O Brasil é um país de poetas. Está-lhes no sangue, no mesmo sangue que é nosso. Ora, vejamos: Olavo Bilac, Carlos Drummond de Andrade, Mário Quintana, Oswald de Andrade, Vinicius de Moraes, Paulo Leminski. E poderíamos acrescentar mais um nome a esta lista, mesmo que não seja o de um poeta em sentido lato; até porque, para boa parte da população lusófona, em especial aquela dos 25 anos para cima, foi muito mais do que isso. Foi filósofo, foi professor, foi pregador, foi amigo do peito, foi parente. Foi uma mão quase invisível colocada sobre as nossas cabeças, para dar um cafuné gostoso na alma.
Esse nome é o de Maurício de Sousa, nascido a 27 de outubro de 1935 em Santa Isabel, no estado de São Paulo, homem que criou um império gigantesco a partir de uma turminha como as de tantas outras crianças: a da enfezada e dentuça Mônica (e o autor do texto baixa-se, pressentindo de imediato a coelhada), que nem sequer foi a sua primeira personagem neste mundo, pertencendo a honra a Bidu, o famoso cão azul, e a Franjinha, o jovem cientista cujas invenções já salvaram Mônica e Cia. de inúmeras encrencas, metendo-os em tantas outras. Um império que começou com uma simples vinheta num jornal e que se transformou em mais de mil milhões de revistas publicadas, séries de animação, canais no YouTube, parques temáticos de diversões, merchandising muito e naquele que, imaginamos, é o seu maior ponto de orgulho: o ter ensinado tantas, tantas, tantas crianças a ler.
Isso mesmo foi referido pelo próprio durante o painel que teve na Comic Con, que já foi descrito como o mais concorrido de sempre da história do evento, no que à BD e literatura diz respeito. Percebe-se porquê: Maurício pergunta ao público quantas pessoas leram as revistas da Turma da Mônica em miúdos e, de imediato, 99% dos braços presentes naquela tenda se erguem. A Mônica, o Cebolinha, o Cascão, a Magali, o Chico Bento e todos os outros personagens, tantos que se os enumerarmos gastamos meia página, são-nos tão naturais quanto respirar. Foi com eles que muita desta gente cresceu e se fez jovem, para depois se fazer homem.
A inspiração para a criação dessas personagens foi, também ela, natural: partiu dos filhos do próprio Maurício. Que só se conseguem contar pelos dedos de duas mãos, e irão ocupá-los todos, sendo exatamente dez. Mônica, Magali, Mariângela (Maria Cebolinha), Vanda, Valéria, Maurício Takeda (Do Contra), Mauro Takeda (Nimbus), Marina, Maurício Spada (Prof. Spada) e Marcelo (Marcelinho). Cebolinha e Cascão nasceram de amigos e conhecidos do autor. E os demais, das mais variadas inspirações.
Nesse campo, Portugal também é metido ao barulho. Em 2007, foi introduzido no mundo da Mônica um personagem de raiz lusitana, o António Alfacinha, que desde então tem aparecido (muito) esporadicamente nas revistas. “Alfacinha” de alcunha, Alcunha de sobrenome, e sobrenome é apelido - e sim, as próprias personagens também o acharam confuso. E “alfacinha” por ser lisboeta, claro, uma cidade pela qual Maurício nutre um enorme carinho. “É sempre um prazer, uma honra e uma satisfação muito particular eu estar respirando o ar de Lisboa”, confessa ao SAPO24 pouco depois do seu painel. “Conheço bastante a cidade, há muito tempo, desde a década de 60 para 70. Sou do tempo do Salazar, foi [nesse tempo que] vim as primeiras vezes. É uma cidade muito abraçadora, é envolvente. O carinho das pessoas, os cuidados que há, inclusive com a população, a segurança, bons costumes, educação... Tudo isso me fascina muito. Sou admirador da cidade e dos habitantes da cidade”.
Não que essa sua criação tenha ficado imune a críticas – e nem todas partiram da utilização do bordão ó pá, que é algo que o povo brasileiro crê que todos os portugueses dizem. A questão foi mesmo regionalista. “Criei [António] com muito desvelo, com muito carinho, mas também tive algumas críticas quando o lancei: me falaram que 'alfacinha' é de Lisboa, e não do restante de Portugal. Pensei: 'Meu Deus, preciso criar um personagem para Coimbra, outro personagem para o Porto, outro para os Algarves'... Então, estou devendo mais alguns personagens ligados à 'terra', ligados a Portugal. Conto vir a ter a facilidade e a oportunidade de fazer isso”.
