Há uma piada recorrente, que brotou do lado mais absurdista da cultura da Internet (cultura essa onde aquilo que constitui “humor” pode, por vezes, soar absolutamente incompreensível a mentes menos conectadas), que determina que Leiria, a cidade, região, capital de distrito não existe. A piada gerou memes, criou páginas, alimentou petições, incentivou canções. A sua origem está por determinar com factualidade, o que não impediu que se espalhasse por plataformas como o Reddit ou o Twitter. E, se quisermos ser honestos, nem sequer é uma graçola original: na Alemanha tornou-se popular, nos anos 90, uma teoria da conspiração (satírica, evidentemente) que nos diz que a cidade de Bielefeld, no noroeste do país, também não existe, o que foi posteriormente aproveitado como slogan turístico. Regiões como o Acre (Brasil), Tlaxcala (México), Drenthe (Países Baixos) ou toda a Finlândia também já foram encaradas com o mesmo grau de “cepticismo”.
Escusado será dizer que, como é óbvio, Leiria existe. Em termos culturais, tem existido há séculos, tendo sido berço para o poeta Francisco Rodrigues Lobo, que hoje dá o seu nome à praça central da cidade. No que à música diz respeito, basta viajar até aos anos 90, quando um cometa chamado Silence 4 explodiu por todo o território nacional, provando que era possível a uma banda portuguesa ter sucesso cantando em inglês. Basta constatar o que o Entremuralhas, dentro e fora do Castelo de Leiria, tem feito pela cidade. Mais recentemente, basta olhar para o que editoras como a Omnichord (“casa” dos First Breath After Coma, Nice Weather For Ducks ou Surma) têm feito. O ComPasso de Música, iniciativa que decorreu este fim de semana, ao longo de 25 horas ininterruptas, foi mais um exemplo da existência de Leiria. Mas foi, sobretudo, um exemplo da existência da cultura fora da Grande Lisboa e dos grandes festivais de verão.
Organizado pela Comunidade Intermunicipal da Região de Leiria, com financiamento do programa CENTRO2020, o ComPasso de Música conheceu agora a sua primeira edição, e já se sabe quem acolherá as próximas: Porto de Mós e Castanheira de Pêra, em 2023 e 2024 respetivamente.
«Houve o desafio de criar um conceito que pudesse nascer aqui em Leiria, e circular pelos outros municípios da Comunidade Intermunicipal», explicou-nos Hugo Ferreira, mentor da Omnichord, depois de assistirmos no Mercado Municipal a um concerto de acordeão, às 4h da madrugada (insere-se esta nota para que o leitor perceba que este era, de facto, um festival diferente). «Há muitos festivais, há muitos concertos... E aqui a ideia foi, sobretudo, tentar ter propostas que pudessem ser para todos os públicos, abranger locais “normais” ou “habituais” e outros locais inóspitos», bem como mostrar que «a música pode ser, também, algo que ocupe todas as horas; não tem que ser só um concerto para crianças à tarde, ou um concerto para adultos à noite».
Tanto era para todos os públicos que por aqui se escutaram, no espaço de 25 horas, as canções de Paulo de Carvalho, o pop/rock de David Fonseca, a eletrónica punk de Catnapp, os tambores dos Tócandar e o jazz cósmico da Sun Ra Arkestra, só para dar alguns exemplos. Dividindo-se entre concertos gratuitos e concertos pagos (como os de Paulo de Carvalho e os da Arkestra, no Teatro José Lúcio da Silva), a primeira edição do ComPasso de Música foi uma vitória para todos quantos gostam de escutar – e, claro, também para a organização. «O balanço é extremamente positivo», afiançou-nos Hugo Ferreira. «Obviamente que temos um ponto alto, que é o David Fonseca, que também sabíamos à partida que tinha tudo para correr bem. Mas é muito interessante ver como temos 60 ou 70 pessoas a ver um acordeão às 4h da manhã... Quando pensámos nisto, ao início, pensámos “não vai estar ninguém”»... Mas já estamos a saltar etapas: há que contar a história do festival, com a mesma forma cronológica que o seu formato exigia.
