Entrada

Já estão de garfo e faca na mão? Com o guardanapo no colo?

Sendo assim, peço‐vos ainda um momento de paciência, por favor. Temos de começar por uma breve introdução.

Antes de passarmos ao prato principal, vou ter de vos contar como, por pouco, eu ia sendo cozinheiro. Aos vinte e poucos anos, quando acabara de me formar, fui visitar uns amigos a Copenhaga. Em poucos dias, arranjei trabalho a lavar pratos num restaurante mexicano no centro da cidade. Era um emprego ilegal, claro, mas em quatro dias ganhei tanto quanto a minha mãe ganhava mensalmente na Polónia como professora. Isso ajudou‐me a aguentar o cheiro a fritos entranhado na pele e na roupa, mesmo depois de lavada, e aquela decoração medonha: no nosso restaurante, tropeçava‐se em cactos a cada passo, havia imitações de coldres de Colts penduradas nas paredes e, nos cabides, sombreros que, todas as noites, eram alvo de tentativas de roubo por parte de algum cliente encharcado em tequila. Entrava‐se na sala de refeições por umas portas de saloon saídas directamente de um western. Só na cozinha havia uma porta que podia ser fechada.

Ainda bem. Era melhor que os clientes não vissem o que se passava lá dentro.

Na cozinha, à frente das panelas, de cigarro pendendo do canto da boca, estavam os cozinheiros — todos vindos do Curdistão iraquiano. Tinham sido trazidos pelo patrão, um árabe que andava pela cidade num BMW brilhante e novinho em folha. Comprara aquele espaço a um canadiano que envelheceu cansado de ter um restaurante mexicano em Copenhaga. Não sei quanto pagara, mas o negócio ia de vento em popa. Contratou seis cozinheiros e eles não paravam, de manhã à noite. Nenhum tinha estado no México, e suspeito que, se lhes dessem um mapa, teriam dificuldade em localizá‐lo. Também não creio que, no passado, algum deles tivesse sido cozinheiro. Mas aprenderam a fazer burritos, fajitas, a fritar frango à maneira mexicana e a regar os tacos com um pouco de molho, de forma poupada, mas dando a impressão de estarem a derramar sobre eles uma porção generosa. Assim faziam: assavam e regavam. As pessoas gostavam e isso era o mais importante. «No Iraque não há trabalho» — diziam‐me os cozinheiros, como se tivessem de me dar explicações.

Ensinaram‐se a fumar marijuana antes de começarmos o trabalho. «De outra forma, isto não se consegue aguentar» — diziam eles, expelindo o fumo. Ensinaram‐me a contar até dez em curdo. Também aprendi com eles alguns palavrões, incluindo o pior de todos, aquele em que se refere a mãe de alguém.

Passava dias inteiros a trabalhar com três máquinas de lavar loiça, a esfregar à mão enormes panelas com os restos queimados de frango e, quando tinha algum tempo livre, a tentar domesticar um rato no lixo, levando‐lhe restos de comida. Fui buscar essa ideia estúpida a um filme qualquer. Felizmente, o rato era mais esperto do que eu e manteve‐se convenientemente à distância.

Os curdos eram bons amigos e planeavam por mim a minha carreira. «Vamos ensinar‐te a cozinhar» — prometeram eles. «Não vais ficar a lavar pratos a vida inteira.»

Era essa também a minha esperança. Aprendi assim a fazer burritos, a assar frango e a pôr molho nos tacos, tal e qual como eles o faziam.

Até que, um dia, o meu telemóvel tocou. Alguém dissera ao chefe de um outro restaurante que havia um rapaz que aceitava trabalhar ilegalmente. Esse chefe que‐ ria contratar‐me. Desta vez, eu ia ganhar tanto quanto a minha mãe, professora, ganhava mensalmente na Polónia — não a cada quatro dias, mas de três em três. Além disso, seria promovido de lavador de pratos a ajudante de cozinheiro. Sem pensar duas vezes, despedi‐me dos curdos e, dois dias depois, vesti um avental preto e ocupei o meu posto à frente do fogão a gás de um restaurante pequeno, mas apreciado, perto de Nørrebrogade, uma das principais artérias da cidade. Éramos só dois na cozinha: o proprietário, que se chamava August, e eu, Witold, o seu ajudante.

