Colocar humoristas a falar - sem rir - da sua arte. Foi este o desafio a que se propôs Nelson Nunes, de 30 anos, no livro "Com o Humor Não se Brinca". Ele arrancou-os dos palcos para a intimidade, o SAPO24 meteu-o sob os holofotes do Villaret para descobrir como foi esta experiência. Ricardo Araújo Pereira, Herman José, Nuno Markl ou Diogo Faro são alguns dos visados nas mais de 300 páginas deste livro.
No prefácio, Filipe Homem Fonseca escreve que o título era para ser "Perder a Fórmula de Deus", é verdade?
Não, não! Isso é uma piada dele. É um trocadilho com um livro do José Rodrigues do Santos, que é a “Fórmula de Deus”, e o “Prometo Perder”, do Pedro Chagas Freitas. Um paralelismo com escritores de qualidade contestável (risos).
"Com o Humor Não se Brinca". Tu não brincaste com o humor?
Não, de maneira nenhuma. Aqui, o que eu queria fazer era agarrar nas pessoas que mais nos fazem rir e pô-las a falar a sério sobre o seu ofício.
E o título vem daí?
Os humoristas dizem que não há limites para o humor, que não existem assuntos sagrados, e que podemos falar sobre tudo quando toca ao humor. Mas, ao mesmo tempo, sentia que eles levavam a sua arte muito a sério. Portanto, cheguei a este paralelismo: pode-se brincar com tudo, menos com humor. Porque eles levam-no muito a sério.
Esta obra também passa para um nível muito mais sério quando o Nuno Markl diz: “O Nelson é bem capaz de ter escrito o livro definitivo sobre a moderna comédia portuguesa”. Concordas?
Pois... Eu acho que o que está aí escrito tem várias interpretações possíveis. A moderna comédia portuguesa para mim significa o momento que a comédia vive. O Pedro Boucherie Mendes disse há pouco tempo, no Facebook, que fazer comédia já não é moda, é indústria. E esse novo momento é para mim a moderna comédia portuguesa de que fala o Markl. É o momento em que a coisa já é muito mais séria do que era há 10 anos. E como é séria, tem de ser levada a sério, portanto vamos conversar a sério sobre ela.
O livro é uma enciclopédia da comédia, dizem. Rejeitas o rótulo?
As pessoas olham para isto como uma enciclopédia do humor português contemporâneo, quando não é isso. Isto são conversas conceptuais sobre as carreiras destas pessoas que eu escolhi, com base no meu gosto pessoal. Não há nenhuma outra pretensão.
Mas não achas que é o que uma capa com Ricardo Araújo Pereira, Bruno Nogueira, Herman José e Nuno Markl sugere?
Admito que há margem para outra interpretação. Quem olha para isto como uma enciclopédia no primeiro momento é a única interpretação que faz. É errada. O livro é sobre o momento da comédia, e não sobre todos os protagonistas. Escolhi aqueles que para mim são os melhores e os mais relevantes.
Isto são conversas sobre comédia, ponto final.
Estão aqui todos?
Eu não acho que faltem nomes. Há três pessoas que eu adorava ter tido no livro, mas depois este teria 500 páginas e era uma chatice porque ficava muito caro.
Quem eram?
O Rui Xará, o Hugo Sousa e o António Raminhos. Cheguei a conversar com o Raminhos, mas ele evaporou-se, e acabou por ser uma seleção natural.
Soubeste de alguém que tenha ficado chateado por não ter sido convidado?
Sim.
Quem?
Acho que não vale a pena dizer nomes. Essas pessoas foram vítimas da sua própria falta de conhecimento sobre o livro. Conversei com três que achavam que determinadas áreas não estavam representadas, quando na verdade este livro não é um mapa sobre o humor português. Isto são conversas sobre comédia, ponto final.
Aceitaram a tua justificação?
No fundo o que eles estavam a querer dizer era: "Ah, eu também queria". Eu expliquei o que tinha a explicar. Algumas aceitaram, outras não. Mas isso é problema delas. Até sei de gente que não disse nada publicamente, mas também ficou ‘meio roída’.
Desta forma parece que fizeste algo muito seletivo, mas falaste com 26 humoristas.
Mesmo assim falei com 26, já viste? E ainda assim há muita gente que diz que falta aquele e o outro. Para mim não falta. Mas se há margem para outros? Há, é claro que há.
