Fea, pobre y portuguesa ¡Chúpate esa!
Provérbio popular espanhol em referência à rainha Maria Isabel de Bragança.

Introdução

Agora que te vais casar, em primeiro lugar, trata a tua mulher com aquele amor devido a uma companheira, guardando-lhe aquela boa-fé que é a felicidade do matrimónio, pois, caso contrário, é um inferno e a perdição da alma, e, em segundo lugar, não a deixes meter-se nos negócios nem querer que os ministros a ponham a par de tudo, pois, por desgraça, sei por experiência própria os males que isto acarreta e os remordimentos que tenho, por ter condescendido em muitas coisas com o que queria a tua mãe.

Estas foram as palavras que, do seu exílio no palácio romano de Barberini, o outrora rei Carlos IV escreveu ao seu filho Fernando VII, uns dias antes do seu casamento com a infanta Maria Isabel de Bragança. Os novos ares, depois de todo o alarido napoleónico, exigiam mudanças, inclusive nessa corte absolutista e de gosto característico do século XVIII que Fernando VII tinha imposto aquando do seu regresso de Valençay. Depois de anos de propaganda fernandina durante a Guerra da Independência, a imagem demasiado injuriada da rainha Maria Luísa — mãe de Fernando VII e avó de Maria Isabel — tinha-se enraizado no imaginário popular, e surgia o medo de que Maria Isabel fosse igual à sua antecessora. Mas, para sorte de Fernando, a sua nova esposa era completamente diferente da sua mãe.

Maria Isabel de Bragança e de Bourbon procedia das exóticas e misteriosas terras do Brasil e, assim que chegou a território espanhol, apoderou-se do coração dos seus novos súbditos. Durante os dois anos de vida como rainha consorte, torna-se impossível encontrar nela uma só nódoa, há antes muitos exageros que, na sua maioria, se podem encontrar nos Apuntes acerca de la vida de la Reyna Doña Maria Ysabel de Braganza, que en paz descansa, guardados nos confins da Biblioteca Nacional de Espanha. Um autêntico elogio que recebeu pouco tempo depois de falecer exalta-a como a mãe de todos os Espanhóis, já que foi a primeira esposa de Fernando que o brindou com a alegria da paternidade, ainda que efémera, porque a infanta nascida deste matrimónio sobreviveu poucos meses. Por outro lado, muito provavelmente, Maria Isabel abriu caminho para as outras esposas que se seguiram, pois foi ela que fez emergir um Fernando romântico e bem-disposto na esfera mais privada.

No entanto, se Maria Isabel é bem conhecida por algo, é pelo facto de ser a impulsora do Museu do Prado. Precisamente no bicentenário desta instituição, publicou-se um livro intitulado María Isabel de Braganza, la Reina del Prado, que, infelizmente, não é mais do que um compêndio do que foi dito pelo cronista Mesonero Romanos (1) e pelo repetitivo marquês de Villaurrutia (2), com alguns artigos do La Gaceta (documento análogo ao Diário da República Portuguesa naquela época) sobre a sua entrada em Madrid e louvor após a sua morte. Uma oportunidade perdida para conseguir tirar da sombra esta rainha desconhecida. É só no Brasil que, desde há algum tempo, a investigação sobre a vida dos Bragança naquelas terras se faz de forma mais séria, onde a vida de Maria Isabel como infanta portuguesa vem à luz, mesmo que ainda falte muito neste campo dedicado às biografias régias.

"É Desta Que Leio Isto"

"É Desta Que Leio Isto" é um grupo de leitura promovido pela MadreMedia. Lançado em maio de 2020, foi criado com o propósito de incentivar a leitura e a discussão à volta dos livros.

Já folheámos as páginas de livros de autores como Luís Sepúlveda, George Orwell, José Saramago, Dulce Maria Cardoso, Harper Lee, Valter Hugo Mãe, Gabriel García Marquez, Vladimir Nabokov, Afonso Reis Cabral, Philip Roth, Chimamanda Ngozi Adichie, Jonathan Franzen, Isabel Lucas, Milan Kundera, Joan Didion, Eça de Queiroz e Patricia Highsmith, sempre com a presença de convidados especiais que nos ajudam à discussão, interpretação, troca de ideias e, sobretudo, proporcionam boas conversas.