August era meio cubano, meio polaco, mas cresceu em Chicago. Não sabia dizer uma palavra nem de polaco, nem de espanhol. Trabalhou como cozinheiro durante a maior parte da vida em navios da marinha mercante. Com o restaurante pretendia garantir a reforma.

Enquanto os clientes não apareciam, podia‐se falar com August de um modo bastante normal, mas quando chegava a hora do almoço e seis das nossas oito mesas ficavam ocupadas, o demónio apoderava‐se dele. As panelas chiavam, os pratos voavam e August berrava. Era ordinário com quase todo o pessoal, mas a mulher dele, simultaneamente gerente do bar e sócia do restaurante, era sempre a mais insultada.

— August — anunciei‐lhe certo dia depois de mais uma dessas explosões, — se voltares a falar comigo assim, mesmo que seja só mais uma vez, atiro o avental ao chão e vou‐me embora.

August limitou‐se a sorrir.

— Witold, eu trabalho na cozinha desde sempre. Sei com quem posso gritar. — Ao ver a minha cara de espanto, acrescentou: — Trabalhamos juntos durante todo o dia, apenas nós os dois, em quatro metros quadrados. Posso até gritar‐te, mas és a última pessoa com quem eu quereria incompatibilizar‐me.

Afinal, a fúria dele era controlada! Na altura, passou‐ ‐me pela cabeça que ele poderia muito bem ter sido diplomata em vez de cozinheiro. Constatei, pela primeira vez, quão astutos e ardilosos os cozinheiros sabem ser.

Quando a situação na sala se acalmava, a tensão de August também diminuía. Costumava, então, contar episódios da sua experiência no mar. Passou nele metade da vida e tinha saudades. Nas suas histórias, havia golfinhos e baleias e tempestades e marinheiros solitários com que se cruzava no seu enorme navio. Havia ilhas tropicais e a fria Groenlândia. Havia o mundo inteiro.

Quando não tínhamos clientes, August tornava‐se um homem maravilhoso, caloroso, inteligente e cheio de sentido de humor. Depois, os clientes regressavam e ele voltava a enlouquecer.

"É Desta Que Leio Isto"

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Ao longo da história do nosso clube, já tivemos o privilégio de contar nomes como Teolinda Gersão, Afonso Cruz, Tânia Ganho, Filipe Melo e Juan Cavia, Kalaf Epalanga, Maria do Rosário Pedreira, Inês Maria Meneses, José Luís Peixoto, João Tordo e Álvaro Laborinho Lúcio, que falaram sobre as suas ou outras obras.

Para além dos encontros mensais para discussão de obras literárias, o clube conta com um grupo no Facebook, com mais de 2500 membros, que visa fomentar a troca de ideias à volta dos livros, dos seus autores e da escrita e histórias que nos apaixonam.

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Observei essas variações de humor durante vários meses. Cozinhávamos juntos todos os dias, e eu ajudava‐o a criar pratos para a nova ementa. Era mágico: como se ambos estivéssemos a pintar a Mona Lisa. Naqueles dias, August costumava pôr a arrefecer uma garrafa de algo mais forte. Ficávamos na cozinha até altas horas da noite, enquanto eu cortava vegetais e carnes e ele os preparava em composições cada vez mais elaboradas.

Mas as semelhanças com a pintura ficam‐se por aqui. Da Vinci não precisou de pintar a sua Mona Lisa uma e outra vez, sete dias por semana, enquanto nós nos víamos obrigados a repetir os pratos de August dezenas de vezes por dia.

August ensinou‐me como segurar uma faca para não cortar os dedos e como tirar o pão do forno sem me queimar. Ensinou‐me a fazer bifes, a fazer salada e um excelente creme de alho‐francês. Até aprendi com ele como ficar de pé na cozinha para aguentar o dia inteiro.