No final o que importa é o autor sentir que a sua obra está fechada com os protagonistas que quer, não?
Para mim este livro está fechado por isso, tem as pessoas que eu queria. Agora, quando me dizem: "não era giro ter o Fernando Rocha porque dá outra perspetiva à coisa?". Era. "Não era muito giro ter o Rui Xará porque dá outra perspetiva à coisa?". Era. "Não era giro ter um ator de comédia porque ...". Era. Mas não cabe, neste livro não cabe.
E o que é que cabe neste livro?
Eu gosto muito de colocar determinados protagonistas em contextos nos quais não é habitual vê-los. O meu livro anterior, “Quando a Bola Não Entra", é sobre os jogadores de futebol, mas aqueles a quem a carreira não correu bem.
Na introdução do livro contas que um professor te disse que se quisesses muito ler um livro, mas não o encontrasses, tinhas de o escrever. Foi pontapé de saída?
Eu queria muito ler depoimentos e conversas com aqueles que para mim são os melhores humoristas portugueses e, como não havia, decidi fazê-lo.
Já agora, ficaste a conhecer pessoas por quem nutres admiração.
Foi essa 'batota' de estar com eles enquanto ‘fan boy’, mas ao mesmo tempo conseguir falar com eles sobre coisas que me interessam e para as quais gostava de encontrar resposta, enquanto amante de humor.
Esse lado de ‘fan boy’ é algo de que tens falado muito nas entrevistas.
O jornalismo é uma batota para a gente conhecer que se admira. E, neste caso, foi uma batota completa, foi mesmo à descarada (risos).
E depois do Ricardo Araújo Pereira (RAP) te ter dito que achava que “isto ia ficar uma coisa gira”?
Andei insuportável durante três semanas. Basicamente, foi isso (risos). Honrou-me muito. É um elogio com que vou ficar para a vida.
Como foi o encontro com ele?
Foi numa Padaria Portuguesa. Ao telefone ele disse, "não sei se sabe, mas o Zé Diogo tem aí um negócio de padarias. Vamos ali a uma". Ele é dos únicos que me trata por você. Foi um final de manhã, quase pequeno-almoço. Passámos umas 3 horas a conversar.
O Salvador diz que o humor parte sempre da surpresa, mas o Ricardo diz que se chegar a casa e encontrar a sua mulher com dois angolanos ficaria surpreendido, mas não iria achar graça nenhuma. E é isto: não há verdades adquiridas no humor.
É a conversa que guardas com mais carinho?
Não sei se consigo colocar as coisas assim... O facto de o Markl me ter aberto a porta de casa, o facto de o Quadros me ter recebido em casa, o Herman também me recebeu em casa. Todos eles foram muito generosos, porque eu sei que o seu tempo é valioso. E o facto de haver um gajo que eles não conhecem de lado nenhum a pedir quatro horas do seu tempo, e eles dizerem que sim... Fico muito contente.
Mas houve certamente momentos que te marcaram mais...
Sim, há uns que são muito especiais por todo o envolvimento. Perguntar ao Nilton se rouba piadas, que é algo que é muito falado; perguntar ao Herman o que é o humor… Eu cresci a ver o Herman! O Tal Canal, Herman Enciclopédia, o Parabéns... Foram as primeiras coisas de humor que vi. Para mim foi muito especial poder fazer-lhe essa pergunta.
O que querias com o livro?
Eu estou sempre a brincar a dizer que este livro é algo egoísta, mas o fundamento base disto era até muito altruísta: eu queria que as pessoas os ouvissem a falar sobre a arte deles. Eu queria conseguir o maior número possível de vozes - nomes com um público gigantesco e que fossem dos mais consensuais. Queria mostrar às pessoas a diversidade gigantesca de opiniões que há sobre determinados assuntos, mesmo entre eles.
E encontraste uma diferença assim tão grande?
Quando a pergunta era: "há limites para o humor?", a resposta foi consensual: "não, claro que não". A não ser o Herman José. O Herman diz que sim, dependendo dos contextos. Depois tens perguntas como: "o que é que é o humor?". E aí temos respostas totalmente diferentes. E todas são válidas, o que é impressionante.
Podes dar um exemplo?
