1

Dunshanbe, Tajiquistão

Presente

Foi assim que Artemis Aphrodite Procter ficou de castigo no banco. Acordou com um estranho cheiro almiscarado de uma atmosfera enevoada, no meio da escuridão, com os dentes a bater como se fossem um brinquedo de corda. As suas pálpebras, pesadas, resistiam a abrir-se. A madeira dura gelava-lhe a pele. Procter pestanejou através do emaranhado de caracóis negros, tentando ver o outro extremo do chão de um compartimento que não conhecia. Depois, ouviu passos e uma mão peluda ergueu-lhe suavemente os caracóis do rosto. Um homem ajoelhou e acenou-lhe.

– Bom dia, Artemis – disse-lhe em russo num tom alegre. A mente dela vacilou, girou, e os seus pensamentos perderam-se na escuridão. Examinou o compartimento. Uma mesa. Duas cadeiras junto à janela. As suas cuecas com um padrão de ananases amarrotadas no chão. Uma garrafa de vodka vazia caída ao seu lado, com a marca de um batom alheio no gargalo.

Sentou-se num sofá, completamente nua e gelada. O russo dirigiu-se a um cadeirão junto à janela. Acendeu um cigarro. Ela puxou os joelhos para o peito e fechou os olhos, porque o com- partimento girava à sua volta.

– Foi cá uma noite – exclamou o russo. – Vi coisas que nenhum homem devia ver. – A seguir fez estalar a língua. – És uma mulherzinha monstruosa.

– Quem és tu? – perguntou Procter, também em russo e com os olhos ainda fechados. A luz provocava-lhe tonturas e vertigem.

– Anton – respondeu.

Um minuto depois, Procter levantou-se com dificuldade e procurou a roupa. Além das cuecas, encontrou só o casaco de cabedal e os Reebok cheios de lama. E apercebeu-se de repente de um enorme buraco na memória, um completo apagão, desde que tinha pedido as bebidas na noite anterior. Tinha estado com um prostituto russo com acesso a pesos-pesados: o Kremlin, os serviços de segurança. E, ou ele estava morto, ou estava metido naquilo. Provavelmente as duas coisas.

Já com a visão mais firme, Procter apercebeu-se das cores dourada e azul da cúpula da Biblioteca Nacional através da janela. Salpicos de chuva batiam no vidro. A mesa diante de Anton estava cheia de pratos de comida, que parecia ser carne de cavalo, massa frita pegajosa e arroz gordurento.

Com alguma dificuldade, enfiou as cuecas e os Reebok, quase perdendo o equilíbrio por duas vezes e, a seguir, fez uma pausa para respirar antes de apanhar o casaco. Apalpou-o e sentiu os bolsos vazios: sem o telemóvel, as chaves e a navalha de ponta e mola. Deixou-se então cair numa cadeira diante do russo.

Anton soltou uma gargalhada.

Rui Cardoso Martins junta-se ao É Desta Que Leio Isto no próximo encontro, marcado para dia 17 de julho, uma quarta-feirapelas 21h00. Consigo traz o seu novo romance "As melhoras da morte", editado pela Tinta-da-China.

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– Artemis Aphrodite Procter. Chefe de posto da CIA. Funcionária pública mal paga. E, segundo as minhas fontes, mais uma vez ultrapassada na corrida à promoção para o SIS. Enviada de Amã para um fim do mundo como Dushanbe. E tudo por causa de critérios não especificados.

– Os meus critérios – disse Procter –, foram bem especificados.

Anton aplaudiu com as suas mãos peludas, e riu-se, com um cigarro pendurado nos dentes.

– Sim, a simpática Procter. Viajante sexual. Uma pervertida com certos... – fixou-a com uma expressão grave. – ...Apetites.

– E as mãos sujas de sangue russo – disse ela.

Uma nuvem toldou o olhar de Anton. Esmagou o cigarro no cinzeiro de metal e começou a preparar um prato.

Um litro de leite de égua fermentado transpirava numa garrafa de vidro. Uma coisa boa em Dushanbe, o leite de égua. Mas quando Anton lhe serviu um copo, ela atirou-o ao chão.

O russo soltou uma gargalhada abafada e passou por cima do rio branco e escorregadio para apanhar um dossiê pardacento de cima do sofá. Entregou-o a Procter e voltou à sua refeição.

– Temos muito mais fotografias, claro. Isto é só um aperitivo. Havia algumas tuas de barriga para baixo, por exemplo, mas acho que não estão aqui. Mas devo dizer que tenho alguma curiosidade em relação às tatuagens. E porquê nove? Tenho a certeza de que as histórias são fascinantes. De qualquer forma, vá lá, espreita. – Começou a comer com os dedos.

