A história da morte de Madalena é contada pela sua ausência. Essa opção surge, explica Madiano Marcheti à Lusa, porque lhe pareceu “mais forte falar deste tema a partir da ausência, das reações das pessoas à morte, e como a sociedade geralmente reage, com muita passividade ou permissividade”.

“A estrutura do filme acaba a ser, para mim, um reflexo de como eu sinto a sociedade brasileira, como a sociedade, de forma geral, trata ou lida com esse tipo de crimes de transfobia”.

Essa reação passa por “muita passividade, ou apagamento, não se fala sobre isso, ou, quando se fala, fala-se da pior maneira possível”, denuncia o realizador.

“Principalmente as mulheres travesti no Brasil, que são as mais assassinadas. Ainda têm outra camada de violência depois da morte, porque, quando sai na imprensa, sai com um nome masculino, referindo-se no masculino. Até depois de mortas, acabam sofrendo”, conta.

Madalena dá nome e mote ao filme, mas “o filme dá muito pouco em relação à vida dela, ou como ela morreu, mas, por outro lado, dá muito sobre o estado de coisas daquele lugar – dá muito sobre o que possibilitou que este tipo de crime acontecesse e, em específico, este crime contra Madalena”.

Além da denúncia do alheamento da sociedade perante os constantes atentados à vida e aos direitos da comunidade LGBTQI+, em particular das pessoas transexuais, o filme traz também o retrato de uma região muito conservadora do Brasil, o Mato Grosso.

“A ideia nasceu há seis anos, com a minha vontade de falar sobre esse lugar, fazer um retrato desse lugar. A primeira vontade era falar do lugar, mesmo. Depois, com muitas pesquisas, e como sou gay, cresci lá, onde é muito conservador, também queria falar sobre essa experiência de se sentir ao mesmo tempo parte e não-parte de um lugar. Há uma pressão de se encaixar no padrão, depois um certo alívio ao sair, mas ao mesmo tempo ama o lugar, as pessoas estão lá”, conta Marcheti.

Mas acabou por sentir necessidade de se debruçar “sobre os impactos do agronegócio na região, como é e tem sido afetada nos últimos 70 anos com esse modo de produção, que foi completamente pensado e impulsionado pelo Estado”.

“Afetou a população, afastou as populações indígenas, e afeta, até hoje, a vida das pessoas. Traz muita riqueza, mas também muita desigualdade”, detalha.

O lugar e a morte de Madalena cruzam-se numa reflexão “sobre os impactos desses mecanismos do agronegócio, do conservadorismo”.

E é por isso que “o lugar é um personagem, a cidade é um personagem importante, as plantações de soja também. Ajudam-nos a entender as dinâmicas sociais daquele lugar, que ajudam a produzir esse tipo de crime no Brasil. Dinâmicas sociais conservadoras, principalmente”.

Dinâmicas que nascem que um fenómeno recente: “A cidade onde cresci tem pouco mais de 50 anos. Antes disso, não existia nada ali, só floresta e povos indígenas. É um processo que começou nas décadas de 1960, 1970, impulsionada pela ditadura civil-militar no Brasil, mas é um processo histórico, de alguma forma, porque é a continuação de um projeto desde os portugueses, de exploração, primeiro colonial e agora pelo Brasil mesmo, ocupando esses territórios mais distantes dos grandes centros de maneira extremamente predatória”.

“Foi um processo terrível, muito pensado para fazer do centro do Brasil o Celeiro da Nação. O lugar onde se vai ganhar dinheiro plantando. O Brasil acha que tem essa sina de que a nossa riqueza só pode vir da monocultura, foi o ciclo da cana-de-açúcar, o ciclo da borracha, e agora é a soja. No fundo, é a continuidade de um processo histórico, primeiro colonial e agora neocolonial dentro do Brasil”.

Essa é uma questão que se mantém, independentemente da ideologia política de quem governa o país, lamenta.

“O melhor governo que o Brasil teve até agora foi o do Lula [da Silva], com inúmeros ganhos sociais, mas o agronegócio nunca cresceu tanto como nesses anos. Foram anos de impulsionamento do agronegócio como nunca se viu”.

Ainda assim, diz que, “neste momento, as coisas estão piores”, apontando, como exemplo, para a posição do presidente brasileiro Jair Bolsonaro em relação ao garimpo, a mineração ilegal de ouro: “desde que Bolsonaro foi eleito, diz abertamente ser a favor do garimpo, diz até que já foi garimpeiro”.

“Ele incentiva as pessoas a entrarem em terras indígenas e desmatarem, tentarem encontrar ouro, enfim… fora o desmatamento para expansão agropecuária, que está a acontecer como nunca antes. Os mecanismos de controlo foram cooptados ou destruídos por dentro, estão completamente enfraquecidos”.

Para Marcheti, “é preciso pensar num outro modo de desenvolvimento para o país que não esteja atrelado a essa lógica de exploração do território, de exploração mineral, da natureza”.

“Madalena”, que já foi apresentado em mais de 30 festivais de cinema, pode ser visto este domingo, às 22:00, no Cinema Passos Manuel, e, na sexta-feira, às 19:00, no Teatro Rivoli, no âmbito do Porto/Post/Doc.

O festival começa hoje e, até dia 30 de novembro, traz cerca de 100 filmes a seis salas da cidade do Porto, sob o tema central "Ideias para Adiar o Fim do Mundo".

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