Lembro-me do RAP e do Salvador Martinha, por exemplo. O Salvador diz que o humor parte sempre da surpresa, mas o Ricardo diz que se chegar a casa e encontrar a sua mulher com dois angolanos ficaria surpreendido, mas não iria achar graça nenhuma. E é isto: não há verdades adquiridas no humor.
E isso ajuda a chegar a algum lado?
O humor é um paradoxo tal que tu chegas a ter coisas como "o humor é luz", ou, como dizia o Eça de Queiroz nas "Farpas", "o humor é castigo e salvação". E é o que o Ricardo diz aqui: "se calhar, assim chegamos mais facilmente a algum sítio, porque pode ser de facto várias coisas”. E isso é uma coisa gira.
O Ricardo diz que qualquer definição sobre o que é o humor é uma frase incompleta.
Sim, por isso é que eu fiz um livro com 350 páginas e mesmo assim não tenho uma resposta sobre o que é que é o humor.
Mas haverá uma resposta?
Não acho. E o bonito é que existam várias opiniões, porque assim vamos aprendendo aqui e ali. Não leva só uma coisa, não é um facto histórico como "em 1841 não sei quantos definiu que o humor é … cenas".
E as mulheres na comédia? Só há duas mulheres no teu livro...
É uma inquietação grande. Eu queria ter mais, só que humoristas - partindo da definição que eu dou no início, que é minha e por isso vale o que vale -, enquanto autores de piadas e intérpretes das próprias, são muito poucas. Por isso é que não entram aqui atores ou atrizes de comédia. Porque se entrassem atrizes de comédia obviamente que eu tinha de ter a Maria Rueff. Era mais do que óbvio. Mas não podia ter porque essa não é a minha definição de humorista. A Rueff não escreve. É uma ótima intérprete, se calhar a melhor que temos em Portugal, mas não escreve e portanto não cola aqui.
Então é aí que está a diferença, por exemplo, entre o César Mourão e a Maria Rueff?
Com o César Mourão é ao contrário. Os pontos de partida não são dele, mas o texto é. E na Maria Rueff, o ponto de partida às vezes pode ser dela, porque o vislumbre da personagem é sempre dela - ela lê um texto e o vislumbre da personagem é dela -, mas ela interpreta textos de outros. E com o César é ao contrário, há um tipo na plateia que diz "você agora é um padeiro". E ele aceita. Ou seja, ele está a fazer texto em tempo real, que é outra coisa impressionante. Ele não tem hipótese de passar uma borracha por cima. Está dito, está dito.
O César Mourão é um caso à parte dos restantes, não?
Ele num exercício de humildade, parece-me, diz que faz o mesmo que faz um guionista quando está a escrever. Um guionista quando escreve improvisa, disse-me. Mas não é bem assim. Um guionista pode apagar e escrever outra vez amanhã, e está tudo bem. Ele está ali em palco e tem três mil pessoas à sua frente. Não é bem a mesma coisa. Ele faz comédia e teatro, mas o texto, em 90% dos casos, é dele e improvisado!
Voltando às mulheres na comédia.
Eu gostava de ter mais mulheres no livro, mas humoristas com a definição que dei não consigo encontrar ninguém que seja tão consensual, tanto na nova geração como na mais antiga, como a Joana Marques e a Cátia Domingues.
Porquê?
A Joana porque escreve desde - praí! -, 2008, portanto já leva oito anos disto. Tem os "Altos e Baixos" no Canal Q, foi uma das fundadoras do canal, faz stand-up. É completíssima. Depois tens a Cátia Domingues que tem um blog e uma página no Facebook, e uma rubrica no Canal Q. Sendo da nova geração, é algo de relevo. E há uma coisa que eu adoro: a abrangência de temas.
Falam de tudo?
Não há nada que as circunscreva ao facto de serem mulheres. É óbvio que podem fazer uma piada ou outra com temas mais ligados ao sexo feminino, mas elas não se cingem a isso. E para mim isso é o problema de muitas humoristas portuguesas. Cingem-se a isso, e depois não há mais por onde explorar.
Mas porque achas que existem tão poucas mulheres na comédia?
Não faço a mínima ideia. Há várias teorias.
Uma diz que as mulheres não têm capacidade biológica porque não exercitaram o músculo do humor através da sedução. Uma vez que os homens, ao longo da história, é que tinham de seduzir sempre. E o humor, sendo uma ferramenta, foi exercitado. Era uma teoria do Christopher Hitchens.
