A nossa família tem nome de árvore, uma das mais importantes de todas, que alimenta e alumia e que, também por isso, é das mais banais de todas. Escrevo estas linhas numa casa que também ela tem nome de fruto, de uma árvore mais exótica, sobretudo nos anos 40, quando, numa aldeia junto às Caldas de São Pedro do Sul, nasceu uma quinta com vista para as serras da Arada e do São Macário, com o nome de ‘Manga-Manga’.
Aqui na aldeia sou a neta do ‘tio’ Oliveira, o ‘Manga-Manga’. Batem-me à porta, metem conversa sem pudores no café, como se me conhecessem desde sempre, baralham-se no meu nome, confundem-me com a minha mãe e também com a minha avó, fazem contas de cabeça aos anos que se passaram, às décadas em que a casa ficou em suspenso, adormecida e à deriva à nossa espera, do pesar que todos sentiram por esse luto prolongado, ficam de queixo escancarado pelas semelhanças da minha filha mais velha com a sua avó, a minha mãe, relembra-se a beleza do jardim de dálias, hortênsias e noveleiros, desfiam-se novelos de histórias à desgarrada, por vezes emaranhados pela neblina da memória, ou remendados ao sabor da inevitabilidade de quem conta um conto poder acrescentar sempre um ponto sobre a personagem quase lendária que foi o meu avô.
O meu avô nasceu um desgraçado. Algures nos registos da igreja estará o seu assento de nascimento, com a sentença mais triste que alguém pode ter: filho de pai incógnito. O pai não era incógnito, na verdade era um patife endinheirado que, do alto do seu cavalo e do seu poder quase feudal, se forçava junto das raparigas nas lides do campo. A minha bisavó, contam-me os antigos, nunca mais foi a mesma desde que o bandido Marcelino a apanhou a caminho do moinho e lhe fez um filho. Morreu cinco anos mais tarde, com a pneumónica, mas todos me contam que morreu antes, no dia em que o meu avô foi concebido.
A nossa família tem nome de árvore por obra e caridade de um padre da aldeia que lhe juntou o apelido ao nome de Manuel. Nasceu simplesmente Manuel. O padre vaticinou que seria Oliveira. A escolha revelou-se acertada. Se há árvore mais próxima da imortalidade é ela, a Oliveira.
Seguiram-se as terríveis provações e a fome. E os volte-faces do destino. A história de um miúdo franzino destemido de uma aldeia perdida em Lafões, que estudou e trabalhou sem descanso, que se fez ao caminho, por um itinerário sinuoso e por vezes labiríntico dos seus grandiosos e quase desmedidos sonhos. Há breve passagem por Viseu, seguida por uma viagem de barco, o sonho americano nunca cumprido acomodado na bagagem do porão. Chega-se a um porto gigantesco em África numa cidade que conhecemos apenas de fotografias a preto-e-branco. E é lá que a vida e a fortuna do destino se cumpre, décadas de trabalho e a construção de um pequeno império de estabelecimentos comerciais, nos quais o meu avô com nome de árvore plantava sempre duas mangueiras como um totem ou amuleto de sorte. Assim nasceu o ‘Manga-Manga’. Assim foi exportado para a aldeia de São Félix em São Pedro do Sul, muitas décadas mais tarde, para uma pequena quintinha de pedra.
Eu sou a que já nasceu num berço de metal precioso. Mas sou aquela que veio com um bando de catraios agarrados às minhas saias resgatar do esquecimento a casa do ‘Manga-Manga’. Sou a neta pródiga da cidade que voltou à procura das suas raízes, a que revolve a terra, a que a semeia e aguarda sem pressas para colher os frutos. Ao sabor das férias do Verão. Na casa velha da aldeia onde tudo começou.
Para o casal de trintões que nós já somos, este é o paraíso. Meio hectare de terra. Um pomar de laranjeiras histéricas de felicidade, que brotam frutos suculentos desde a Primavera sem quaisquer sinais de cansaço, e uma pereira centenária muito curvada e paciente que todas as manhãs solta peras farinhentas para o chão.
Quatro filhos soltos por aí, uma família numerosa que duplicou o seu tamanho sem aviso há um par de anos, crianças soltas com as pernas esfoladas, os braços arranhados pelas silvas, as mãos tingidas de roxo das amoras silvestres, os pés negros do pó. Uma casinha pequenina que se desdobra miraculosamente e recebe amigos e família. “A casa não se quere grande para ser igual a um ninho. O amor, na casa pequena, anda mais conchegadinho.” Está escrito num azulejo velho, embutido na parede da entrada. Era o mantra do meu avô. Passou também a ser o meu.
