Numa altura em que as indústrias criativas discutem se é possível separar a arte do artista, a criação do homem, este “Linha Fantasma” ganha um sentido de metáfora. Reynolds (Daniel Day-Lewis) é “só” um alfaiate, um modista, mas o processo criativo — e a reclusão emocional necessária para verter os sentimentos na produção artística — está todo lá. E esses aspetos, seja no desenho de um vestido, na realização de um filme, na composição de uma música ou na escrita de um texto são idênticos.
Porque produzir algo almejando e disso fazer arte requer uma entrega. Uma dedicação que, por vezes, não se coaduna com as minutas sociais. E assim, o artista, apesar da criação sublime, é um ser irascível. Um ser embrenhado nessa tal missão de dar ao mundo algo belo, algo que não deixe nada como antes se via, algo disruptivo, como acha a moda agora bem dizer.
Esta é essa história. A história do artista e da mulher que o faz ser. Do artista perturbado e da mulher que o não deixa cair, vertiginosamente, num buraco — seja esse buraco o da condenação à obra, ou o da alienação.
Reynolds é o estilista da Casa Woodcock, uma relíquia londrina da moda clássica dos anos 1950, habituada a vestir as famílias reais europeias, a burguesia inglesa e os novos milionários norte-americanos. Ao mundo da moda, contudo, chegam novas ameaças, novos desenhos, novas ideias arrojadas que põem em causa a tradição daquela Casa, mantida por uma rotina monástica, uma cadência mecânica, uma engrenagem laboratorial de costureiras que, nas suas batas brancas, trabalham o pano, puxam as linhas, como quem opera uma maleita qualquer — como se o vestir um corpo fosse o tratar uma ferida.
Nessa construção, um vestido ganha o esplendor de um palácio (os figurinos são da autoria de Mark Bridges, que está nomeado também para os Óscares). Há uma certa monumentalidade nesta arquitetura metódica. O processo depende dela. Da rotina, da manutenção do alinhamento de certos elementos que, assim perfeitamente dispostos, permitem ao artista criar.
A essa cena, juntam-se pormenores descartáveis. É o caso das mulheres que, mais do que musas, assumem o lugar de manequins, de moldes para materializar a criação. Essas mulheres belas, embriagadas pela aura do artista, cedo, porém, perdem o encanto. Porque percebem que são apenas parte do processo, e nunca parte do produto.
É assim que se nos abre o filme. Com uma jovem que reparou ser mero enfeite, um laço pregado numa bainha, um saiote amarrotado num roupeiro. E em reparando que a função desempenhada não é ou fundamental ou sequer necessária, decide ir embora. Sai de casa e abandona Reynolds e a irmã. Não que isso perturbe sequer ligeiramente a linha de montagem. Tudo segue idêntico — embora mais calmo.
Até que, numa estalagem encaixada no norte de Inglaterra, surge Alma (Vicky Krieps) e o mundo do artesão nunca mais é o mesmo. Porque ao contrário das outras, Alma não apenas se nota na casa. Alma mostra-se, vê-se proeminente a cada dia. Abandona devagar o papel submisso e impõe-se — seja a criticar a textura de um tecido; seja a comer torradas de manhã, rasgando o silêncio monástico (aqui insistência na alusão à vida religiosa não é só uma repetição desconfortável) do ritual de ingestão matinal de alimentos.
Para receber, há que ceder. Alma nunca desiste de Reynolds, talvez nem da ideia de que é possível curar o homem que acredita não estar destinado ao matrimónio (e a toda a ladainha de fidelidade que vem atrás). Ele, contudo, dá sinais que por vezes parecem contraditórios. Poderá ser só um erro de interpretação, porém, é comum não perceber se Reynolds ama ou simplesmente precisa de Alma.
Alma. Alma é a mulher, mas também a essência do artista, cuja ‘alma’ destila sobre a criação. Há por aqui muito terreno fértil à deambulação poética do proto-artista. Porém, como Reynolds vê, nem sempre aquilo que acreditamos ser a mais elevada das artes o é. Ou assim, pelo menos, sofreu o modista, quando novas tendências captam a atenção da clientela da Casa Woodcock.
Reynolds vê-se, então, condenado a trabalhar para corpos menos delicados que o de Alma. E a visão de uma dessas criações num corpo inchado e obtuso, sôfrego e seboso, que desmaia sob o prato da própria boda, precipita Alma numa das maiores provas de amor — não a Reynolds, mas à obra do homem (se é que se pode separar o homem da obra, como iniciámos este texto discutindo).