Depois há outra opinião - do Herman - que diz que as mulheres estão num estado tal de evolução que já não têm fantasmas, e portanto não querem saber das coisas que as atormentam. E a partir daí não têm necessidade de fazer humor com isso, e os homens têm.
"A minha maior ambição é estar sossegado". RAP
Concordas com alguma dessas teorias?
Eu não acho que seja biológico, porque as mulheres têm um enorme sentido de humor. Olhamos para um público de uma cena de stand-up e mais de metade são mulheres.
Então como justificas isto?
Eu identifico-me com a opinião partilhada pela maioria dos humoristas: pressão social. Um homem sobe a um palco, vai-se expor ao ridículo, e ele ainda não disse nada e se calhar já há gente a rir.
Uma mulher sobe a um palco e o clima é completamente diferente. Até na própria audiência, nas próprias mulheres se sente isso. Há sempre preconceitos, e o que acontece é que por causa disto as mulheres têm mais medo de se expor ao ridículo. Parece que têm de ser sempre muito sérias e muito circunspectas. E isto provoca outro problema: se calhar há muito boas humoristas por aí só que têm medo de subir a um palco ou têm medo de escrever determinadas coisas. Não aparecem, e as pessoas não sabem que elas existem.
Achas que isso se vê mais em Portugal por uma questão histórica?
Nos Estados Unidos tu vês que há mais humoristas no feminino, mas eles são 300 milhões, não são 10.
A história tem-se vindo a alterar, e isso vê-se por um dos nomes do teu livro: o Herman José. O Herman já não é o marco que era...
Isso tem dois lados. Um deles é a imagem do Herman que, por vários motivos, talvez se tenha desgastado. E depois, a partir de 2003, o Herman tem uma coisa que nunca tinha tido antes: concorrência. E concorrência muito boa, especialmente com o “Levanta-te e ri”. Esse programa mudou tudo. O RAP aparece lá, o Bruno Nogueira, o Nilton. Há montes de comediantes de stand-up que aparecem. E a concorrência tirou-lhe muita luz na ribalta.
O Herman era quase uma incubadora de comediantes...
Nem mais, a "CENA" era escrever para o Herman. Se fores ver, de 10 pessoas que escreveram para ele na década de 90, ou no início da década de 2000, 7 se calhar estão neste livro. Quadros, Pina, Markl, RAP, Filipe Homem Fonseca... E eles começam assim, para o Herman. Mais tarde libertam-se e tornam-se eles próprios humoristas. Deixa de haver uma fábrica a fazer coisas para o Herman, e os maiores talentos estão agora a fazer coisas em nome próprio.
O “Levanta-te e Ri” foi a segunda incubadora...
Aquilo tornou-se uma moda e houve gente que percebeu que conseguia viver daquilo. O Nilton foi um deles. O Bruno Nogueira também. O RAP já não, porque diz que odeia fazer stand up. Ele descreve a sensação como o equivalente a andar de montanha russa. Antes de ir vomita, é horrível e fica muito nervoso. Depois faz e é giro, mas não deixa de meter medo. Ele prefere escrever e estar sossegado. Aliás, eu pergunto-lhe qual é a maior ambição dele e responde: "a minha maior ambição é estar sossegado".
Perdeu-se um bocadinho isso, não foi? O stand-up. À medida que um nome vai crescendo afasta-se do stand-up.
É verdade, e é estranho. Eu tenho andado a perguntar porque é que não há um programa de stand-up num canal generalista, e o que me dizem é que o público provavelmente não é o certo. Na altura do “Levanta-te e Ri” a Tv Cabo estava a aparecer, e a malta mais nova, a malta que se identificava com o stand-up e que via aquele horário, ficava de facto a ver. Hoje se calhar não tinhas público novo para um canal generalista. Além disso, já não precisas de ver a determinada hora, podes puxar para trás e ver, ou vais ver à net...
E há o Netflix.
Compara: podes ir ao Netflix ver o último solo do Jim Jeffreys ou do Jimmy Carr, e depois, ao mesmo tempo, está a passar na TVI um stand-up com um gajo que tu não conheces de lado nenhum. É evidente que vais ver Jimmy Carr porque sabes que é seguro. Aquilo vai ser bom de certeza.
