Lucky Luke. Os 75 anos do cowboy que dispara mais rápido do que a própria sombra, deixou de fumar em meados dos anos 80 do século passado, herói que sobreviveu ao criador Morris (Maurice de Bévère,) à imagem da tradição franco-belga e cuja história tem sido revisitada à luz dos temas mais prementes dos dias de hoje, é um dos ex-líbris da edição 32 do Festival de Banda Desenhada da Amadora, evento que encerra amanhã, 1 de novembro, dia de Todos os Santos.
O SAPO 24 falou com Ricardo Leite, dono da Toybroker, loja de brinquedos e clássicos da Banda Desenhada situada na cave do n.º 49 da Rua Sacadura Cabral, em Lisboa, autor e criador de miniaturas de soldadinhos portugueses e colecionador de material militar russo e soviético. É também responsável pelo empréstimo dos objetos que compõe "Os Herdeiros de Morris", uma das exposições patentes no Ski Skate Amadora Park, na freguesia da Damaia.
“Não contei o número de peças cedidas. Estive ainda a pensar no título 'Lucky Luke 200 peças' para a exposição, mas são mais”, assegura o colecionador entrado no mundo aos quadradinhos por influência do pai, cuja área de atividade profissional – ligado à marinha mercante – fez com que trouxesse do estrangeiro a efervescência dos bonecos e da banda desenhada.
A exposição revela o traço de novos autores responsáveis por desenhar a magra e solitária figura de colete preto, chapéu branco, camisa amarela e calças de ganga: Achdé (“Terra prometida”, cuja história retrata a escolta a uma família de judeus da Europa de Leste até aos confins do Oeste selvagem), Mawil (“Lucky Luke Muda de Sela”, 2020, no qual uma bicicleta concorre com o inseparável Jolly Jumper) e Matthieu Bonhomme (“O Homem que matou Lucky Luke”, editado em 2016, em que são reveladas as razões de ter deixado de fumar e “Procura-se”, 2021).
“Sou um apreciador de Bonhomme. Gosta do western, apresenta uma nova literatura clássica dentro do estilo franco-belga, está fantástico”, elogia Ricardo Leite num espaço onde coabitam Lone Ranger e Action Man, as BD do Spirou, Tex e Astérix e “diverso material militar russo e português” assim como “miniaturas de soldadinhos feitos em liga de estanho”, pedido feito pelos “Pupilos do Exército” e cujas peças artesanais deram origem ao core do seu sustento. “Não me fará rico, mas confere alguma dignidade ao negócio”, sorri.
Sem ponta de cigarros e com novos temas na boca
Abre o livro a falar da adaptação da nova arte (Banda Desenhada) ao politicamente correto, por vezes em duelo com a própria sombra.
A mudança mais popularizada assenta na ponta do cigarro desaparecida da boca do cowboy solitário, um gesto que viria a valer a Morris uma distinção da Organização Mundial da Saúde (OMS). Mas há outras incursões. No ano passado, um caderno do Lucky Luke adotou uma postura política ao trazer o tema da segregação racial e ao introduzir o primeiro xerife negro em “Un cowboy dans le coton", do argumentista Jul.
“A produtora americana Hanna-Barbera quis fazer a série nos EUA e impôs duas condições. Retirar o cigarro e eliminar as pistolas. Morris acedeu à primeira, retirou os requintes de enrolar o cigarro e bolsa do tabaco e, em seu lugar, colocou uma palha, mas não aceitou a segunda. Não fazia sentido não ter uma pistola no Velho Oeste”, ajuíza. “[Morris] Começou na série e passou para a banda desenhada para não fazer confusão”, recorda.
Ricardo Leite não abandona o tema e dá um salto até outra exposição: "Hergé", na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, dedicada ao percurso de George Remi. “Hergé estava à frente do seu tempo. Fez autocensuras às suas obras, umas vezes por imposição de editoras, outras por decisão dele e foi à obra modificá-la. O Morris, nesse aspeto, não o fez”, sublinha.
“Há autores indiferentes e quem não se verga. Mas não é importante. É uma evolução da arte nas sociedades. Eu, como apreciador, vejo o que aparece e tomo opção se gosto ou não. O que não acho correto é o que sucedeu numa biblioteca no Canadá onde se queimaram livros de Banda Desenhada debaixo de acusações”, sentenciou.
Recorre a um exemplo da nova roupagem de Banda Desenhada. “O Tex, muito popular em Itália e no Brasil, a personagem, não desfazendo, os autores eram artistas na época. Evoluiu muito e sou adepto dos novos autores, gosto mais”, exemplificou.
Apesar da abertura de espírito em relação às novas roupagens e enredos, novos e velhos juízos, centra o foco no boneco e autor que deram origem às obras. “Sou muito fiel aos artistas originais”, sublinha, ao mesmo tempo que questiona o desenvolvimento de “um filão quando o artista já morreu”, refere. “Uma obra de arte é diretamente ligada ao artista original. Hoje em dia, há casos que não são carne, nem peixe”, uma expressão saída ao falar do lançamento mundial do Astérix, ele que foi Comissário da Exposição dos 50 anos da icónica personagem gaulesa.
O revivalismo do mundo aos quadradinhos
“O meu pai era entusiasta do Lucky Luke. Tenho os primeiros Cavaleiros Andantes que estão nas vitrinas do festival BD da Amadora”, avisa Ricardo Leite.
Tem com a montra amadorense dos quadradinhos uma longa relação. “Fiz no Museu de brinquedo de Sintra uma exposição sobre o Tintim com um amigo do Porto, da loja “Tintim por Tintim”, uma exibição que lhe viria a abrir as portas a sul. “Comecei a trabalhar em 2003 ou 2004. Numa exposição no antigo centro internacional de BD e Imagem da Amadora”, relembra. “Pediram-me para fazer algo sobre coisas feitas em Portugal. Os bonecos dos gelados da Olá e da Rajá, bem como as figuras do Lucky Luke, feita na fábrica da Maia”.
Nascido em 1965, colega de carteira e curso de Mário Centeno (ISEG), economista de formação, empresário da restauração (dono do antigo restaurante Kalashnikov, Lisboa), começou no início dos anos 90 "a pegar nas coisas que a mãe tinha na arrecadação". "Um, mais um e mais outro e comecei a investigar. E tive sorte por acordar para esta atividade quando ainda havia pouca gente interessada e antes da explosão da internet”, adianta.
“No catálogo da exposição Lucky Luke faço referência a essa evolução nos anos 90. Nessa altura, havia só livros; na primeira década do século XXI aparecem os sites e blogues que deram uma dinâmica ao colecionismo e agora as redes sociais que nesta área explodiram”, comenta.
“Temos o fenómeno do interesse na banda desenhada do Japão, Mangá (também patente no festival da Amadora)”, recorda. No outro lado do Atlântico, os super-heróis esquecidos renascem com a Marvel e a DC (cinema) e despertaram o interesse dos mais novos”, sustenta. “Pensava que o culto do papel se ia perder... são fenómenos cíclicos engraçados”, reconhece.
Um revivalismo também ele revisitado na Amadora. Vai de Michel Vaillant (criado por Jean Graton) aos "80 anos de Diana, a Mulher-Maravilha: Guerreira e Pacifista", personagem da DC Comics, Drácula, de George Bess, passando pela criação portuguesa, Corvo.
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