É que, no final, pode pensar-se que Reynolds tem, na verdade, não apenas um caminho. Tem o caminho do amor, que o leva a sufragar o corpo à depressão, e tem o caminho da arte. À primeira vista, a história parece indicar-nos apenas o caminho da musa, que salva o artista da vida monótona, perturbando a arte, porém, em última análise, melhorando-a. Todavia, ou não fosse a ciência do cinema a de contrariar as evidências, o desenlace do matrimónio com aquilo que o faz ser artista é-nos revelador de que construir uma obra, como amar, é um esforço de coincidências, cedências — e conquistas.
O ritmo inicial vai devagar. Uma progressão lenta, uma entrada na história difícil. Não há de ser por acaso. O instrumento que nos leva a conhecer o filme — uma capa dura, difícil de penetrar — é o mesmo que Reynolds tem. É um homem duro, mas, por dentro, um miolo como o de um “bebé mimado”, dispara a certa altura Alma. É um homem terno, que procura ser afagado.
Também a obra é assim — doce. Um banho de beleza cinematográfica, assim oferecida, lado a lado com a opulência, não apenas da história, mas dos cenários ricos, da própria construção do objeto artístico (no caso, vestidos).
Há ainda uma outra leitura. Poderá dizer-se até um segundo nível da história, que, em analisando, nos mostra que há outra mulher a segurar a arte, muito antes de a musa chegar. Porque as musas vão e vêm, mas esta mulher é bem capaz de ser a verdadeira razão por que a arte chega a existir. Inicialmente pode parecer que estamos a entrar em caminhos mais queirosianos, mas vale a pena ter paciência — não condescendência — para perceber o papel de Cyrill, a irmã de Reynolds.
A Academia teve-a, parece. E nomeou Lesley Manville para o Óscar de melhor atriz. Do triângulo principal, é a personagem de quem conhecemos menos, todavia, é também (ou por causa disso) a que mais interesse desperta. Porque ela sim se parece dedicar a uma vida monástica, celibatária, dedicada apenas à arte da gestão da obra do irmão.
Paul Thomas Anderson é o realizador, nomeado para o Óscar pela melhor realização. No oitavo filme — e segundo trabalho com Day-Lewis — o californiano procura uma variação do “romance gótico” que examina a intimidade de alguém que se apaixona, tendo como cenário o “perigoso campo de batalha conhecido como Casa Woodcock”. Batalha comandada talvez não tanto por Reynolds, mas a omnipresente Cyrill.
Day-Lewis anunciou no verão passado que esta seria a última experiência como ator. A Academia nomeou-o para o Óscar de melhor ator e a prestação como Reynolds merece-a. E mereceria a estatueta, não fosse ter caído na mesma edição que Timothée Chalamet, o jovem ator que interpreta Elio em “Chama-me pelo teu nome”. Na modesta opinião deste espetador, a prestação de Chamalet percorre outros caminhos, por ventura mais inéditos e amplos, que Day-Lewis. Porém, não nos cabe conjeturar aqui os eventuais combates da noite dos Óscares; serve a indicação apenas para dar perspetiva.
Porque Reynolds é uma personagem profundíssima, algo só possível pela encarnação que o ator lhe dá. Daniel Day-Lewis pode muito bem, por isso, esperar na mesma o quarto Óscar, já em março, para (esperemos que não) dar por terminada a carreira na representação. Mesmo que não ganhe, mesmo que decida pôr um ponto final, termina em grande.
Vicky, por outro lado, está no preâmbulo de uma carreira internacional. Depois de uma década a trabalhar no cinema europeu, chega aos grandes ecrãs norte-americanos com força. A personagem que interpreta ganha confiança à medida que progride na história. Da empregada submissa e desajeitada, torna-se na líder de si — e também da arte. Rompe com a ideia comum de que às mulheres cabe somente o papel de musa; de acessório estático da produção. Antes, exige a sim um lugar na criação, uma influência maior do que a simples inspiração pelo colo de mármore e cabelo de oiro.
E o percurso para lá chegar, embora sombrio, faz sentido. Faz sentido naquele micro-universo, do artista que se destrói voluntariamente a favor da arte — e da mulher que o consome. Porque todos os casais são um micro-universo. Todos os casais têm uma arquitetura que apenas faz sentido entre eles, um equilíbrio que não os repele nem deita para baixo. E nisto, acabamos em caminhos perversos. A tensão, que percorre todo o filme, tem um pináculo que, apesar de talvez louco, talvez doentio, se explica com o equilíbrio que há entre gostar e amarrar.
Foi Saramago que o escreveu, no Conto da Ilha Desconhecida — “Gostar é provavelmente a melhor maneira de ter, ter deve ser a pior maneira de gostar”.
"Linha Fantasma", de Paul Thomas Anderson, com Daniel Day-Lewis, Vicky Krieps e Lesley Manville, estreia esta quinta-feira, dia 1 de fevereiro, nas salas portuguesas.
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