Ensinou‐me também que, depois do brunch de domingo, pelo qual éramos famosos, se sobrasse nos pratos alguma fruta mais cara ‐ framboesas, líchias ou algumas fisális, cobertas pelas suas casquinhas acastanhadas ‐ o que tínhamos a fazer era lavá‐las e colocá‐las no prato do cliente seguinte.

— São demasiado caras para que as deitemos fora — explicou‐me ele ao ver o meu olhar atónito.

Até que um dia, todas as nossas oito mesas ficaram ocu‐ padas em apenas cinco minutos, e ainda havia fila à porta. August não aguentou.

— Meu calão de merda! — gritou‐me. Aparentemente, só conseguia controlar a fúria até um certo ponto. — Estás a pensar na morte da bezerra!? Vai buscar o pão! — continuou ele a berrar.

Tarde demais. O meu avental já estava no chão.

Uns dias depois, August ligou‐me e até disse uma coisa qualquer que soou vagamente a «desculpa». Não que ele gostasse assim tanto de mim. Era apenas um trabalhador barato e para ele era compensador que eu regressasse.

Mas eu não tinha a mais pequena vontade de voltar a lidar com as suas variações de humor. Arranjei emprego a conduzir um tuk‐tuk às voltas por Copenhaga com turistas a bordo. Meio ano depois, voltei para a Polónia e tornei‐me jornalista.

Contudo, ficou‐me para sempre na memória o quão fascinantes podem ser os cozinheiros. São poetas, físicos, médicos, psicólogos e matemáticos, tudo num só. A maior parte deles tem uma história de vida incomum — é um trabalho em que uma pessoa fica exausta. Nem toda a gente é adequada para o exercer e eu sou o melhor exemplo disso.

Durante muitos anos, enquanto repórter, escrevi sobre temas sociais e políticos. Nunca pensei voltar a trabalhar em assuntos relacionados com a cozinha, embora, durante todo esse tempo, os cozinheiros tenham continuado a interessar‐me. Até que, um dia, vi um filme do realizador eslovaco‐húngaro Péter Kerekes intitulado Cooking History. Tinha por tema os cozinheiros militares e era protagonizado por Branko Trbovic ́, o cozinheiro pessoal do marechal Josip Broz Tito, senhor todo‐poderoso da Jugoslávia.

Foi o primeiro cozinheiro de um ditador de que tive conhecimento. Naquela altura, acendeu‐se em mim uma luz. Comecei a questionar‐me sobre o que poderiam dizer aqueles que estavam na cozinha em momentos‐chave da História. O que poderia estar a borbulhar nos tachos enquanto se jogavam os destinos do mundo? O que veriam os cozinheiros de soslaio enquanto vigiavam o fogão para que o arroz não se queimasse, para que o leite não transbordasse ao ferver, para que o bife não se estragasse ou para que a água das batatas não viesse por fora? Rapidamente, surgiram outras perguntas. O que terá comido Saddam Hussein depois de ter mandado gasear dezenas de milhares de curdos? Não terá tido dores de barriga? E o que comia Pol Pot na época em que quase dois milhões de khmers morriam à fome? E o que jantou Fidel Castro quando pôs o mundo à beira de uma guerra nuclear? Qual deles gostava de comida picante? Quem comia muito e quem se limitava apenas a debicar o que tinha no prato?

Quem gostava de carne mal passada e quem a preferia bem cozinhada?

E, finalmente: aquilo que comiam terá influenciado de algum modo as suas decisões políticas? Ou terá algum dos cozinheiros que os serviam usado os poderes mágicos da comida para desempenhar um papel na história do seu país?

Não tinha escolha. Tantas eram as perguntas à espera de resposta que tive de ir à procura dos cozinheiros dos ditadores.

Parti, então, em viagem.