Há medo de arriscar por parte das televisões?
Há sempre esse risco que as televisões não querem correr. E depois há outro fenómeno: se calhar o Bruno Nogueira hoje já não fazia stand-up na televisão, em direto. Ele próprio conta que a primeira vez que vai ao “Levanta-te e Ri” é por inconsciência pura. Ele tinha feito stand-up uma vez na vida, no Chapitô, e a vez seguinte é ao vivo, em direto num teatro, para 2 milhões de pessoas em casa. É surreal.
Mas essa falta de noção foi boa.
Essa inconsciência do perigo, se calhar, foi o catalisador de uma carreira inteira. E quem diz ele, diz outros que lá estiveram. O Bruno diz que não tinha noção da situação, então fez. Mas o próprio assume que se fosse hoje talvez se borrasse todo.
Pode não haver muito público, mas cheguei a ir ao "Graças a Deus" e aquilo estava cheio de gente.
Mas aí está outra coisa estranha. O Canal Q apostou nesse programa de stand-up, mas o nível de audiências não esteve nada 'por aí além'. Agora tem, porque o pessoal começa a seguir o Pedro Teixeira da Mota, põe o nome dele no YouTube e vai lá dar. Mas naquela altura era uma coisa sem grande expressão.
Foi uma etapa do circuito que acabou, ainda assim.
Há muita coisa estranha. No Norte há um circuito enorme de stand-up, e em Lisboa não. Aqui tivemos o Lisboa Comedy Club, e agora temos o Cinema City no Alvaláxia, e A Barraca, onde eles fazem às terças-feiras noites de stand-up. Mas é um circuito muito fechado.
O Nilton, ainda assim, com toda a polémica à volta do nome dele, consegue encher tudo.
Ele tem uma carreira do caraças. Também é verdade que ele tem o suporte da rádio, onde promove os espetáculos e enche sempre as grandes salas. Mas sim, é impressionante.
Mas é muito consensual dizer que o Nilton é dos menos populares...
É das pessoas que eu mais ouço a dizer "Ah, não gosto".
É um paradoxo, não é?
É verdade, mais um paradoxo da comédia. E ele tem uma carreira incrível. 20 anos de carreira assentes em stand-up, praticamente. Teve uns tempos na Comercial, esteve na RTP, no 5 Para a Meia-noite, esteve no Cassete Pirata na SIC, e agora na RFM. Ou seja, ele vai tendo projetos mas a base vai sendo sempre o stand-up. E tem-se safado lindamente.
O "5 Para a Meia-noite" também era uma etapa do circuito...
Pois é, e era giro porque eles levavam lá gente do stand-up. Eu lembro-me do Pedro Figueiredo e o Paulo Almeida lá terem ido nos últimos tempos, pelo menos.
O Paulo Almeida, Rui Cruz, Rui Sinel de Cordes... Esses três são os maiores nomes do humor negro em Portugal. Dizias, no início da nossa conversa, de que era unânime: não há limites para o humor. Mas para estes senhores há: nas redes sociais.
Isso é um grande problema. Realmente há um limite: incomodar estúpidos. Esse é o limite. Há pessoas que têm grupos secretos no Facebook e o que fazem é: há um humorista que diz uma piada e esses moralistas de Facebook - ou, como lhes chama o Sinel, "as baratas da internet" -, identificam-na como uma coisa muito ofensiva e um perigo gigantesco para a Humanidade. Depois, combinam e à mesma hora denunciam aquela piada, aquela publicação ou a página.
E isso tem consequências?
Quando denunciam a piada, a publicação é eliminada do Facebook. Quando denunciam a página o humorista é censurado. Dependendo das vezes em que foi censurado as penalizações têm um dia, três dias, uma semana, um mês, e sei de penas que já vão até aos três meses. O que se passa aqui é ignorantes não saberem lidar com a liberdade dos outros, só porque os outros dizem uma coisa que vai contra aquilo em que essas pessoas acreditam.
Mas o Facebook não filtra?
Como o Rui Sinel de Cordes diz, o Facebook é autista. Vê que não sei quantas pessoas denunciam aquilo ao mesmo tempo e pensa "Ai, ai. De certeza que isto é pornografia". O Sinel teve uma fotografia denunciada por pornografia, e a foto era de ele num palco a fazer stand-up. Isto é a loucura completa.