Procter percorreu uma mão-cheia de fotografias suas, nua, tiradas depois de ter sido drogada. Algumas eram bastante imaginativas, artísticas até. Duas ou três, quase perfeitas: a iluminação, a energia, os ângulos íntimos, aqueles que apropriadamente capturavam aquilo que Procter considerava serem os espíritos animalescos da sua persona sexual. Outras eram banais e excessivas: indignas da profissão, até no mais manhoso mercado da carne. Procter, que nunca se envergonhava, não achou nenhuma delas embaraçosa. As mamas, pensou, pareciam de um modo geral, muito bem. Atirou o dossiê para uma poça de leite de égua.

– Vai-te foder!

Anton acendeu outro cigarro.

– Artemis, por favor. É que se não cooperas, então, estas infelizes fotos vão ser publicadas online. E pomos-te fora da CIA. – De qualquer maneira é o que vão fazer, Anton, não é verdade?

Agora diz-me onde estão as minhas malditas calças?

O mundo tinha deixado de andar à roda. Levantou-se lentamente e começou a andar pelo compartimento.

– Vais ser mandada para casa, Artemis. Mais uma nódoa na tua carreira.

– A tua conversa até cheira mal. A ideia é mandarem-me para casa. Andas atrás de mim porque eu gosto de dormir com russos. Queres que eu me ponha a andar. De qualquer forma, devias investir num fotógrafo melhor, porque há aqui algumas – espetou o dedo no dossiê ensopado em leite –, horríveis. A minha resposta é esta. Vai-te foder! Vou-me embora daqui e vou reportar isto tudo a Langley e ao embaixador. Olha, uma ideia melhor. E se, em vez de eu mandar uma mensagem que te vai fazer parecer um idiota chapado, espiasses para mim? Que dizes?

Anton lançou um jato de fumo para cima da comida.

– Vai-te foder, Artemis.

Procter sorria.

– Creio que nos entendemos. Então? Onde estão as minhas calças?

Atirou algumas almofadas para o chão numa busca vã. Sentia-se irritada, pois as calças não apareciam. Uma quebra das regras, pensou. Pouco profissional. Muito mau. Virou o quarto do avesso enquanto Anton fumava. Teria mesmo deitado fora as calças?

– Vá lá, Anton. Está frio e sou uma mulher decente. Não posso bazar daqui com umas cuecas com ananases e um casaco de cabedal.

Procter ficou de pé à frente dele, com as mãos na cintura, a vê-lo acabar de fumar o cigarro. O riso dele ao ouvir a palavra decente, fez com que perigosas fantasias atravessassem a mente de Procter.

– Artemis, pensa na tua equipa. Se fores para casa não terão chefe. E ouvi dizer que alguns dos teus colegas partiram recentemente. Uma infeliz situação médica.

Dois meses antes, o subchefe do posto de Procter e a família tinham acordado no apartamento com vertigens e dores de cabeça. A mulher ficara cega de um olho. Procter suspeitava de um ataque de energia dirigida. Síndroma de Havana. Microondas que fritavam o cérebro.

Anton sorria enquanto lhe observava as pernas nuas.

Procter olhou para as calças de Anton com cara de poucos amigos. Uma sirene tinia-lhe na cabeça.

Depois, agarrou na garrafa de vodka vazia, partiu-a contra a mesa para ficar com o gargalo estilhaçado e, antes que Anton se pudesse baixar, cortou-o na face e enfiou-lhe o vidro na carne do ombro esquerdo, onde ficou com o gargalo pintado de violeta a apontar diretamente para o teto.

Anton berrou, tentou levantar-se e retirar o vidro, mas ela deu-lhe um pontapé no peito e ele caiu na cadeira. Um fio de sangue escorria-lhe pela cara. Ela esmurrou-lhe o nariz uma, duas, três vezes, até ouvir um rangido húmido e doce e um gemido entrecortado sair dos lábios dele. Depois agarrou na garrafa do leite que estava sobre a mesa e partiu-lha no crânio. A cabeça dele curvou-se e o leite e o sangue misturaram-se em cordões cor-de-rosa.

Procter voltou a mesa e atirou-a de encontro à parede, para arrancar dela uma perna cheia de farpas e esmagar o joelho de Anton. Depois de algumas pancadas, a luz encontrou caminho por entre a escuridão da sua raiva, ela atirou a perna da mesa para o lado e esbofeteou-o para o acordar. Em vão.