Levei quase quatro anos a escrever este livro. Durante esse tempo, passei por quatro continentes: desde uma aldeola esquecida por todos na savana queniana, às ruínas da antiga Babilónia no Iraque, ou à selva do Camboja, onde se esconderam os últimos Khmers Vermelhos. Fechava‐me nas cozinhas com os cozinheiros mais incomuns do mundo. Cozinhava com eles, bebia rum, jogava mexe‐mexe. Íamos juntos aos bazares, regateávamos o preço dos tomates e da carne. Assávamos peixe e pão, cozinháva‐ mos sopa agridoce com ananás e pilaf de cabra.

Foi‐me difícil convencê‐los a conversar comigo. Alguns ainda não tinham recuperado do trauma de trabalhar para alguém que podia matá‐los a qualquer momento. Outros serviram fielmente os regimes e, ainda hoje, se recusam a trair qualquer segredo, mesmo os de cozinha. Também há aqueles que não pretendem simplesmente convocar memórias muitas vezes difíceis.

Poderia escrever mais um livro sobre como convenci os cozinheiros a confiarem em mim. Cheguei a demorar mais de três anos, num caso extremo. Mas consegui. Conheci a história do século XX a partir da cozinha. Descobri como sobreviver em tempos difíceis. Como alimentar um louco. De que modo cuidar dele como uma mãe. E até como um pum no momento certo pode salvar a vida de uma dúzia de pessoas.

Finalmente — o mais importante. Graças às conversas com os cozinheiros, compreendi como os ditadores aparecem no mundo. É um conhecimento importante num tempo em que, segundo o relatório da organização americana Freedom House, há quarenta e nove países governados por ditadores. Ainda por cima, este número tem crescido constantemente. O ambiente actual é favorável a ditadores e vale a pena sabermos o mais possível sobre eles.

Então, de novo... Já estão de garfo e faca na mão? Com o guardanapo no colo? Ainda bem.

Bom apetite.

Petisco

Quando conheci o Irmão Pol Pot, fiquei sem palavras. Estava sentada na sua cabana de bambu, no meio da selva, a olhar para ele. E a pensar: mas que homem tão bem­ ­parecido!

— Que homem!

Na altura, eu era muito jovem, por isso não fiques sur­preendido, irmão, por eu ter pensado aquilo. Eu estava ali para relatar qual o estado de espírito das pessoas nas aldeias por onde eu tinha passado a caminho da base onde ele se encontrava, e estava à espera que fosse ele a quebrar o silêncio. Mas ele não disse nada.

Só ao fim de algum tempo me sorriu levemente. E eu pensei de imediato: que sorriso maravilhoso!

— Que sorriso!

Não estava a conseguir concentrar­-me naquilo de que devíamos conversar. Pol Pot distinguia-­se de todos os outros homens que conhecera até então.

Livro: "Como Saciar Um Ditador"

Autor: Witold Szabłowski

Editora: Zigurate

Preço: € 19,80

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Encontrámo-­nos na selva, na base altamente secreta da Angkar, a organização a que pertencíamos. Nesse tempo todos tratavam ainda Pol Pot por Irmão Pouk, que na lín­gua khmer significa «colchão». Durante muito tempo, interroguei­-me sobre a razão de ser de tão estranha alcu­nha. Inquiri mesmo algumas pessoas a esse respeito, mas ninguém soube dar­-me uma resposta.

Só muitos meses mais tarde, um dos meus companhei­ros me explicou que lhe chamavam colchão, porque ele se esforçava sempre o mais possível por amortecer qualquer conflito. Era gentil. Essa era a sua força. Quando os outros discutiam, ele interpunha­-se e ajudava-­os mutuamente a chegarem a acordo.

É verdade. Até o seu sorriso era gentil; Pol Pot era a bon­dade em pessoa.

Dessa vez, tivemos apenas uma conversa breve. E quando a conversa acabou, o adjunto dele chamou­-me à parte e disse­-me que o Irmão Pouk precisava muito de uma cozi­nheira. Já tinha tido várias, mas nenhuma correspondeu às suas expectativas. Perguntou­-me se eu queria tentar.

