É difícil amar a música e ir a um festival gigantesco como o NOS Alive, onde o risco é quase sempre o mesmo: ter dois artistas que apreciamos a subir aos seus respetivos palcos à mesma hora, obrigando-nos a fazer escolhas tão difíceis quanto impossíveis. No que concerne à edição deste ano do festival de Algés, a dúvida incidiu entre os Smashing Pumpkins (que regressaram a Portugal com ¾ da sua formação original, mais o baixista Jack Bates) e Thom Yorke, eterno vocalista dos Radiohead (que veio, desta feita — após concertos em 2012 e 2016 —, a solo).

Comecemos por Yorke. Fora dos Radiohead, o britânico mostra-nos uma faceta que não bebe tanto ao rock como à eletrónica que ama – e, quando falamos de eletrónica, não nos referimos a nomes sobejamente conhecidos e comerciais como Steve Aoki ou Tiësto, mas à música polirrítmica e intelectual que brota das mentes dos Boards of Canada ou dos Autechre, um techno que vai para além do techno, que vislumbra o futuro ainda antes de conhecermos o tempo presente. Ao NOS Alive, Thom Yorke veio apresentar “Anima”, álbum editado a 27 de junho e inspirado por sentimentos tão cruéis quanto a ansiedade e a sensação de que vivemos numa distopia.

O techno nasce da distopia: industrial, marcial, tão negro como as roupas que Yorke enverga no Palco Sagres. A batida é seca, oprime: por vezes, roça a ginga do hip-hop, sem nunca se tornar verdadeiramente humana. Brota dali uma essência maquinal, como se a humanidade fosse um produto saído de grandes fábricas, soylent green destinado a dar energia a rodas e roldanas e microships. No meio desta música, é a voz do britânico que nos devolve a alma, esse conceito filosófico que nos define. Não tão rock quanto nos Radiohead; a ideia é a de dar textura ao som, e não a de se sobrepor ao som.

Um piano ecoa à distância, e é prontamente auxiliado pelo baixo que a dada altura Thom Yorke enverga. Há quem não aguente tamanha demonstração fabril no Palco Sagres. Muitos abandonam, mas são ainda mais os que chegam. Talvez por serem fãs de Radiohead (o mais provável), talvez por quererem sentir na pele o futuro distópico sobre o qual Yorke parece querer acautelar-nos: temos que mudar. Urgentemente. Temos que nos abandonar à dança e às palmas quando ele assim o pede. Temos de nos abraçar uns a outros. Lembrar que não é vergonha nenhuma chorar.

As lágrimas correram por diversas vezes ao longo deste último dia de NOS Alive. Não de tristeza, contudo. Entre os culpados estiveram os Smashing Pumpkins, que vieram a Algés mostrar o porquê de ainda contaram com uma fiel e numerosa legião de fãs, que se não os abandonaram nos anos 90 não era agora que o iriam fazer. Na bagagem, um (mini) álbum novo: “Shiny and Oh So Bright...”, lançado em novembro do ano passado.

Claro que foram os clássicos, e não os temas novos, a fazer a delícia dos fãs. Clássicos como 'Zero', a qual ainda foi possível ao que assina este texto escutar logo ao início, antes de ser obrigado a dividir-se em dois. Para uma fatia menor da população alternativa, foi 'Zero' a porta de entrada para o mundo dos Smashing Pumpkins, através de um icónico episódio d'”Os Simpsons” (ainda hoje nos rimos a bandeiras despregadas com a simplicidade da piada Billy Corgan, Smashing Pumpkins / Homer Simpson, smiling politely).

Por entre solos de guitarra que pareciam pingar metal, a banda de Billy Corgan apagou quaisquer más memórias que pudessem existir de concertos anteriores, mostrando que esta nova e excelente forma é para ficar – bastou constatar, in loco, a magnífica 'Cherub Rock' ou até '1979'. James Iha, guitarrista regressado à banda, aproveitou para lembrar o mítico concerto que os Pumpkins deram em Cascais sob uma forte chuvada, ao mesmo tempo que dizia ser este «um dos melhores concertos que já demos». É possível que tenha sido mera simpatia (o habitual nas grandes estrelas rock...), mas o nosso coração diz-nos para concordar. Pelo menos, e ao contrário de tantas outras reuniões e revivalismos passados, não saímos daqui defraudados.

“Fraude” é uma palavra que não se pode colar aos Idles. A banda britânica ameaça vir a tornar-se num dos grandes estertores do rock atual, donos de uma sonoridade punk rock tão hooligan quanto feminista, onde a ideologia política (de esquerda) é ao mesmo tempo arma de arremesso e fonte criativa.

O Palco Sagres pareceu pequeno naquele que foi o seu quarto concerto em Portugal no espaço de um ano, após uma primeira introdução no NOS Primavera Sound, em 2018, e após dois concertos no Lisboa Ao Vivo e no Hard Club. A aceleração que imprimem às guitarras impressiona. O feedback ameaça fugir por todos os cantos. A agressão e a raiva existem – mas não são feitas de tanta testosterona quanto seria expectável. Os Idles acreditam naquilo que pregam, e isso é extremamente importante num mundo que cedeu perante o populismo e as fake news.

As incursões pelo meio do público foram muitas, o crowdsurf idem, e as dedicatórias ibidem: 'I'm Scum' é destinada «a todos os que [nos] menosprezaram durante anos», outras servem de homenagem ao serviço de saúde britânico. Pelo meio, alguma terapia: «se partilharem os vossos sentimentos com alguém, pode salvar-vos a vida». Os Idles, psicólogos do punk. Os Idles, brincalhões: ainda se ouviram trechos de 'Nothing Compares 2 U' e de 'From Her To Eternity', de Prince e Nick Cave respetivamente, no meio de 'Love Song'. Os Idles, resistentes: 'Danny Nedelko', tema que os fez chorar em Glastonbury por força da recepção que teve, é dedicada «aos imigrantes que fizeram do Reino Unido um país melhor». Precisamos de mais seres humanos como eles: sem medos.

Os Bon Iver, que também regressaram a Portugal e meros dias após terem anunciado álbum novo (“i,i” sai a 30 de agosto), foram aguentando como puderam a paciência de quem, no último dia de um qualquer festival, precisa de algo que espetive. As incursões por algum pós-rock pesado não foram más; a voz processada de Justin Vernon é que estragava o cocktail de que é feita a sonoridade da banda (e nem sequer foi possível fotografá-lo). Foi Marina a salvar-nos, recorrendo a temas antigos como 'I Am Not a Robot', editado numa altura em que a artista ainda respondia por Marina and the Diamonds: a sua pop em ponto de rebuçado, tão jovial quanto divertida, fez as delícias dos fãs ruidosos que ocuparam as primeiras filas junto ao Palco Sagres (que, por esta hora, não estava cheio). 'Enjoy Your Life' foi um belo momento de eletrónica tropical, e 'Superstar' deixou-nos com vontade de ouvir mais. Ponto positivo também para os australianos Rolling Blackouts Coastal Fever, que mostraram canções tão compridas quanto o seu nome, rock de viagem com Jack Kerouac e os Modern Lovers na cabeça, feito a partir de três guitarras, um baixo, uma bateria, e uma fusão entre a folk e o rock independente dos anos 70 e 80. Talvez para a próxima mereçam uma tenda cheia.

O NOS Alive regressa em 2020, entre os dias 9 e 11 de julho, e já há um nome confirmado: os Da Weasel voltarão aos palcos, após 10 anos de ausência.