– Anton – chamou. – Acorda. Entusiasmei-me um coche. Anton estás a ouvir-me? – Fez estalar os dedos em frente à cara dele. – Anton?

Encostou-lhe os dedos ao pescoço. Sentiu a pulsação.

Nunca pensou sentir-se satisfeita por saber que um agente secreto russo estava vivo, mas graças a Deus.

Olhou então em volta do quarto destruído, e depois pela janela, perguntando-se se ele teria colegas ou uma equipa a vigiar com câmaras. Tirou-lhe as calças, vestiu-as e disse ao russo inconsciente:

– Isto é por me teres gamado as calças.

O homem era muito mais alto e gordo, por isso, enrolou trinta centímetros de tecido nas pernas e apertou o cinto até onde deu. Meteu o dossiê com as fotografias dentro do casaco. Mas depois voltou a tirá-lo e folheou as fotos até encontrar uma: um belo instantâneo que enquadrava a sua flexibilidade e robusta feminilidade. A sua maldita força silenciosa. Amachucou a fotografia numa bola e enfiou-a nas cuecas de Anton. Depois saiu porta fora.

O dia continuou a desenrolar-se. Na embaixada houve uma sessão de autocrítica com o cretino do embaixador. Ela enviou uma mensagem a contar as suas dificuldades e recebeu uma reação desagradável da parte do Diretor e dos manda-chuvas de Langley. Depois, uma conversa entrecortada com o subdiretor Bradley, com palavras e um tom que evocava murmúrios tranquilizadores a um muito amado cão antes de lhe ser praticada a eutanásia.

Livro: "Moscovo X"

Autor: David McCloskey

Editora: Lua de Papel

Data de Lançamento: 9 de julho de 2024

Preço: € 19,90

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Hora do jantar: as fotos apareceram em vários sites anónimos, com os links amplificados por bots nas plataformas das redes sociais. Também indicavam Procter como chefe de equipa de Dushanbe.

A informação oficial recordava-a de que Langley chegaria ao final da tarde. A missão acabara. Teria de apanhar o primeiro avião a sair de manhã. Agentes de apoio fechar-lhe-iam o apartamento e enviariam os seus pertences para a Virgínia. O ataque violara uma data de leis do Tajiquistão e, mais importante ainda, levantava o espectro da ciber retaliação pela hospitalização daquele que, desde então, a CIA soubera ser um importante agente secreto enviado de Moscovo. Os médicos esperavam a sua recuperação, dizia um memorando do oficial de ligação que praticava oversharing com a CIA por dinheiro. Mas Anton ficaria com sequelas, nomeadamente, um conjunto de cicatrizes, um defeito no andar derivado do trabalho de Procter nos seus joelhos e, graças a uma garrafa de leite de égua, o eterno espectro de uma diminuída capacidade mental. Alguns intrépidos membros do posto organizaram uma apressada e afetuosa despedida da Chefe, trazendo um bolo em que estava escrito, com um erro: Vamos sentir a sua falta Chef.

Quando a Equipa se retirou para ir descansar, Procter fechou o computador e colocou o disco rígido no cofre. Tinha pouca coisa para guardar: no seu estéril gabinete não havia fotos de família, nem Me Wall com presentes ou bugigangas ou arte. Nada de deco- rações de qualquer espécie. A sua única cedência era um bastão de basebol autografado por todos os membros da equipa dos Cleveland Indians do Campeonato de 1997: a receita administrativa secreta para incentivar a produtividade da equipa. Em Damasco guardava uma espingarda no gabinete, mas em Amã tinha havido queixas e agora tinha o bastão. Levava-o sempre consigo; olhava-o com uma expressão ansiosa durante as reuniões operacionais da manhã; mantinha-o encostado a um canto da parede, visível durante as chamadas de vídeo com a sede.

Procter balançou o bastão num arco preguiçoso através do ar reciclado do seu gabinete. Sabia que não podia ficar em Dushanbe, mas desprezava a colmeia que era a sede, a zumbir de graxistas, mais ansiosos por terem acesso e pelos donuts do que pelos frutos da espionagem. Que merda de dia.

Bateu com o bastão na mesa de contraplacado do seu gabinete. Fez um risco. Depois repetiu o golpe, rachou a mesa e continuou até a destruir completamente e se sentir satisfeita e a transpirar. Apagou as luzes do gabinete. Com o bastão ao ombro, começou a fechar o Posto.

A sede, Deus do céu! Mas que mais podiam fazer com Procter, uma réproba impulsiva e também uma chefe e operacional respeitada com anos de experiência no campo internacional?