— Quero, — respondi. — Mas não sei cozinhar.

— Não sabes como se faz uma sopa agridoce? — perguntou-­me o adjunto, surpreendido, porque essa é a sopa mais popular do Camboja.

— Dá-­me um tacho — disse­-lhe eu.

Quando ele me levou para a cozinha, descobri que sabia perfeitamente como fazer essa sopa. Juntei feijão comprido, batata­-doce, abóbora, courgette, melão, ananás, alho, um pedaço de carne — de frango ou de vaca — e ovos. Dois ou três. Podemos também adicionar tomate ou até raiz de lótus. Primeiro, cozes o frango, depois juntas-­lhe açú­car, sal e todos os vegetais. Infelizmente, não te sei dizer o tempo de cozedura, porque não tínhamos relógios na selva e eu fazia tudo a olho. Talvez mais ou menos meia hora. No final, podemos acrescentar raiz de tamarindo.

Também sabia fazer salada de papaia. Cortas a papaia em pedaços pequenos, acrescentas-­lhe pepino, tomate, feijão-­verde, couve, alho e um toque de sumo de limão.

Porém, quando a preparei pela primeira vez, Pol Pot não a comeu. Só mais tarde alguém me explicou que ele gostava dela à maneira tailandesa: com caranguejos secos ou com pasta de peixe e amendoins.

Era ainda capaz de fazer salada de manga, de fritar peixe e de assar frango. Ao que parece, na infância, devo ter observado a minha mãe a cozinhar. O Irmão Pouk não esperava mais do que aquilo. Eu estava apta a ser cozi­nheira.

Entrei naquela cozinha e não saí mais dali até ao fim do dia. Preparei o almoço, o jantar, e depois lavei e limpei os tachos e as panelas.

Foi assim que me tornei cozinheira de Pol Pot. Estava feliz por poder ajudar. Queria ficar naquela base pela Revo­lução. E por ele, o querido Irmão Colchão.

Pequeno‐almoço

Sopa de peixe à ladrão

Relato de Abu Ali, cozinheiro de Saddam Hussein

Um dia, o presidente Saddam Hussein convidou uns ami­gos para o seu barco. Levou alguns guarda­-costas, o secre­tário pessoal e eu, o seu cozinheiro, e partimos num cruzeiro pelo rio Tigre. Estava uma noite quente, uma das primeiras noites de primavera daquele ano. Na altura, o país não estava em guerra com ninguém, todos estavam bem­-dispostos, e Salim, um dos guarda-­costas, disse­-me:

— Abu Ali, senta­-te, hoje estás de folga. O presidente disse que ia ser ele a cozinhar para todos. Que nos ia pre­parar köfta.

«Folga... » Sorri, porque sabia que no caso de Saddam, essa palavra não existia. E se era para comermos köfta, comecei a preparar tudo para a grelha. Moí a carne de vaca e de borrego, misturando-­as em partes iguais com tomate, cebola e salsa. Coloquei tudo no frigorífico para que a carne, depois, ficasse bem agarrada ao espeto. Preparei uma tigela para lavar as mãos, acendi o fogo, levei ao forno pães pita, fiz uma salada de tomate e pepino. Só então me sentei.

No Iraque, todos os homens julgam saber fazer a carne grelhada. Grelham-­na apesar de não saberem. Era tam­bém esse o caso de Saddam: as pessoas frequentemente comiam por cortesia o que ele cozinhava. Não se ia dizer ao presidente que não se apreciava a comida preparada por ele.

Eu não gostava que ele cozinhasse. Mas, na altura, pen­sei que era impossível fazer mal a köfta. Se tiveres a carne preparada, tens de colocar no espeto uma camada fina, pressioná­-la com os dedos e pô-­la na grelha por uns minu­tos — e está pronto.

O barco pôs-­se em marcha. Saddam e os amigos abri­ram um whisky e Salim veio à cozinha buscar a carne e a salada.