19h04 (sábado) – Os Bezbog tomaram os seus lugares, sob o olhar atento dos santos que decoram as paredes interiores da Igreja da Misericórdia de Leiria, primeiro ponto de passagem deste ComPasso de Música. A escolha deste local para a sua atuação era óbvia: este ano, os Bezbog lançaram, através da Favela Discos, um novo álbum intitulado “Dahzbog”, homenagem a um deus da mitologia eslava com esse nome. O saxofone começou por emitir um drone, sobre o qual eram construídos, pouco depois, alguns lampejos de melodia, tudo soando – e nisto a acústica ajudou – a uma orquestra imensa de valquírias, que se dissipou para dar lugar a um chilrear eletrónico.
Vê-los ao vivo foi como acompanhar uma partida de xadrez musical, cada músico estudando a sua próxima jogada, e a do adversário, tentando perceber como poderia provocar o xeque-mate, no caso a construção de uma música sem alcunhas, recorrendo para tal ao sax, à tarola ou ao sampler. A linguagem musical soou tão alienígena que quase que podia ser uma resposta à Mensagem de Arecibo...
20h05 – Hey, hey, Dee Dee, take me back to Piauí... O coro da canção de Juca Chaves convidou o público a sonhar com outras paisagens, tão quentes quanto esta. Os Quiabos Dançantes, dupla de DJs que levou as chamadas “músicas do mundo” ao Centro Cívico de Leiria, começaram por se focar num Brasil imenso, o mesmo 'País Tropical' de Jorge Ben Jor, que também por aqui se ouviu. Algumas famílias com carrinhos de bebé, uma ou outra pessoa que arrisca um passito de dança, crianças a jogar à bola. Dentro do Centro, as paredes prestam homenagem aos filhos da cidade: Silence 4, Surma, Fade In, Omnichord, Jerónimo, Rancho Típico da Boa Vista, Grupo Coral do Arrabal. Aproveitou-se para conhecer ruas e ruelas, deixar que as melodias nos procurassem.
21h07 – As cortinas do Teatro José Lúcio da Silva abriram-se para dar as boas-vindas a Paulo de Carvalho, que cumpre este ano seis décadas de uma bonita carreira, recheada de canções que não fazem apenas parte do repertório nacional: fazem também parte da história, da mais bonita das revoluções. O público, que preencheu o Teatro, parecia tê-lo acompanhado ao longo dessas mesmas seis décadas – mas, de espírito, seriam tão jovens quanto o próprio Paulo de Carvalho. «Bem-vindos a esta vossa casa. Eu é que sou o convidado», começou por dizer, num misto de simpatia e charme.
Saltou à vista a genica com que Paulo de Carvalho ainda se apresenta em palco, que andou de braço dado com um enormíssimo sentido de humor. E, naturalmente, as canções, algumas com arranjos distintos daqueles que se escutam em disco. 'Flor Sem Tempo', por exemplo, que em 1971 entrava no campo da “música ligeira” e que ganhou aqui um groove dançável, meio funky, que só não levantou gente das cadeiras porque não havia vontade nem espaço. Em 'Executivo', aponta para o guitarrista que o acompanha, procurando chamar a atenção dos presentes para o magnífico solo blues que dali emana. Depois do rock n' roll, o aviso: «acabou-se a energia por hoje, agora é só canções para ir para a cama»...
'Terra Mãe', tema suave com letra libertária, foi a primeira. A ela seguiu-se 'Os Meninos de Huambo', fortemente aplaudida. É daquele género de canções que os pais cantavam aos filhos, antes de os deitarem, o que vai de encontro à graçola do músico – que não deixou de mandar «um abraço ao povo de Angola», em tempo de pós-eleições. O blues voltaria com 'O Homem Das Castanhas', com o obrigatório saravá a Carlos do Carmo. Aquele fado transformado em eletricidade provocou faísca, antes de uma versão mais tradicional de um outro clássico, 'Os Putos'.
Até ao final, interpretaria 'Fado Meu' com um convidado, o cantor leiriense João Miguel, faria referências bem-humoradas a «um tal de Agir» e daria o mote para o restante ComPasso de Música, nomeadamente para quem ainda ficaria horas e horas acordado: «Nós temos um defeito muito grande: gostamos de música». 'Nini Dos Meus Quinze Anos', cantada e aplaudida de pé pela plateia, e 'E Depois do Adeus' colocaram um ponto final num concerto que não deve ser pensado como uma prova de vida. Isso dá a entender que Paulo de Carvalho esteve escondido ou esquecido, quando na verdade sempre esteve entre nós, mesmo quando não nos apercebíamos da sua presença.
