários. Este escrutínio sobre a sua personalidade — ou a falta de noção acerca dela — chegou ao ponto de uma TV fazer uma peça sobre a sua preferência gastronómica; pelo que imprensa conseguiu deslindar, Hyon foi avistada a comer Haejangguk (a “sopa coreana da ressaca”) e outra estação frisou (analisando) que parece ter uma predileção por… café.
Este súbito interesse tem duas realidades. Especialmente para a atriz principal. É que na Coreia do Norte não existem paparazzis e notícias cor de rosa. E o seu papel na preparação que antecedem os Jogos de inverno não teve grande cobertura no país de origem, segundo a Associated Press. Mas na Coreia do Sul está a ter a atenção de uma verdadeira estrela de K-Pop (Pop Coreana, lê-se “Kei Pop”).
A sua passagem, no entanto, não agradou a todos. Se bem que pode ter sido o primeiro encontro entre as duas nações, cara a cara, nos últimos dois anos, existiram vozes de protestos, com sul-coreanos e ativistas a queimar retratos de Kim Jung-un e bandeiras da Coreia do Norte.
A música, a política e o romance com Kim Jung-un
Durante as negociações das Coreias, na descrição do cargo de Hyon, não estava, no entanto, “líder das Moranbong Band”. A sua função era tida como a “Líder da Orquestra”, de acordo com o Korean Herald (KH).
Em 2017, explica o mesmo artigo do KH, foi apontada como membro alternativo do Comité Central do Partido dos Trabalhadores da Coreia (PTC), o partido do governo, assim como ostenta o cargo de Coronel do Exército Popular da Coreia do Norte.
Se tomarmos por verdadeiras as principais suspeitas, a relação da cantora com Kim Jong-un aconteceu há quase duas décadas. Os rumores ditam que os dois se conhecem desde a adolescência e que iniciaram um romance quando Kim regressou da Suíça, onde estudou numa escola privada, no início dos anos 2000. No entanto, tiveram que se separar por ordem de Kim Jong-il, pai de Kim, que não aprovava a relação. Assim, a cantora terá casado, em 2006, com um soldado do Exército e Kim Jong-un fez o mesmo com Ri Sol-ju, a sua esposa desde 2009. Só que com a morte de Jong-il, em 2011, Kim Jong-un terá reatado a relação. Alegadamente.
(Cabe ainda a curiosidade que ambas fizeram parte da Orquestra Unhasu, um grupo musical de Pyongyang — que inclusivamente tem direito a uma sala para as suas performances. O seu som é vincado primordialmente por instrumentos ocidentais, mas por vezes atuam juntamente com artistas de música tradicional coreana. E foi precisamente por esta razão/coincidência que se iniciaram os rumores da sua morte/assassinato, que aprofundaremos uns parágrafos abaixo.)
A carreira de Hyon no mundo da música remonta aos anos que coincidem com o seu envolvimento com Kim. Nos primeiros anos de 2000, era uma das vozes das Pochonbo Electronic Ensemble, também este um grupo pop que tem a particularidade de, mais uma vez, ter sido criado pelo líder de Pyongyang. A banda tinha presenças assíduas nos maiores eventos do partido do Estado e o estilo militar (ocidentalizado) ousado, a par com as mini-saias, contrastavam com a alegada mentalidade do regime.
Mais tarde, mas no mesmo registo, acontecem as Moranbong Band, i.e, as Spice Girls norte-coreanas, segundo um artigo da Fortune. Alegadamente, este super-grupo do género pop, faz as delícias de Kim Jong-un. E Hyon Song-wol é uma das que compõem o seu elenco. Assim como todas elas foram escolhidas a dedo pelo líder da Coreia da Norte.
Não é certo quantos membros formam a banda. Segundo a Time, há fontes que indicam que são 10, mas existem outras que sugerem que são mais de 20. No entanto, a revista escreve que revolucionaram a cena musical norte-coreana com as suas interpretações de alguns sucessos ocidentais como "My Way", de Frank Sinatra, ou a música principal da banda sonora do filme "Rocky", com um toque especial de violinos elétricos.