A nossa aventura rural, de regresso ao passado e construção de pontes do futuro junto às milenares Termas de São Pedro do Sul, começou há um par de anos. Ainda éramos só quatro, um jovem casal e o seu casalinho de filhos loiros. Tudo se tem feito com amor – não há outra forma de fazer bem as coisas – e bem devagar. Electrificou-se a casa. Fez-se luz, mas, inexplicavelmente, mudámos de século, e estamos na terra das águas com poderes curativos que os Romanos descobriram, mas não há água canalizada nem saneamento básico.
Racionamos recursos: há banhos rápidos e viagens à fonte mais próxima para matar a sede com água potável. Ensinamos aos nossos quatro filhos que a água não vem miraculosamente da torneira, tal como os ovos não nascem do supermercado. Não trazemos televisão, nem acesso à Internet – e os miúdos ressentem-se de saudades dessas coisas modernas que dão como adquiridas desde que nasceram.
Escutamos a natureza: avançamos teorias e hipóteses sobre a forma de reprodução dos caracóis, que têm um ninho junto ao poço, tememos, mas ficamos deslumbrados pelos voos rasantes sobre as nossas cabeças das vespas gigantes da terra, às quais chamam abigoiros. Analisamos girinos e ninfas de libelinhas coloridas. Cavamos buracos e plantamos árvores e arbustos, à espera que cresçam e envelheçam connosco.
Os dias passam devagar com as montanhas mágicas imóveis à nossa frente, num quadro com uma moldura dourada imaginada de lembranças que vamos construindo sob um sol escaldante de Verão. Cada folha do calendário é uma aventura, uma descoberta. Esqueçam os postos do turismo, que nada sabem das riquezas que a terra tem, e que encaminham os turistas e os emigrantes que regressam à terra em Agosto para as modernas e indiferenciadas infra-estruturas, para onde os fundos estruturais comunitários foram canalizados.
A terra tem rotundas e circulares absurdas, tem quatro cadeias de supermercados, mas não tem água canalizada e saneamento. No Verão há festas todos os dias e todas as noites, é um desfile de estrelas dos tops de venda da indústria musical nacional, está marcada uma sunset party com a presença badalada da rádio mais ouvida do país, e ainda há festas com estrelas da música pimba que se atropelam umas às outras numa rivalidade de aldeias vizinhas e de santos padroeiros. Mas quase ninguém sabe o que é e onde fica Nodar. Ou que beleza esconde o Poço Negro ou Cabaços. O Vouga, o Sul, o Paiva, o Paivô, o Zela – corremos atrás destes rios.
O itinerário das nossas férias faz-se dessa riqueza natural única de Lafões. Faz-se de boca-a-boca, é esquadrinhado meticulosamente pelas recordações das gentes da terra e por guias turísticos amarelecidos e não reeditados. Vamos com calma e cuidado, mas sem medo: desbravamos locais onde a natureza está praticamente intacta, chegamos a aldeias-fantasma de pedra, que ali estão à espera para nos dar as boas-vindas. Assim se abrem paisagens e territórios incríveis, para onde levamos atrelados quatro filhos, dois dos quais bebés de colo.
Os putos mais velhos resmungam, têm saudades da Playstation, do Cartoon Network e do Panda. A mais velha, a entrar precocemente naquela que adivinho que vá ser uma longa adolescência, telefona para os amigos para saber quem foi expulso do concurso de talentos, e saca as novidades dos últimos episódios da trama da novela.
Mas quero acreditar que estas serão as melhores férias de Verão das suas vidas, aquelas que recordarão para sempre com saudade e nostalgia, de coração cheio. Acredito que, no futuro, contarão a história do trisavô ‘Manga-Manga’ aos seus filhos, enquanto os empurram no baloiço que pendurámos no ramo da laranjeira. Imagino-os a contar a história do gigantesco caramanchão de glicínias que trouxeram ao colo num Verão e que plantaram com as suas mãos. Vejo-os a regressar a Nodar, ao Poço Negro e ao Poço Azul, a Meitriz, a Pouves e a Cabaços.
A minha família tem nome de árvore. E estas são as nossas raízes. E estes são as nossas flores e os nossos frutos.
Diana Leiria-Ralha é mãe de quatro filhos e autora do blog A Família Numerosa que se descreve assim: "Um casal (Diana e João), quatro filhos (Carolina, António, e as bebés Aurora e Isaura), três gatos (Pi, Manga e Farrusca) e um cão (Cenoura). Esta é a nossa família. Numerosa e feliz, como no prato da ementa do restaurante chinês". É também jornalista, apaixonada por coisas da terra e da cultura, e actualmente ganha a vida como consultora de comunicação.
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