23h05 – A multidão preencheu todo e qualquer canto do Jardim Luís de Camões, aproveitando a gratuidade do espetáculo. Este não era, no entanto, um caso típico de “ir por ser de borla”; quem estava a entrar em palco era, no fim de contas, um dos filhos maiores da cidade, o homem que mostrou que não há que ter medo em fazer música e ser bilingue, David Fonseca. Acompanhado pela sua banda, munido de uma guitarra e de um fato meio colorido, o músico terá tido aqui um dos concertos mais fáceis da sua carreira, visto que a plateia estava conquistada à partida. O que não o impediu de se entregar ao trabalho com a energia que se lhe conhece, colocando-se em cima do monitor para um «boa noite, Leiria!» logo em 'Chasing the Light', tema presente no seu novo álbum, “Living Room Bohemian Apocalypse”.
Nem um pequeno percalço em 'Someone That Cannot Love' – a guitarra estava desafinada – estragou um espetáculo feito a partir de muitos temas novos e alguns mais consagrados, e também do bom humor. 'Ela Gosta de Mim Assim' apelou à participação do público, com David Fonseca a pedir para se ouvirem apenas os homens («senhoras, por uma vez na vida deixem-nos falar», ironizou). Pelo meio, António Variações voltou a viver através da sua voz, com 'O Corpo É Que Paga' e 'Quero É Viver', deixando-nos a pensar que um eventual regresso dos Humanos não seria algo assim tão descabido. E houve 'Futuro Eu', espécie de Madchester (ou será Lischester?) dançável, ideal para um evento cujo hino poderia muito bem ser '24 Hour Party People', dos Happy Mondays. O que mais espantou, no entanto, foi uma interpolação de 'Running Up That Hill', de Kate Bush, cantada a plenos pulmões por um grupo de meninas empoleiradas num muro de forma a poder ver melhor o palco: “Stranger Things” anda de facto a fazer muito pela boa música.
A apoteose ficou reservada para o momento em que uma canção, gravada pela primeira vez no Castelo de Leiria, conforme explicou David Fonseca (que, do palco, tinha vista privilegiada para o mesmo), deu um enormíssimo ar da sua graça: 'Borrow', dos Silence 4, cujo refrão foi entoado com gosto pelos presentes. Uma rockalhada improvisada cujos únicos versos eram 'Leiria! Leiria!' abriu, logo a seguir, espaço para 'As It Was', canção de Harry Styles que tem sido incluída nos alinhamentos do músico em homenagem a um jovem fã. O final, com 'The 80's', confettis esvoaçando pelo Jardim, deixou mais que satisfeitas as centenas de pessoas que viveram uma noite de sábado diferente. Outros continuariam a vivê-la...
01h22 (domingo) – Com um sample de 'Ready Or Not', dos Fugees, a ressoar pelo espaço, Isa Leen deu início a um concerto de eletrónica ruidosa, música de dança desconstruída à qual juntou a voz que já lhe conhecíamos via Grandfather's House. A artista portuguesa não contou com uma plateia considerável na pista da Stereogun (valha a verdade, esta não é uma música para gente tenrinha), mas quem esteve foi-se bamboleando juntamente com ela, em mais um espetáculo de apresentação do seu novo trabalho e roupagem sonora. Catnapp, argentina radicada em Berlim, começou com um tiquetaque e uma voz processada, até entrar em terrenos drill n' bass – dança-se, mas também se teme, e sente-se a força de palavras que foram cuspidas como tags grafitados em estações ferroviárias. Sob um manto de luzes epilépticas, Catnapp intercalou a agressão com momentos eletrónicos mais infantilizados, à procura da rave ideal.
04h17 – Já depois de DJ Punk (Fausto Sousa, dos 5ª Punkada) ter levado os Dead Kennedys ou os Saints ao bar “Os Filipes”, foi a vez de Pedro Santos dar as boas-vindas à madrugada cerrada, tendo o exterior do Mercado Municipal de Leiria como palco. Ao longe, ainda se escutava um ténue ritmo techno saído da Stereogun. Sentado num pequeno banco, o músico depressa encheu o éter com os tons calorosamente tristes do seu acordeão, tendo pela frente uma plateia de resistentes e/ou aventureiros. Era essa a ideia: a de brindar os resistentes com um acontecimento especial, fazendo com que toda a atuação soasse bem mais comovente do que soaria caso tivesse sido a horas certas. Quem esteve jamais irá esquecer, e arriscamos dizer que o próprio músico, que terminou com temas de Astor Piazzolla (entre eles o clássico 'Libertango'), também não.