Ao longo da história do nosso clube, já tivemos o privilégio de contar nomes como Teolinda Gersão, Afonso Cruz, Tânia Ganho, Filipe Melo e Juan Cavia, Kalaf Epalanga, Maria do Rosário Pedreira, Inês Maria Meneses, José Luís Peixoto, João Tordo e Álvaro Laborinho Lúcio, que falaram sobre as suas ou outras obras.

Para além dos encontros mensais para discussão de obras literárias, o clube conta com um grupo no Facebook, com mais de 2500 membros, que visa fomentar a troca de ideias à volta dos livros, dos seus autores e da escrita e histórias que nos apaixonam.

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Para elaborar este livro que o leitor tem nas mãos, foram consultados vários arquivos históricos e a escassa imprensa da época. Nas investigações prévias à sua elaboração, encontrei no Archivo General del Palacio Real de Madrid (Arquivo Geral do Palácio Real de Madrid) a correspondência entre Maria Isabel e Fernando VII, que o leitor encontrará como anexo, no final deste livro.

Resta-me agradecer primeiramente ao meu companheiro de vida, Ricardo Sanches Silva, todo o apoio dado na investigação e elaboração deste e de outros tantos projetos. Ao meu grande amigo e mentor Ricardo Mateos Sáinz de Medrano, pela correção do manuscrito inicial e pelas alterações sugeridas como fonte de conhecimento em história dinástica. Também agradeço ao meu grande amigo Datiu Salvia Ocaña, pela sua ajuda a contactar o Grupo Almedina, ao qual também agradeço de coração a oportunidade de publicar esta biografia. E, por último, estendo o meu agradecimento a todo o pessoal do Archivo General del Palacio Real, do Archivo Histórico Nacional, da Biblioteca Nacional de España, do Arquivo Nacional da Torre do Tombo e do Arquivo Imperial do Brasil em Petrópolis. Sem me esquecer de vós, leitores, pois sem vocês este livro não faz sentido.

Que esta obra seja vista como um pequeno grão de areia e uma forma de reivindicar a última rainha espanhola com raízes portuguesas. Mergulhemos na vida de Maria Isabel de Bragança, a rainha indiscutível de El Prado.

Infância e família

Perto de Lisboa, na vila de Queluz, ergue-se o imponente palácio com o mesmo nome, também conhecido como o «Versalhes português». Um palácio que se tornou a residência principal da família real, quando a Real Barraca da Ajuda foi assolada por um incêndio que a destruiu quase por completo. Ali, no Palácio Real de Queluz, a 19 de maio de 1797, veio ao mundo a protagonista da nossa história, sob o signo de Touro. O seu nascimento, como era costume, foi celebrado em grande estilo, com salvas de artilharia, repique geral de sinos e dias de luminárias nas principais cidades do reino. Eram dias de festa para os portugueses receberem a nova infanta, que foi batizada com o nome Maria Isabel, numa cerimónia em que o destino pregou algumas partidas curiosas e cheias de conexões, já que o seu padrinho não era outro senão Fernando de Bourbon, o seu futuro marido (3). Escrevia Carlos IV à sua filha Carlota Joaquina:

Querida filha do meu coração, tendo ficado muito contente e satisfeito com a escolha que o Príncipe do Brasil, vosso querido Marido, fez com o vosso acordo, do Príncipe das Astúrias para padrinho da Infanta que acabais de dar à luz, ficarei particularmente satisfeito se, em seu nome, entregardes à recém-nascida a joia anexa como demonstração de afeto pela sua afilhada.  