Sentei­-me, à espera do que ia acontecer.

Passada meia hora, Salim veio outra vez, trazendo um prato de köfta: «O presidente também fez para ti.» Agradeci e disse que o senhor presidente era muito gentil, arranquei um pedaço de carne e enrolei­-a no pão. Provei e... senti de imediato a boca a arder!

— Água, rápido, água!

Atirei um copo de água para as goelas, mas não ajudou. — Mais água.

De nada serviu. Continuava a arder. Tinha as bochechas e as gengivas em fogo, as lágrimas começaram a escorrer­-me dos olhos.

Fiquei apavorado. «Será veneno?» — pensei. «Mas por­ quê?! Para quê?! Ou será que alguém quis envenenar Sad­dam e fui eu que comi o veneno?!»

— Mais um gole de água.

Ainda estarei vivo?

— Outro gole de água.

Estou vivo... Afinal não é veneno...

Mas, então, o que terá ele inventado?

Ainda tive de continuar a beber água por mais de um quarto de hora para lavar finalmente o sabor do picante. Foi assim que descobri a existência do molho tabasco. Alguém o tinha dado como prenda a Saddam mas como ele não gostava de comida picante decidiu, por piada, dá-­lo a provar aos amigos. E ao pessoal. De repente, andávamos todos a correr pelo barco e a beber água, tentando suavi­zar o sabor a tabasco, enquanto Saddam se mantinha sen­tado a rir.

Passados vinte minutos, Salim voltou para me pergun­tar se eu tinha gostado. Estava irritado e respondi­-lhe: «Se eu estragasse assim a carne, Saddam dava­-me um chuto no rabo e mandava-­me devolver­-lhe o dinheiro gasto nela».

Por vezes, fazia isso. Quando não gostava, exigia a devo­lução do dinheiro pago. Pela carne, pelo arroz, pelo peixe. Na altura, dizia: «Isto não vale nada. Tens de me pagar cin­quenta dinares.»

Foi isto que eu disse a Salim. Mas não estava à espera que ele fosse repetir as minhas palavras ao presidente. Quando Saddam lhe perguntou como reagira Abu Ali, o guarda­costas respondeu: «Disse que se fosse ele a cozi­nhar uma coisa assim, o presidente lhe daria um chuto no rabo e o obrigava a devolver o dinheiro.» Contou isto à frente de todos os convidados de Saddam.

Saddam deu ordens a Salim para me ir buscar.

Fiquei assustado. Na verdade, aterrorizado. Não fazia ideia de como Saddam poderia reagir. Ele não podia ser criticado. Ninguém o fazia: nem ministros, nem generais, muito menos um cozinheiro.

Então lá fui, zangado com Salim por me ter denunciado e zangado comigo próprio por ter disparatado, com uma resposta tão tola. Saddam estava sentado à mesa, com os amigos, tendo à frente os köfta e umas garrafas abertas de whisky. Alguns dos amigos ainda tinham os olhos ver­melhos. Era óbvio que também eles tinham experimentado tabasco.

— Ouvi dizer que não gostaste dos meus köfta — disse Saddam em tom sério.

Os amigos do presidente, os guarda­-costas, o secretá­rio, todos estavam a olhar para mim.

Eu estava cada vez mais amedrontado. Não poderia começar, de repente, a elogiar o prato de Saddam como se nada fosse. Iam aperceber­-se de que estava a mentir.

Comecei a pensar na família. Onde estava a minha mulher naquele momento? O estaria ela a fazer? Se os meus filhos já teriam voltado da escola. Não sabia o que me podia acontecer, mas não augurava nada de bom.

— Não gostaste... — repetiu Saddam.

E, repentinamente, desatou a rir.

Ria sem parar. Todos os que estavam sentados à mesa juntaram-­se­-lhe, começando a rir­-se também.

Em seguida, Saddam tirou cinquenta dinares, entregou­ ­os a Salim e disse:

— Tens razão, Abu Ali, foi picante a mais. Devolvo-­te o dinheiro pela carne que desperdicei. Vou preparar mais uns köfta para ti, mas sem o molho. Queres?