E hoje em dia as redes sociais são instrumentos de trabalho.
Isso revolta-me tanto. É mesmo ignorância ao seu mais alto nível. Uma pessoa que segue um tipo com o qual não se identifica, ou é maluca ou é estúpida. Se eu não gosto, está lá uma tecla que diz "unfollow" e pronto. Eu carrego ali e os meus problemas estão resolvidos.
Mas uma piada da qual não gostamos é motivo para um ‘unfollow’?
Epá, um gajo não acerta sempre. Eu não adoro todas as piadas do Phinn Gervase, não adoro todas as piadas do Jimmy Carr. Há coisas de que eu me rio e outras não. Mas eu não vou dizer: "Ah, devias morrer"; "Não te deviam dar mais lugares em sala de espetáculo", como aconteceu com o Sinel.
Disseram, ou disseram e aconteceu?
Foi surreal. Aconteceu, na altura dos incêndios na Madeira este verão. O Sinel estava de férias em França e disse:"eu e o Hugo Sousa vamos à Madeira fazer um espetáculo, vocês pagam, mas o dinheiro vai integralmente para os bombeiros". Eles andaram três meses a tentar encontrar uma sala que lhes abrisse a porta, e nem uma. Ninguém. Há destas pessoas que não conseguem lidar com uma piada má.
Conheces alguma dessas pessoas, desses grupos secretos?
São pessoas muito pouco inteligentes e a mim escandaliza-me porque podiam ser pessoas que não têm formação ou sentido de cidadania, mas o problema é que eu conheço pessoas que eu até dava como inteligentes e que estão nestes grupos. A partir desse momento passaram a ser idiotas. Mas eu não as vou bloquear no Facebook, a diferença é essa.
Como é que olhas para esta nova geração de humoristas?
Acho que tem um potencial do caraças. Eu tenho os meus favoritos, mesmo dentro destes 14 [que estão no livro]. Sei que há alguns que se calhar não vão vingar na primeira divisão do humor, concedo isso. E também concedo que possa estar enganado, mas tenho a certeza absoluta de que alguns vão ser os próximos gigantes. O Pedro Teixeira da Mota é um deles, o Dário Guerreiro é outro, a Cátia Domingues, se fizer stand-up, é outra. O Carapeto e o Manuel Cardoso vão ser extraordinários.
Vês muito mini-Sinel de Cordes, mini-Markls, mini-RAP...?
Sim, mas todos têm o seu foco e todos têm um nicho que nunca foi explorado. Por exemplo, o Teixeira da Mota. Eu nunca vi ninguém a fazer o que ele faz tão bem, o Manuel Cardoso é um potencial Ricardo Araújo Pereira, o Rui Cruz faz humor político como ninguém, é quase um cruzamento entre o Sinel e o Pina; é tão bom.
Eu consigo ver atrás de quem é que eles vão, e ao mesmo tempo o que é que eles têm de único. Muitos deles vão ter um sucesso esmagador nos próximos cinco anos.
Desses novos talentos, alguns deles são guionistas. Aliás, o prefácio do teu livro é escrito pelo Filipe Homem Fonseca, que é guionista. E tens também o João Quadros, que também é guionista.
O Filipe Homem Fonseca em tudo o que se mete é bom. O homem faz tudo. Mas eu não o podia catalogar como humorista porque isso representa apenas uma fração pequena de tudo aquilo que faz. O Quadros é guionista, mas ele dá a cara pelas piadas dele. Basta pensares no Twitter e no Tubo de Ensaio, e agora no Mata Bicho. Toda a gente sabe que é ele. As capas dos livros do Tubo de Ensaio tinham-no a ele. Ele não é o gajo de bastidores que ninguém faz ideia que existe. É um guionista diferente.
O Quadros passa-se da cabeça, vai a correr, chega à maca e diz ao médico: "Doutor, não se esqueça de que vai operar o melhor travesti que este país já viu"
Mas não achas que há uma linha cada vez mais ténue entre o guionismo e o humor?