O assassinato que correu o mundo, mas que não aconteceu
Não é fácil descortinar aquilo que é ou não verdadeiro sobre as notícias que provêm da Coreia do Norte. Uma das razões para que isto aconteça é o misticismo que advém dos poucos relatos e testemunhos que de lá chegam. E se por um lado é fácil julgar mediante esses relatos, jazem rumores que, até mesmo para o regime de Kim Jung-un, parecem improváveis.
A encabeçar esta lista, a par da existência de unicórnios, talvez se encontre o assassinato de Hyon Song-wol. A história rendeu inúmeras partilhas nas redes sociais, gerou uma quantidade de discussões, mas o tempo acabou por ditar uma verdade completamente diferente. O The Washington Post (TWP), em 2014, fez um apanhado de como tudo terá começado.
No dia 29 de agosto de 2013, o jornal sul coreano Chosun Ilbo, que o The Washington Post põe na linha dos conservadores, publicou uma peça em que detalhava o episódio em que Kim Jong-un e uma mulher, de seu nome Hyon Song-wol, estariam, alegadamente, numa relação amorosa. Porém, o mesmo Kim tinha dado ordens para que fosse executada devido a um escândalo.
Citando fontes chinesas, mas sem, no entanto, as identificar, a publicação sugeriu que a cantora tinha sido assassinada porque ela e outros músicos teriam vendido pornografia em que os próprios eram protagonistas. Mais: tinham na sua passe “exemplares da Bíblia” e foram “tratados como dissidentes políticos”.
O jornal sul-coreano, um dos com maior tiragem na Coreia do Sul, afirmou que Hyon Song-wol foi detida a 18 de agosto, por violação das leis norte-coreanas contra a pornografia. A cantora teria sido executada, em público, três dias depois.
Além de Hyon Song-wol, teriam sido condenadas à morte mais 11 pessoas, alguns que também pertenciam à orquestra Unhasu, e músicos e bailarinos do grupo Wangjaesan Light Music Band, referia o jornal, citando fontes chinesas.
O mesmo artigo continua e explica que a The Atlantic, o Huffington Post e o The Telegraph tenham feito notícia sobre o assunto. “Hyon Song Wol, ex-namorada de Kim Jong-un, terá sido executada por fazer uma Sex Tape” ou “Ex-amante de Kim Jong-un executada por pelotão de fuzilamento”, foram os respetivos títulos. Na altura, foi um autêntico frenesim de notícias sobre o assunto.
Até que o site Daily Dot publicou um vídeo de três mulheres coreanas a dançar música ocidental que podia estar na origem da execução da artista. Nesse artigo, é explicado que um utilizador do site de partilha de vídeos chinês YouKu, fez o upload da alegada “sex tape”, que na verdade poderá ser apenas uma performance da música “Aloha Oe”, de Elvis Presley.
O vídeo rapidamente chamou a atenção dos media chineses, sendo que não foi preciso esperar para soarem os primeiros ecos internacionais. No entanto, a história da execução, assim como toda a sua legitimidade, era praticamente impossível de confirmar ou verificar. Pelo menos, durante uns meses. Mas a notícia já tinha criado imenso burburinho.
Em maio do ano seguinte, em 2014, a ex-namorada que virou ex-estrela-de-vídeo-para adultos-que-acabou-executada, regressa ao mundo dos vivos para fazer um discurso num dia em que os artistas nacionais se reuniram. E com a sua ressurreição morreu também um dos mitos sobre a Coreia do Norte.
“Três milhões de mortos é uma estatística, mas uma estrela porno morta é uma manchete”, afirmou Joshua Stanton, um veterano analista daquele território, segundo o The Washington Post, com quem trocou correspondência. “Existem outras histórias horríveis e sensacionalistas que afetam vidas norte-coreanas e que não chegam ao radar noticioso porque não tem o apelo sexista ou sádico”, revelou.
Toda esta história levantou dúvidas, mas quando o jornal japonês The Asahi Shimbun, uma referência do país, e vários órgãos da Coreia do Sul, deram força ao rumor e pernas para este se espalhar. Muito em parte por causa de uma fonte. Alegadamente, um espião de Seul, Nam Jae-joon, haveria dito, na altura, que estava a “a par” da alegada execução.