Maria Isabel de Bragança e de Bourbon era a terceira filha dos herdeiros ao trono de Portugal, que ostentavam o título de príncipes do Brasil: João de Bragança e Carlota Joaquina de Bourbon, filha dos reis de Espanha. Nasceu como mais uma infanta da casa de Bragança, dinastia que reinava em Portugal desde 1640 e que, nos últimos anos, vivia envolvida num autêntico turbilhão. Tendo em conta que nos encontramos perante uma família tão peculiar, antes de aprofundar a história de vida de Maria Isabel, é necessário apresentá-la para dar a conhecer uma ideia aproximada do ambiente em que se criou desde pequena.

As crónicas dizem que, cinco anos antes do nascimento de Maria Isabel, a sua avó, a rainha D. Maria I de Portugal, protagonizou, à porta do Teatro Salvaterra, um episódio hilariante e absurdo que deixou os cortesãos boquiabertos. Talvez se tenha tratado de um episódio como outros tantos que levaram a que a considerassem inválida devido a uma suposta loucura que chegou a ser tratada, sem êxito, pelo doutor Francis Willis, o médico que tratou o rei louco Jorge III do Reino Unido. A rainha D. Maria estava realmente louca? É provável que não. No entanto, como tantas outras mulheres que se ergueram no cume do poder num mundo de homens, a rainha foi vítima de uma depressão profunda, com um quadro de ansiedade e pânico causado por um sem-fim de intrigas palacianas, num momento em que a saúde mental era um tema desconhecido e os médicos não tratavam males como a ansiedade ou perturbações de personalidade. Infelizmente, sob o signo da loucura, as mulheres foram denegridas ao longo de toda a História.

De qualquer modo, quando foi declarada incapaz, o seu filho, o já referido príncipe João, teve de tomar as rédeas do reino, apesar de não ter sido educado para tal. Era o segundo na sucessão ao trono até que a Ceifeira decidiu levar o seu irmão José, em 1788, colocando-o à frente na linha de sucessão e obrigando-o a tornar-se príncipe regente, em 1799, apenas dois anos após o nascimento da sua filha, Maria Isabel, e no pior momento que se poderia imaginar. Enquanto o príncipe João assumia a regência, em França, após os desastres revolucionários de dez anos antes e depois da instauração de um governo sedicioso, um golpe de Estado liderado por Napoleão Bonaparte derrubou o Diretório revolucionário para instaurar o chamado Consulado, com Bonaparte à cabeça como novo cônsul e agente de mediatização da política europeia.

Para piorar a situação, os príncipes do Brasil tinham um matrimónio de mera aparência e artificial, o que cada vez menos faziam questão de esconder. Carlota Joaquina, digna herdeira da rainha Maria Luísa de Espanha, era uma mulher forte, corajosa e aguerrida, em permanente conflito com a ala mais conservadora da aristocracia portuguesa que, desde cedo, começou a rodear o seu marido. Tal como a mãe, Carlota Joaquina era uma rara avis, tremendamente vilipendiada pela historiografia e cercada por inúmeros mexericos, incluindo uma lista quase interminável de amantes e um pai diferente para cada um dos seus filhos. Estes rumores também não pouparam João, dado que se dizia que estava loucamente apaixonado por Eugénia de Menezes, parente dos marqueses de Marialva, com quem teria tido uma filha (4). Mas as histórias não ficavam por aqui, pois constava ainda que um sacerdote tinha visto, inesperadamente, uma cena em que Francisco Sousa Lobato, um dos favoritos do príncipe, o masturbava. Uma história hilariante cujos defensores alegam que o sacerdote foi enviado para Angola, mas não sem antes deixar um testemunho escrito do que presenciou.