O Quadro é um ex-líbris. Ele é guionista e toda a gente sabe quem ele é. Quando ao mesmo tempo temos o Frederico Pombares, que é um extraordinário guionistas, mas que muito pouca gente conhece. Ele fez agora um grupo de sketch comedy com o Henrique Dias e o Roberto Pereira - também guionistas - que é o Ferro Activo, e é fabuloso, é incrível. Mas lá está, correm sempre o risco de estarem por detrás de grandes figuras. Já o Quadros, mesmo estando por trás de uma grande figura, toda a gente sabe quem é. E toda a gente diz que o João Quadros é um génio.
Tu falaste com os maiores nomes da comédia nacional. Não acredito que tenhas ficado “às aranhas”. Quero saber a visão com que ficaste da comédia. Ficou vincado que a comédia tem de ser de esquerda?
O humor não tem uma visão política, o que o humor faz é desconstruir status quo, e a direita presta-se mais a isso. Se bem que a esquerda conservadora, o comunismo, etc., também se põe a jeito. Mas não é líquido que assim seja. Eu já ouvi piadas ótimas sobre o Bloco de Esquerda, ou sobre o Partido Socialista.
E se dissermos antes que o humor é contra poder?
Essa foi uma das conclusões que eu tirei. A comédia não tem estatuto político, é quase uma variante do jornalismo: fazer contrapoder, contestar sempre quem manda e colocá-los em causa. E a comédia tem esse condão, e o jornalismo também. São áreas muito distintas, mas cada uma à sua maneira faz isso.
És jornalista. Já escreveste humor?
Sim, mas como ferramenta para dizer outra coisa qualquer. Para mim, o humor é uma dimensão humana que nós usamos para lidar melhor com o medo ou com as coisas que nos correm mal. Para lidar com a vida. É o que diz o Ricardo quando usa a metáfora do corredor da morte. Ele diz que somos o único animal que sabe que vai morrer e que ri. Ele acha que estas coisas estão relacionadas e eu concordo
A morte e o riso?
O que ele diz é que nós estamos a percorrer o corredor da morte, mas quando nos rimos o percurso custa menos. Nós rimos para nos abstrairmos do facto de que um dia vamos à fava.
Sendo assim, podemos rir de tudo?
Não só acho que nos podemos rir de tudo, como acho que nos devemos rir de tudo. O Markl tem uma ideia fixe. Diz-se de que não se brinca com a morte. E o que ele explica é que o humor goza com os poderosos, e não há nada mais poderoso do que a morte. Por isso, 'bora' lá gozar com a morte. E se podemos rir com a morte, podemos rir com tudo, porque a realidade não vai mudar, a não ser o nosso bem-estar.
Mas é um tema delicado, ainda assim.
Eu tive uma fase muito complicada em que o suicídio era uma possibilidade para mim... E eu dei por mim a fazer piadas com isso entre os meus amigos, a dizer: "Ah, mal por mal eu mato-me". A partir do momento em que eu tenho uma depressão e o suicídio é uma possibilidade e eu me consigo rir com isso... Posso-me rir com tudo. Eu acho que é muito mais saudável a gente conseguir rir das coisas, por isso acho que nos devemos rir de tudo. Mais! Temos uma obrigação moral de nos rirmos de tudo!
O Rui Sinel tinha aquele stand-up em que brincava com o cancro da mãe.
O RAP também fala disso. Lembras-te dos Tesourinhos Deprimentes? De quando os Gatos Fedorento foram sacar uma coisa de um bruxo que dizia: "Eu já vi à minha frente pessoas que bomitam munelhos de cavelo" ? Ele um dia liga à mãe, que estava com um cancro, e ele pergunta se ela está bem, e a mãe diz-lhe: “por acaso não. Estou a bomitar munelhos de cavelo". A doença torna-se mais pequena com isto.
O Quadros tem uma história idêntica.
O pai dele ia ser operado ao coração e a família estava toda reunida no corredor, a ver a maca com o pai do Quadros a ser levada para o bloco operatório, com a equipa de enfermeiros, médico e o cirurgião… De repente, o Quadros passa-se da cabeça, vai a correr, chega à maca e diz ao médico: "doutor, não se esqueça de que vai operar o melhor travesti que este país já viu". E o pai dele conta que o resto do percurso foi uma galhofa, e foi muito menos penoso. O riso é tão fundamental...
O Sinel diz: "piada é para fazer rir, só isso". No fim de contas, resume-se a isto?
Sim, para mim é isso humor, é fazer rir. Fundamentalmente deve ser isso, fazer rir. O resto são enfeites que não se podem controlar.
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