O antigo Presidente da República Mário Soares tinha uma "dívida eterna" ao ex-primeiro-ministro José Sócrates e dele nunca se afastou até ao final da vida, apesar das notícias de alegada corrupção saídas da Operação Marquês.

Esta é a convicção de Ana Filgueiras, enfermeira e companheira do ex-presidente, manifestada no livro "Mário Soares - Uma Vida", da autoria do jornalista e ensaísta Joaquim Vieira, agora reeditado pela Dom Quixote com dados novos sobre a vida privada do biografado, por ocasião do centenário do seu nascimento a 07 de dezembro.

Ana Filgueiras afirma que Soares "ficou com uma dívida eterna a José Sócrates, que tinha apostado nele e não no [Manuel] Alegre nas presidenciais" de 2006.

"Tinha essa qualidade: defendia alguém de quem gostava, mesmo que dissessem que era um bandido", afirma a enfermeira, que acompanhou o ex-Presidente nos últimos anos da sua vida.

"Ele nunca acreditou no processo contra o Sócrates, achou que aquilo era uma conspiração contra ele, que era um homem honesto e inocente e que era tudo mentira", conta.

Joaquim Vieira enfatiza esta relação de Soares com os amigos, comparando-o ao ex-chefe do governo italiano Bettino Craxi ou aos socialistas Edmundo Pedro ou Carlos Melancia.

Soares "atravessava-se de olhos fechados em defesa dos amigos perante a justiça, sem cuidar do desfecho dos respetivos processos", escreve no livro, indicando que o ex-Presidente "não deixou de visitar também Ricardo Salgado quanto estava em prisão domiciliária" na sua casa de Cascais devido aos processos judiciais resultantes da resolução do BES.

As visitas ao estabelecimento prisional de Évora, para visitar José Sócrates, eram uma constante e foram descritas já na versão anterior do livro. Com destaque para o dia em que António Costa fez a sua única visita a Évora, em 2014, e lá encontrou "Soares em conversa com Sócrates", não o deixando quase falar com o detido.

Joaquim Vieira não deixa, contudo, de narrar um caso em que Soares ficou desagradado com Sócrates por este ter ficado "eufórico" por se "ter visto livre" de Manuel Alegre, que não conseguiu alcançar os 20% de votos nas presidenciais de 2006, ganhas por Cavaco Silva.

O livro relata também que o antigo Presidente nunca gostou da agressividade de Sócrates: "Estou farto de tentar meter a ideia do diálogo na cabeça do Sócrates", lamentou-se Soares.

Joaquim Vieira relata também que foi sob a égide de António José Seguro, ex-líder do PS e agora potencial candidato presidencial, que Soares e Alegre fizeram as pazes num encontro na Fundação Mário Soares.

Capa do livro

Joaquim Vieira lamenta “tendência para esquecer Mário Soares”

“Eu verifico que há tendência para esquecer quem foi Mário Soares. Esquecer, ou ignorar, ou não saber, porque não se viveu naquela época. E, portanto, penso que era importante fazer um trabalho mais aprofundado de divulgação da sua vida, da sua vida política, da sua carreira política, sobretudo”, considerou Joaquim Vieira, em entrevista à agência Lusa.

Interrogado sobre de que forma é que se deve explicar, nomeadamente às gerações mais novas, o papel de Mário Soares na história do país, Joaquim Vieira começou por referir que vê nas redes sociais “pessoas a reagir de forma muito negativa à figura” do antigo chefe de Estado “com muitas acusações que são falsas, não comprovadas”.

“Eu achava importante que houvesse um esclarecimento, sobretudo para aqueles que não viveram este tempo em que ele esteve no poder, um esclarecimento das pessoas sobre, de facto, quais foram os contributos de Mário Soares para a nossa história. Porque eu acho que há tendência para isso estar a ficar um bocado esquecido”, lamentou.

Na opinião do jornalista, esta divulgação pode ser feita “através do debate, da discussão” e “eventualmente através da escola”.

O ensaísta lamentou ainda que existam tantos “rumores, 'fake news' e distorções” nas redes sociais à volta da figura do histórico líder socialista.

“Não estou aqui a glorificá-lo ou a endeusá-lo, mas é saber, de facto, quem foi Mário Soares, conhecê-lo. As pessoas têm de o conhecer”, defendeu.

Joaquim Vieira considerou que existe “muita ignorância sobre o protagonismo que Mário Soares teve”, apontando que o antigo chefe de Estado foi “uma figura única a nível mundial como político”.

“Numa certa altura da sua carreira política, conseguiu reunir atrás dele a apoiá-lo toda a direita. E depois, cerca de uma década mais tarde, conseguiu reunir atrás dele a apoiá-lo toda à esquerda. E eu não encontro isso… em Portugal, não há de certeza, e não sei se no estrangeiro existe”, sublinhou.

Joaquim Vieira insistiu que Soares tem “o mérito” de ter conseguido “congregar apoios num leque muito variado de sensibilidades políticas”, compreendendo, em cada momento, “aquilo que era mais importante”.

Mário Soares, nascido a 07 de dezembro de 1924, foi uma das principais figuras da resistência ao regime do Estado Novo, primeiro-ministro de três governos constitucionais (1976/1978, 1978 e 1983/1985) e chefe de Estado entre 1986 e 1996.

O centenário do seu nascimento vai ser assinalado com uma sessão solene na Assembleia da República na sexta-feira (dia 06), além de um vasto programa que decorre até ao final de 2025 e que irá estender-se a vários pontos do país com exposições, edições literárias e iniciativas culturais.