Intrigas à parte, João era um homem retraído que sofria de uma grave depressão e procurava refúgio no ambiente sagrado da corte; o oposto da mulher, que estava disposta a tudo para se destacar. Por isso, o casamento não foi nada bom, embora tenham tido nove filhos, todos nascidos sob a sombra da ilegitimidade: a primeira a nascer foi Maria Teresa, mais conhecida como a «princesa da Beira»; depois nasceu Francisco António, que faleceu aos seis anos; seguiu-se a nossa Maria Isabel; depois Pedro, herdeiro do trono e príncipe da Beira; Maria Francisca, inseparável de Maria Isabel devido à proximidade de idades, pois tinham apenas três anos de diferença; e os mais novos, a infanta Isabel Maria, o infante Miguel e as infantas Maria da Assunção e Ana de Jesus. E, finalmente, para completar este quadro familiar, havia ainda duas irmãs da rainha, a infanta Benedita (5) e a solteirona infanta Benita, bem como o infante Pedro Carlos (6), que, embora nascido em Espanha, era considerado um dos Bragança.

Retrato de D. João VI e D. Carlota Joaquina, pintado por Manuel Dias de Oliveira, Museu Histórico Nacional do Rio de Janeiro.

Esta foi a família completamente disfuncional em que Maria Isabel foi criada, com uma avó peculiar, pais que não se suportavam e uma série de conflitos e conspirações que marcaram a corte portuguesa. Felizmente para ela, o costume nas famílias reais era que um verdadeiro exército de pessoas tomasse conta dos seus filhos, que passavam mais tempo com as amas do que com os pais, que só viam em alturas muito específicas do dia. Desde muito cedo, Maria Isabel foi cuidada pela sua ama, Teresa de Portugal e Castro, irmã do marquês de Valença, e pela sua amada Joana de Cabral, que prezava como uma mãe. A sua infância foi passada entre palácios, conforme a educação dada às princesas e infantas da época, que aprendiam boas maneiras, conhecimentos religiosos, costura e bordados. É de referir que, embora os pais não se dessem muito bem, como vimos, tinham a preocupação de dar aos filhos uma boa educação em pintura, música, equitação e literatura. Maria Isabel teve alguns docentes de renome, como o professor da Universidade de Coimbra José Monteiro da Rocha, que lhe ensinou matemática, ou o franciscano António de Arriaga, que lhe ensinou latim e história da religião. No entanto, a disciplina preferida de Maria Isabel era, sem dúvida, a pintura, graças aos ensinamentos de Domingos António Sequeira, grande expoente do neoclassicismo português.

Livro: "Maria Isabel de Bragança - Princesa de Portugal, Rainha do Prado"

Autor: Jonatan Iglesias Sancho

Editora: Minotauro

Data de Lançamento: 14 de novembro de 2024

Preço: € 15,90

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A vida na corte dos Bragança não era como a divertida corte dos Bourbon, pois em Portugal valorizava-se o conservadorismo austero da nobreza e do clero, com a Igreja a impor regras severas contra vários tipos de diversão, como bailes e festas.v Assim, Maria Isabel cresceu num ambiente pietista, rígido e austero, muito mais ligada à mãe do que ao pai, que passava muito tempo no palácio de Mafra, rodeado de freiras e frades, ou na sua propriedade em Vila Viçosa. Contudo, a sua vida foi como a de qualquer princesa europeia, até 1806, quando, aos nove anos, um episódio marcou uma viragem na sua vida, momento em que o cenário que rodeava o casamento dos seus pais se desmoronou subitamente diante dos seus olhos. O que aconteceu?

D. João tinha partido em outubro do ano anterior para uma viagem de caça de um mês, mas no regresso adoeceu e teve de ficar convalescente durante muito tempo, retirando-se momentaneamente da vida pública. Este facto desencadeou um sem-fim de boatos de que o regente sofria da mesma doença melancólica da mãe, o que foi aproveitado por uma parte da nobreza da corte para oferecer a regência a Carlota Joaquina. Embora D. João tenha tentado por todos os meios silenciar os rumores, concedendo audiências, parte da aristocracia da corte, incluindo o conde de Sarzedas, o conde do Sabugal, o marquês de Alorna e o marquês de Ponte de Lima, começou a preparar um golpe. Naturalmente, Carlota Joaquina tentou apoiar os futuros insurretos e pediu ajuda ao pai, o rei Carlos IV de Espanha, a quem escreveu:

Vou aos pés de V. M. na maior consternação para dizer a V. M. que a cabeça do príncipe está cada dia pior, e que por consequência tudo está perdido, porque essas figuras são cada dia mais absolutas, e que chegou a ocasião de V. M. vir ter comigo e com os seus netos [...]. Isto é remediado enviando V. M. uma intimidação de que quer que eu entre no Gabinete, e que não aceitará resposta no caso de existir.