Estava de castigo no banco. Uma estada de dois anos na sede sob apertada supervisão. Uma vez completada a punição de forma satisfatória, poderia um dia voltar a chefiar um Posto. Porque era competente, não uma merdosa incapaz de gerir as operações. O subdiretor Bradley tinha sugerido que lhe ia encontrar qualquer coisa importante. Procter assegurou-se de que não ficava um único papel sobre as secretárias. Confirmou que os cofres estavam fechados. Depois trancou a pesada porta de metal do Posto de Dushanbe pela última vez.

2

Langley

Na manhã seguinte a ter chegado aos Estados Unidos, a sofrer de jet-lag, com os ouvidos a zunir de exaustão, Procter aguardava para se encontrar com Ed Bradley, subdiretor da CIA, sentada num dos sofás à entrada do gabinete que ele ocupava no sétimo piso. A sala de espera fora decorada a partir de um catálogo de aquisições do governo: toda a mobília em madeira falsa, levemente lascada, a descascar ou partida. Havia uma mesinha levemente manchada, cheia de revistas. Como em todas as salas de espera de todos os tempos e em toda a parte, o material de leitura estava, tal como o mobiliário, havia muito, fora de prazo.

Quando por fim a deixaram entrar, Bradley estava sentado à secretária, inclinado sobre o MLP, um telefone seguro, com as dimensões de uma impressora, que ligava as principais 14 entidades nacionais. Um botão para o Diretor, outro para o Conselheiro de Segurança Nacional, outro para o Secretário de Estado, para o da Defesa, e por aí adiante. O gabinete tinha janelas enormes com vista para as árvores próximas do Potomac, agora cor de ouro, vermelho e laranja. Bradley tinha um metro e oitenta e oito, fora defesa na Universidade do Texas e um lendário case agent que se aposentara depois de ter sido chefe da antiga Divisão do Próximo Oriente. O novo diretor pedira-lhe que regressasse como adjunto. Ele e Procter conheciam-se havia décadas.

O placard por trás da secretária de Bradley estava quase vazio, tal como ela se lembrava. Mas sobre o aparador havia fotografias da mulher e das filhas, juntamente com alguns presentes de amigos especiais. Procter reconheceu uma lasca de metal retorcido, de quando ela ajudara a explodir a porta de um Mitsubishi Pajero na baixa de Damasco, havia já uma eternidade. E, pregados na parede, encontravam-se os favoritos de Bradley – um míssil neutralizado, que lhe fora oferecido por ter liderado o programa de Stinger contra os soviéticos no Afeganistão e, mais recentemente, um lança-mísseis pela ação de trabalho infiltrado na Ucrânia, contra os russos.

Procter arrastou-se até uma cadeira fora do alcance dos lançadores enquanto Bradley revia as fichas contidas na sua agenda diária. O seu olhar de desagrado variou entre a ficha e o MLP, como se não pudesse suportar a tarefa seguinte. A ficha desapareceu no seu bolso, quando ergueu os olhos e a viu. Lançou-lhe um breve sorriso.

– Há uma eternidade – disse ela, melancólica, a olhar para os lançadores. – Mais uma ajuda para a indústria russa dos caixões de zinco. O que está feito, está feito, e tudo o mais. Ámen.

Bradley disse ámen e deu-lhe um grande abraço. – Artemis, como tens passado?

– Do melhor, Ed.

Ele fez uma careta.

– Lamento. Malditos russos.

– Devíamos mandar estampar isso numa t-shirt.

– Tens tudo aquilo de que precisas? Os médicos e os psicólogos dizem...

Ela ergueu a mão.

– Já percebi que estou de castigo no banco. Mas não me obrigues a ficar sem fazer nada. Estou bem, mas preciso de trabalhar. De fazer qualquer coisa.

– Devias mesmo descansar.

– E a fazer o quê?

– Diria que tratasses de te pôr realmente boa. Endireita essa cabeça.

– Vá lá, Ed. Conhecemo-nos há mais de 20 anos. Isso foi chão que já deu uvas.

– Estou preocupado contigo, Artemis. – Uma breve tristeza passou pelo estoico semblante de Bradley, mas desapareceu quando Procter emitiu um breve gemido.

– Estás a ficar piegas com o passar dos anos, Ed. Caramba, já te disse que estou bem. Se quiseres que não fique bem, então vai em frente e põe-me de licença administrativa para eu beber até morrer no Reston Town Center. É isso que queres? A bófia a ligar-te para casa porque estou a emborcar shots de tequila e a gritar coisas sobre a CIA no parque de estacionamento?