05h04 – O Mercado, encerrado aos domingos, abriu portas para uma instalação sonora especial, criada por Luís Antero. Ao cheiro impregnado do peixe e da carne juntaram-se os sons que normalmente se escutam dentro do Mercado, quando este acolhe a azáfama da compra e venda, e até aqueles que normalmente não se escutam, já que não são alvo de amplificação. Não foi esta a única intervenção do paisagista sonoro neste ComPasso de Música. Pouco depois, Antero juntaria pequenos grupos, de dez pessoas cada, para uma caminhada pelas ruas da cidade, em busca do som ou dos sons que a fazem.
Em fila indiana, unidos por headphones, os participantes neste exercício psicogeográfico puderam escutar e, sobretudo, pensar: o que acontece aos sons que habitualmente se reprimem, consciente ou inconscientemente? Continuam lá, como é óbvio. O som de duas pessoas a conversar, ao longe. Os gritos de uma grupeta de adolescentes alcoolizadas a cravar nites. O chuf-chuf dos nossos próprios passos, o tilintar de uma grade de proteção. O chilrear dos pássaros, que se transforma em selva. O drone de uma caixa de eletricidade. Tudo amplificado, com recurso a microfone tornado estetoscópio.
«As vezes somos uma espécie de voyeurs sonoros», murmurou Luís Antero durante a primeira caminhada, mistura entre field recordings (o que foi captado por igualmente gravado, e será lançado pela Omnichord em breve) e realidade virtual aumentada. Isto, que «não é mais que um exercício de escuta», com «o seu quê de poético» (dado que nenhum dos grupos escutou as mesmas coisas), foi sem sombra de dúvida o ponto alto de um festival de música. E usamos a palavra “música” neste contexto porque John Cage mostrou que tudo pode ser música. Basta termos os ouvidos certos.
12h11 – Pouco depois do raiar do sol, Martim Sousa Tavares deu música clássica ao Parque do Avião, colocando no ar quatro peças em quatro pontos emissores que se iam entrecruzando conforme o percurso de quem escutava. A manhã foi entregue às crianças, que puderam tomar contacto com as artes visuais no Centro Cívico, ou ouvir “As Canções da Maria” no Jardim Luís de Camões. O meio-dia fez-se com uma arruada pela cidade, cortesia dos Tocándar. A praça principal foi-se enchendo com o rufar dos tambores, e houve a necessidade de abandonar uma das esplanadas para caminhar na sua direção. Numa ruela, encontrámo-los: quatro pequenos monstros e o ritmo frenético, primevo. Um menino esconde-se debaixo das saias da mãe, assustado com aquelas estranhas figuras, mais travessas que demoníacas. Outros foram acompanhando a banda pelas ruas. Para quem aproveitou a manhã para recuperar algum sono, foi uma boa dose de cafeína.
14h04 - «O conceito é o de uma jam com toda a gente», explicou Surma dentro da caixa-forte do Banco das Artes. Onde outrora se guardavam notas, agora se criaram sons, com recurso aos mais variados instrumentos: baixo elétrico, harpa elétrica, teclados, campainhas. Foi Surma quem disparou o primeiro som, via MPC, mas só um rapazinho a acompanhou ao início; os outros, acompanhados pelos pais, foram perdendo a vergonha, tendo talvez percebido que aquilo era, no fundo, uma loja de brinquedos onde tinham total liberdade para fazer o que muito bem entendessem. O ambiente depressa ficou repleto de uma cacofonia sonora, e o romantismo vislumbrou aqui uma espécie de “momento Sex Pistols em Manchester”: cada uma daquelas crianças a divertirem-se irá, daqui a dez ou quinze anos, formar as suas próprias bandas.
15h02 – Rui Miguel Abreu dá início ao seu DJ set de jazz na praça central, vazia além das esplanadas, que acolhem quem decidiu passar uma bela tarde solarenga de domingo a trocar dois dedos de conversa e talvez outros dois de álcool. As escolhas musicais eram feitas a partir da coleção de vinis de 7'' do jornalista, radialista, professor – há tanto no currículo de Rui Miguel Abreu que francamente não dá para escolher uma só –, e foram tendo eco em alguma pequenada e num par de melómanos que o acompanhou de perto. A fechar, um grande clássico: 'The Revolution Will Not Be Televised', de Gil Scott-Heron. Mas será dançada, espera-se.