“Nós estamos a par da execução de algumas 10 pessoas associadas à Orquestra de Unhasu”, disseram dois elementos do Ministério Público citadas por Nam Jae-joon, numa sessão à porta fechada do parlamento, de acordo com a agência de notícias sul-coreana, Yonhap.
O The Asahi Shimbun referiu que a ordem para executar os membros da orquestra tinha sido dada para prevenir que se espalhassem rumores que pudessem afetar a reputação da primeira-dama da Coreia do Norte, Ri Sol-ju; é que também ela foi cantora, fez parte da Orquestra e partilhou o palco com Hyon Song-Wol.
Só que a Coreia do Norte condenou veemente todas estas alegações, considerando-as como sendo um crime “imperdoável”. A KCNA, a agência de notícias estatal da Coreia do Norte, emitiu inclusivamente um comunicado em que afirmou que os relatórios sobre a execução eram um trabalho de “psicopatas” e “maníacos da confrontação” que estariam ligados ao governo de Seul e aos media.
“Isto é imperdoável, uma provocação horrível que magoava a dignidade do supremo líder”, revelou a KCNA.
Para terminar com os rumores — pelo que se assume —, mais tarde, a rádio da Coreia do Norte emitiu um concerto da dita orquestra.
Aquela vez em assumiu o papel de Primeira-Dama
Setembro, 2012. A imprensa ficou intrigada com uma mulher ‘misteriosa’ que surge ao lado de Kim Jong-un.
A identidade da mulher que surgiu ao lado do líder da Coreia do Norte, um dos países mais fechados do mundo, levou a que muitos se interrogassem quem seria a misteriosa personalidade: sua irmã, mulher ou amante? Havia uma aposta tripla.
Tudo começa quando a televisão norte-coreana mostrou imagens de uma jovem mulher ao lado de Kim Jong-un, durante uma homenagem a Kim Il-sung, avô do atual dirigente e fundador da Coreia do Norte, que morreu em 1994.
O líder norte-coreano, que assumiu as rédeas do país em dezembro desse ano, na sequência da morte do seu pai, Kim Jong-il, fez-se acompanhar por outras personalidades, entre os quais o número dois do regime, Kim Yong-nam, e o chefe do exército, Ri Yong-Ho, mas ao seu lado esteve uma mulher entre os 20 e 30 anos de idade.
A jovem "misteriosa" também apareceu com Kim Jong-un num concerto dado pela Orquestra Nacional, segundo as fotos da imprensa oficial. Nelas surge de cabelo curto e vestida de preto.
Os jornais sul-coreanos muito especularam sobre a identidade da mulher e as opiniões dividiram-se. Uns entenderam que se tratava da irmã mais nova do dirigente norte-coreano, Yo-jong, também educada na Suíça nos anos 90, enquanto para outros tratava-se simplesmente da companheira de Kim Jong-un, Ri Sol-un.
Estas e outras interrogações refletem o secretismo em que está envolto, de uma forma geral, o país e, em particular, os seus dirigentes. A idade de Kim Jong-un, por exemplo, não é conhecida, ainda que a imprensa sul-coreana estime que tenha menos de 30 anos.
Para o jornal sul-coreano JoongAng Ilbo, a mulher misteriosa poderá também ser Hyon Song-Wol. Na altura, de acordo com a agência Lusa, a publicação escreveu que as altas esferas da sociedade norte-coreana acreditam que esta é, ou foi, de facto, sua amante.
"Hyon [Song-Wol] é amiga de Kim [Jong-un] desde a adolescência e o rumor que corre entre as elites norte-coreanas é de que é amante dele", diz o diário, citando fonte dos serviços secretos sul-coreanos.
Só que Yang Moo-Jin, da Universidade de Estudos Norte-Coreanos, em Seul, estima ser "pouco provável" que a mulher misteriosa seja amante do jovem líder, isto porque as "primeiras-damas" norte-coreanas raramente aparecem em público.
O mesmo académico acredita que poderá ser sua irmã ou "filha de uma das amantes do antigo líder da Coreia do Norte, permitindo a Kim Jong-un mostrar uma manifestação de solidariedade no seio do seu clã de dirigentes.
Começámos por dizer que este não era um perfil como os outros, lembram-se?
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