– O Diretor queria despedir-te. Disse que o teria feito se isto fosse uma empresa normal.

– Uma empresa normal nunca me contrataria. Então e os russos? Emitiram um protesto?

– Nem um pio, por enquanto.

– E como pensamos nós reagir? – Bradley desviou o olhar e fechou um punho com força. – Credo, Ed, a sério? Nada? Os russos drogaram-me. Tiraram-me um monte de fotografias em pelo. Lançaram um ataque de energia dirigida ao meu vice...

– Essa investigação ainda está a decorrer, Artemis.

– Fizemos uma análise a provar que equipas assassinas chegaram a Dushanbe três dias antes de isso acontecer.

– E eu concordo com essa análise. Digo-te apenas que está a decorrer uma investigação. E que, até aqui, a Casa Branca se tem mostrado relutante em ponderar opções retaliatórias agressivas.

– Se nada fizermos, os russos vão continuar a picar-nos – rosnou Procter. – São uns bárbaros sem limites nem moral, Ed. É assim que funcionam. E não se trata de mim. Mais ou menos nos últimos dez anos, todos vimos o Putin provocar e espicaçar-nos e lixar a CIA e os Estados Unidos com a mais completa impunidade. Ultrapassa os limites e nada fazemos. Invade a Georgia. Deseja a Ucrânia, provoca uma pequena insurreição, depois invade e comete uma quantidade enorme de crimes de guerra. Fecha centrais elétricas. Anda a brincar dentro da nossa rede a planear sabe-se lá o quê... – Bradley ergueu delicadamente a mão, que Procter impediu. – Provocou-nos com ondas de ciberataques e de malware. Os vampiros dele envenenaram e assassinaram gente em todo o mundo: Reino Unido, Bulgária, que raio, até aqui em Washington. Tentaram orquestrar um golpe de Estado no Montenegro. Na merda do Montenegro, Ed! Os russos atacaram fisicamente os nossos agentes em Moscovo. O merdas do diretor do FSB esmurrou um deles na cabeça! Na cabeça, Ed, depois de ter sido preso! As milícias abateram um avião malaio sobre a Ucrânia. Os russos pagaram subornos aos talibãs para matarem soldados americanos. Confundiram-nos a cabeça nas redes sociais aqui no país. Deram cabo do cérebro de dezenas de agentes da CIA com armas de energia dirigida. E sim, drogaram-me e tiraram fotografias das minhas partes íntimas. E nada disso – pigarreou – resultou em mais do que um aviso. Temos de começar a demarcar a merda de uma linha que essa barata do Kremlin não possa ultrapassar.

– Concordo cem por cento contigo, Artemis – disse Bradley. – Inteiramente.

– Quero participar – disse Procter. – E ouvi dizer que há uma vaga, a nova loja secreta que trata de todas as arrepiantes operações russas. A Moscovo X.

– A história da Moscovo X? Artemis, o diretor não é teu fã, especialmente depois...

– Das coisas desagradáveis em Amã. E agora Dushanbe.

– Certo. Esse desagrado faz com que sejas difícil de aceitar. – Então, onde me queres colocar?

Bradley olhou para os lançadores.

– Quero-te a trabalhar a Rússia.

– Pois então trata disso.

A manhã de outono estava invulgarmente quente e húmida quando Procter atravessou o parque de estacionamento da sede original da CIA (OHB). Em Langley, a multidão apressada para chegar ao emprego corria à sua volta como água. Uma sentença de dois anos neste campo de prisioneiros, pensou. Inacreditável. A vantagem seria que se Bradley conseguisse convencer o Diretor a dar-lhe a missão Moscovo X, teria uma melhor oportunidade de destruir russos a partir de Langley do que de outro lado qualquer. E tinha ideias maravilhosas para os lixar bem lixados. Saiu com o seu Prius do recinto e dirigiu-se ao Vienna Inn, o bar que tinha acomodado inúmeras horas felizes, celebrações, promoções e até um ou dois velórios irlandeses depois dos funerais dos camaradas da Agência. Procter pensava abancar aí para uma farra de duas, talvez três noites.

Procter arrancou para a Virgínia do Norte, excitada por uma visão escabrosa do caos em Moscovo, ao som da bela melodia do Lago dos Cisnes. Se fosse uma mulher religiosa, poderia ter acredi- tado que a mão de Deus a tinha pintado na sua mente. Não sabia o que de facto pensar acerca de Deus, mas calculava que, por aquela altura, qualquer divindade razoável teria contas a ajustar com o Kremlin. Depois do que tinham feito, Deus não a ia impedir de dirigir uma sólida operação contra os russos.