17h30 – Pontuais, os leirienses Catraia ocupam os seus respetivos lugares em palco (salvo um pequeno tropeção), para apresentar uma música de tradição portuguesa onde é a voz delicodoce de Inês Bernardo que vai animando as hostes. A canção é a popular, e os populares – que não encheram assim tanto o Jardim Luís de Camões – vão acompanhando timidamente os lá lá lás, sendo que os temas mais mexidos arrancaram pulos à criançada. «Estou muito feliz por estar aqui na nossa cidade», atirou a vocalista, que não disfarçou algum incómodo com o calor e com o facto de estar a levar diretamente com a luz solar. Por entre canções do seu novo álbum, “A Vida É Uma Canção Que Não Se Ensaia”, e algumas mais antigas, como 'Linguarudo' (à qual o clarinete confere uma qualidade traquina), os Catraia ganharam um pacote de pipocas da barraca “Miminhos da Avó” (num momento de product placement genial), mandaram um salvé a um vizinho que costuma acompanhar os seus ensaios e encerraram, com sorrisos, as atividades gratuitas do ComPasso de Música.
19h11 – Sem Marshall Allen, recentemente internado devido a problemas de saúde, a Sun Ra Arkestra aterrou no Teatro José Lúcio da Silva juntamente com Rodrigo Brandão, MC brasileiro residente em Portugal, para colocar um ponto final nestas 25 horas ininterruptas de música. O teatro, que não estava tão composto quanto seria desejável, tendo em conta de que estamos a falar de um ensemble histórico, foi palco para uma sessão de jazz cósmico e fervorosas palavras de ordem, debitadas pelo mais revolucionário dos espíritos que por aqui passaram: Brandão, qual pastor evangélico dirigindo um rebanho munido de vontade de mudar o mundo. Aliás, o próprio definiu a sua atuação, no final da mesma, como «uma missa», dedicada a Allen.
Começou com um cântico entre o tribal, o alienígena e o scat singing, antes de deixar entrar a percussão e os sopros. Depois, as primeiras palavras em português: «tempo não tem casa». A entoação parecia adivinhar uma oferenda a deuses desconhecidos. A música, essa, foi progressivamente crescendo: imagine-se sete tempestades a competir entre si (os sete músicos que compõem esta Arkestra), trocando relâmpagos e clarões, até que decidem unir-se num estrondoso e violento vendaval de fazer mexer o sangue. A mente libertava-se, o ego escondia-se. Mesmo que o seu mentor já não esteja entre nós há quase 30 anos, a Arkestra continua a fazer da comunhão o seu maior valor, puxando-nos para dentro dela. Somos todos um só corpo quando a testemunhamos: «Cada um de nós escolheu estar aqui, agora... Nós estamos juntos. O tempo é nosso e podemos escolher o que fazer com o nosso tempo».
Convocando o público, Rodrigo Brandão conseguiu arrancar alguns gritos, procurando ao longo de uma hora incutir nestes corpos a ideia de que a música é algo sagrado, esperando criar, dentro daquele teatro, uma Zona Autónoma Temporária de que Hakim Bey se pudesse orgulhar. O groove, o ritmo, eram hipnóticos, tanto quanto as palavras – a dada altura, Brandão menciona uma panóplia de acontecimentos históricos, ocorridos neste mesmo 18 de setembro, e era como se estivessemos a escutar a mais bela das poesias.
«De coração, para todo o mundo que luta pela liberdade», a música foi entregue de braço erguido e punho fechado. Descendo do palco, dirigiu-se para junto de cada um dos presentes, adjetivando-os como sol ou estrela, para que todos iluminassem. Os sopros, como o fogo, a percussão, como a sua lenha: vimos aqui um espetáculo capaz de converter até o mais antiteísta dos homens. Sun Ra não morreu, está entre nós, em cada respirar, em cada gesto de bondade e vontade de melhor. A Arkestra, e Brandão, provaram-no uma vez mais. E Leiria não existiria como existe, tivesse a despedida sido feita com qualquer outra coisa, levando-nos a assumir as palavras dos Pet Shop Boys como lema: há que ir para Oeste.
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