Quis.

Fez köfta sem tabasco. Esses ficaram muito saborosos, mas, tal como te disse: é impossível fazer mal a köfta.

1.

Ruas largas com centenas de casas destruídas por bombas, nunca reconstruídas, e checkpoints militares quarteirão a quarteirão. Cruzam‐nas táxis amarelos como canários, porque a cidade faz questão, nesse aspecto, de ser como Nova Iorque e todos os táxis devem dar nas vistas com a sua cor de limão maduro.

Após quase dois anos de pesquisa, Hassan, o meu guia e tradutor, encontrou, a meu pedido, o último cozinheiro vivo de Saddam Hussein. Chama‐se Abu Ali e, durante muito tempo, temeu uma vingança dos americanos por ter cozinhado para um dos maiores inimigos da América. Por isso, passou anos sem querer falar com ninguém sobre o ditador. Hassan demorou quase um ano a convencê‐lo.

Por fim, ele acedeu, mas impôs condições: não andaríamos pela cidade, não cozinharíamos juntos, nem podíamos ir visitá‐lo a casa, embora tenham sido esses os meus pedidos. Ficaríamos apenas fechados durante uns dias no meu quarto de hotel, onde Abu Ali me contaria tudo aquilo de que se lembrava e a história acabava aí.

— Ele continua com medo — explica Hassan. — Mas quer muito ajudar — acrescenta rapidamente. — É um bom homem.

Estamos então à espera da chegada de Abu Ali, e Hassan gaba‐se de que, apesar de ter acompanhado jornalistas de todos os países possíveis, em todas as frentes possíveis de todas as guerras e guerrinhas iraquianas possíveis, desde a invasão dos americanos à guerra civil ou à guerra contra o ISIS, nenhum desses repórteres partiu sequer uma unha. Para que eu não venha a ser uma inglória excep‐ ção nessa lista, Hassan proíbe‐me até de atravessar a rua sozinho.

Não acredito nele por completo quando me diz que a cidade é insegura: mesmo ao lado do meu hotel fica um showroom da Jaguar, um pouco mais adiante, um enorme centro comercial. Há polícias e seguranças armados por todo o lado. A cidade parece‐me segura.

— Sei que todos são amigáveis e sorridentes, — diz Hassan. — Mas lembra‐te, um por cento das pessoas são más.

Muito más. Para elas, um jornalista europeu solitário é um alvo fácil. Não saias sem mim para lado nenhum, repito: N‐E‐N‐H‐U‐M. Mesmo nós os dois não vamos sair para lado nenhum a não ser num táxi legal.

Acrescenta ainda que, há uns anos, os estrangeiros aqui eram sequestrados em massa. Geralmente eram libertados logo que a empresa para que trabalhavam pagasse o resgate. Mas nem todos voltaram.

E eu sou freelancer. Não há ninguém que vá pagar por mim.

No entanto, não há como enganar a natureza. Não consigo ficar parado, portanto, assim que Hassan regressa a casa ao encontro da mulher, eu saio para dar um passeio nocturno pelo bairro onde estou alojado. Passo por várias mesquitas, lojas de roupa, vendedores de masgouf, uma variedade local de carpa assada em enormes fogueiras. Paro para comer um gelado num café local. Falo com um vendedor de ovelhas criadas especialmente para o fim do Ramadão, o mês sagrado do jejum.

Comporto‐me como em qualquer outro país, em qualquer outra viagem. O Hassan não devia ser tão exagerado.

Já tarde, volto para o hotel e anoto, durante muito tempo, as impressões dessa caminhada. Adormeço bastante depois da meia‐noite.

Duas horas mais tarde, sou acordado por um estrondo terrível. Passados uns instantes, oiço sirenes. No hotel desligam as luzes e a internet.

Só de manhã fico a saber que um bombista suicida matou mais de trinta pessoas a poucas centenas de metros dali.