Carlota não queria ficar à margem das decisões que se tomavam nos gabinetes, um sinal claro de que as mulheres nos círculos reais e aristocráticos do poder estavam a assumir novos papéis, além da sucessão. Porém, a corte bragantina não lhes quis dar esse espaço. Tudo se passaria no dia 25 de abril, dia do aniversário de Carlota Joaquina, mas D. João, que estava a par de tudo, conseguiu impedir a tentativa de insurreição (7). Muitos dos participantes foram castigados, embora, para evitar escândalos, D. João não tenha feito qualquer represália contra a mulher, além de se ter afastado dela e de ter passado a viver separado desta. Na realidade, as verdadeiras vítimas da separação foram Maria Isabel e os irmãos, que só viam os pais em eventos públicos, onde ambos tinham de fingir uma união feliz.

No entanto, como um infortúnio nunca vem só, rapidamente tiveram de enfrentar outro problema muito mais grave que viraria Portugal do avesso. Até à data, os Bragança tinham-se recusado a romper os laços comerciais com o Reino Unido, seu aliado histórico e inimigo da França. Por seu lado, Napoleão, determinado a bloquear o Reino Unido, pressionou Portugal até lançar um ultimato a D. João, deixando-lhe claro que ou apoiava o bloqueio continental contra os britânicos ou teria de enfrentar as consequências. De imediato, o Conselho de Estado foi convocado para deliberar, enquanto se remetia para a gaveta um antigo plano de evacuação, elaborado no século XVII, que previa que, se necessário, a família real deveria ser transferida para o Brasil. Carlota não teve qualquer intervenção neste plano, tanto que não fazia ideia do que estava a ser gizado, e foi influenciada por rumores na capital de que apenas o príncipe e os infantes viajariam para o Brasil, algo que comunicou à mãe:

Poupa-me de morrer e às minhas inocentes filhas, e poupa- -me também de qualquer injúria [...] porque os meus filhos estão para embarcar, os pequenos vão para a América para satisfação dos ingleses.

Maria Luísa, de Madrid, encoraja-a, escrevendo-lhe:

Se o príncipe se for embora e te abandonar a ti e às tuas filhas, não abandones o povo, pois podes evitá-lo até que cheguem os nossos auxílios [...] espírito e energia para te separares de um marido que abandona a mulher e os filhos. 

A rainha dá esta resposta no contexto do célebre Tratado de Fontainebleau, de outubro desse ano, em que Espanha e França dividiram Portugal a seu bel-prazer. Assim que chegou a notícia de que Espanha tinha permitido a entrada das tropas francesas e que estas se aproximavam perigosamente de Portugal, D. João deu ordens para iniciar a evacuação ipso facto. De repente, o porto de Belém enche-se de caixotes e de baús empilhados por todo o lado, num vaivém de carruagens; centenas de pessoas aguardam ansiosamente o embarque num dos navios e, por todo o lado, há uma concentração de manadas de cavalos, bois, galinhas, burros e outros animais. Quando Maria Isabel, a mãe e os irmãos chegaram ao porto, a 27 de novembro, deve ter sido uma visão aterradora, pois tudo estava tão cheio que as portas das carruagens mal se podiam abrir.