Enquanto essas não chegam, a inspiração pode vir também da cultura pop – e não nos esqueçamos de que a Comic Con é a sua celebração. No entanto, muito antes da Comic Con já as historinhas da Turma da Mônica celebravam e parodiavam inúmeros aspetos daquilo que entendemos como cultura pop; lembramo-nos, por exemplo, de personagens inspiradas em músicos e cantores mundialmente famosos, como uma tal Mandona, um Maicú Jackson ou até mesmo uma Britnei Espirro. “Sou influenciado por diversas coisas que estão acontecendo no mundo”, revela Maurício, “coisas que vão enriquecendo a nossa memória, inclusive a que nós usamos para fazer as historinhas”.
Esse é um dos segredos para a longevidade da Mônica. O outro, como Maurício de Sousa explicou no seu painel, é estar “cercado de jovens e crianças”, ou de pessoas que se sintam jovens. A identificação do público com as personagens da Turma também ajuda, evidentemente. Todas elas têm traços de personalidade bem vincados, e que se relacionam com cada um de nós – pois “todas as pessoas do mundo têm as mesmas emoções”. Para além da maneila elada de falar de Cebolinha, da sujidade de Cascão, da falta de paciência (às vezes...) da Mônica e da gulodice da Magali, há também personagens que dirão mais a quem pertença a estas respetivas minorias: Jeremias, um menino negro, Luca, menino em cadeira de rodas, Humberto, o surdo-mudo, ou Dorinha, invisual.
Não que a função da Turma da Mônica seja a de erguer uma bandeira, principalmente a política. Essas questões poderão eventualmente ser abordadas numa nova fase da Turma, que já se encontra a ser planeada, a Turma da Mônica Adulta – que se seguirá à Turma da Mônica Jovem, lançada em 2008 e escrita ao estilo dos mangás japoneses, e que aborda questões mais próximas dos adolescentes. Maurício de Sousa sempre fez com que as suas personagens não demonstrassem quaisquer posições de maior (contraste-se Mônica à Mafalda, do argentino Quino, que não seria nada sem a sua contestação), mas a Turma da Mônica Adulta até poderá entrar por esses caminhos.
Sempre com regras, como é óbvio. A inclusão ou não dessa política “vai obedecer a uma lógica que eu tenho implantado, sempre, nas nossas criações”, explica-nos o autor. “Acho que os nossos personagens não devem levantar bandeira. Devem pegar a bandeira que está passando, que já passou, que já se introduziu no costume da população e na sociedade”. Para já, fica a ideia de que Turma da Mônica Adulta abordará temas reais, e em tempo real; a revista crescerá com quem a lê.
Assim como muitos dos fãs da Turma cresceram a ler os pensamentos diretos de Maurício, através do Horácio, o dinossauro vegetariano que é o alter ego do autor. É este, aliás, quem ainda produz, sozinho, todas as histórias que envolvem o pequeno filósofo verde. “O Horácio brota de mim”, diz. “Tenho que me regozijar, ficar alegre, porque eu tenho um personagem que fala de mim, fala do meu eu, fala da minha filosofia, fala das minhas observações particulares. Eu ainda sou o gerador das ideias e do comportamento do Horácio. Eu gosto muito do Horácio por causa disso”, remata.
Se, nesse sentido, Horácio se mantém estanque, o resto da turminha vai evoluindo a olhos vistos. Nas últimas semanas, tem sido destacada a chegada da Turma da Mônica ao Twitter – principalmente devido ao sentido de humor que ali encontramos, muito ligado à cultura da internet, dos memes. Maurício de Sousa não esconde a importância das redes sociais na divulgação dos seus muitos trabalhos. “São um grande caminho para nós estabelecermos uma comunicação nova, rápida e oportuna de tudo o que nós estamos criando. Então, temos que usar bem a Internet, as redes sociais e os serviços que há em comunicação para o transmitir”, afirma. “E não é só transmitir: a internet nos permite receber, também. Nós aprendemos muito com as redes sociais, não podemos demonizar, temos é que agradecer”.
Se o autor agradece às redes, os fãs (em especial os mais geeks) agradecem uma das outras novidades introduzidas no painel da Comic Con. Em dezembro, será lançado um crossover do universo da Turma da Mônica com o das personagens da DC Comics, nomeadamente o Super-Homem, o Batman ou a Mulher-Maravilha. Será o primeiro crossover da DC com personagens que não dos Estados Unidos, e surgiu após a editora norte-americana ter descoberto que não era sua a revista com mais exemplares vendidos, e sim da Turma da Mônica: 500 mil contra 200 mil. Sidney Gusman, editor, resumiu-o de forma muito simples e direta no painel: “chupa, DC...” Mas com humor, claro, porque agora há uma parceria a manter e histórias novas por contar, encantar - e até mesmo ensinar. Cá estaremos para as ler, letrinha por letrinha.
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