A rainha D. Maria chegou aos gritos, assustada, acreditando que ia ser levada para o cadafalso para lhe cortarem a cabeça, como acontecera a Maria Antonieta, mas a chegada de D. João não foi muito melhor, pois estava tão nervoso que tiveram de o ajudar a entrar no barco porque as suas pernas tremiam. Maria Isabel também se assustaria ao subir à prancha do Afonso de Albuquerque, onde não estaria sozinha, pois, além da mãe e dos irmãos, encontrar-se-iam ali cerca de mil e duzentas pessoas. O resto da família real embarcou no Príncipe Real, mas teve de esperar dois dias no meio do mau cheiro e da confusão de caixas e de pessoas que procuravam qualquer espaço para se instalarem. Finalmente, com os ventos mais favoráveis, a enorme frota de nada menos do que dezasseis navios, guardados por outros tantos britânicos, levantou âncora e zarpou para a ilha da Madeira. Não demoraram muito, pois a 11 de dezembro zarparam para o Brasil, a primeira viagem desta dimensão na História.

É impossível saber o número exato de tripulantes, mas algumas crónicas afirmam que, entre a família Bragança, o Governo, o clero, os representantes, os funcionários públicos, os nobres e todo o aparelho administrativo, podiam ser quinze mil pessoas. Todos queriam fugir. E os porões estavam carregados não só de alimentos e animais, mas também de mobiliário, joias, obras de arte, documentos, bibliotecas inteiras... Maria Isabel estava a bordo de um navio de cinquenta e cinco metros de comprimento, totalmente sobrelotado, que depressa se tornou muito desconfortável, pois a falta de água potável e as más condições de higiene faziam com que o escorbuto grassasse. Em pouco tempo, uma praga de piolhos espalhou-se pelos navios, obrigando as mulheres a raparem a cabeça para evitar que a praga se propagasse. Como podemos ver, não foi uma viagem fácil, como descreveu o tenente britânico O'Neil:

Mulheres de sangue real e da mais alta estirpe, criadas no seio da aristocracia e da abundância [...], todas forçadas a enfrentar o frio de novembro e as tempestades através de mares desconhecidos, privadas de todo o conforto e mesmo das necessidades da vida, sem uma muda de roupa ou uma cama para dormir, obrigadas a amontoarem-se na maior promiscuidade, a bordo de navios que não estavam de todo preparados para as receber. 

A nossa Maria Isabel, com dez anos, partia para uma terra distante e, maioritariamente, quase incivilizada, na periferia do mundo europeu (que era então o centro do mundo). A casa de Bragança atravessava a imensidão do Atlântico em direção a um futuro desconhecido.

(1) Ramón de Mesoneros Romanos (1803–1882) foi vereador da Câmara Municipal de Madrid, cronista da cidade e jornalista.

(2) Wenceslau Ramírez de Villa Urrutia (1850–1933), primeiro marquês de Villaurrutia, foi um historiador diplomático e ministro de Estado do rei Afonso XIII de Espanha. Escreveu várias biografias, como, por exemplo, a de Fernando VII e a da sua mãe, a rainha Maria Luísa, nas quais recompila muitos tópicos sem constatar que eternizam imagens incorretas. 

(3) Fernando foi representado pelo infante Pedro Carlos de Espanha e a madrinha foi a tia-avó de Maria Isabel, a infanta Maria Benedita de Portugal.

(4) As aventuras de Eugénia são mais adequadas a um romance, pois acabaria por fugir de Portugal e viver de uma pensão concedida pela Coroa. Morreu, em 1818, durante a sua estadia no convento de Portalegre.

(5) A infanta Maria Benedita (1746–1829) era a filha mais nova de José I de Portugal e de Maria Ana Vitória de Bourbon, filha de Filipe V. Casou-se com o seu sobrinho, o príncipe José. 

(6) O infante Pedro Carlos de Bourbon (1786–1812) era filho do infante espanhol Dom Gabriel e da infanta portuguesa Mariana Vitória. Teve a infelicidade de ficar órfão ainda muito jovem e foi enviado para Portugal. Em 1810, casa-se com a princesa da Beira, Maria Teresa, a primogénita dos regentes. 

(7) Diz-se que o soube através de uma criada que era mulher de Francisco Rufino de Souza Lobato, seu cabeleireiro e pessoa da sua maior confiança.