A ordem das coisas: Óscares em Los Angeles, mas também em várias cidades europeias, ao fim de 30 anos a transmissão voltou à RTP a partir do Cinema de São Jorge, em Lisboa, e este texto nasce diretamente do meu sofá. No entanto, impõe-se confissão prévia: as linhas que se seguem não terão quaisquer referências à passadeira vermelha ou a derivados da arte artesanal que é juntar várias partes de um tecido (vestidos). A única exceção surge para recordar que a mini-estrela de "Minari", Alan Kim, de 8 anos (que em março perguntou aos críticos americanos se estava a sonhar quando ganhou um prémio) estava só adorável (melhor só se tivesse levado as botas de cowboy da sua personagem).
Ao contrário do que tem sido regra nos prémios de cinema nos Estados Unidos, houve participantes e muitos protocolos de segurança. A estação de comboios Union Station, na baixa de Los Angeles, engalanou-se para receber os atores e nomeados ao vivo e a cores — os quais tiveram de ter um mínimo de dois testes PCR negativos à covid-19 para lá estar (a somar aos três já realizados na semana passada, como recorda a Variety).
A montagem da cerimónia esteve a cargo de Steven Soderbergh (na verdade não esteve sozinho, mas é o nome de que todos se vão lembrar), homem que se sentou na cadeira da realização em "Traffic - Ninguém Sai Ileso" (2000), galardoado com um Óscar, mas também "Contágio" (2011), o filme sobre uma pandemia que todos viram (ou voltaram a ver) durante a pandemia. Portanto, é a ele a quem me dirijo: quem é que teve a brilhante ideia de alterar a ordem da entrega das estatuetas e terminar uma cerimónia da maneira mais anticlimática possível?
Contexto, parte 1. Foi uma cerimónia estranha. Quiçá a possível em plena pandemia, mas estranha ainda assim. A ideia de a cerimónia ser transmitida como se fosse um filme era engraçada. Teve direito a uma estrutura baseada num guião de três atos, como mandam as regras tradicionais de Hollywood, créditos de abertura. Um excelente cineasta a fazer o que melhor sabe. Até aqui, nada contra. Agora, convenhamos: o plot twist no final era completamente escusado.
Contexto, parte 2. Qualquer espetador ensonado fica rabugento. Mas fim é o fim. É o clímax, a revelação, é o momento de maior intensidade na ação que vai acelerar o desfecho. O melhor é sempre deixado para o fim. É a altura em que o último prémio é atribuído ao Melhor Filme, é o momento pelo qual se batalha com o cansaço e sono aqui pelo Velho Continente, é o momento pelo qual se abusa da cafeína. Envelopes depois podem ou não ser trocados, mas o prémio grande fica para último. É assim que deve de ser… ou devia.
Contexto, parte 3. Percebo que o ano seja 2021, e que tempos estranhos, na cabeça de Soderbergh, possam pedir estranheza, mas a verdade é alterar a ordem dos últimos três prémios foi mal sucedida. Explico: esta madrugada ficámos a saber primeiro qual era o melhor filme do ano e só depois quem é que ganhou os prémios de Melhor Atriz e Melhor Ator, respetivamente. Não faz sentido. Nenhum. Mas ainda fica mais embaraçoso do que isto.
Contexto, parte 4. Todo este longo contexto serve só para dizer que a cerimónia terminou com Joaquin Phoenix, vencedor da estatueta o ano passado, a dar a notícia ao mundo que o Óscar tinha sido atribuído a Anthony Hopkins pelo desempenho em "O Pai", de Florian Zeller. E quando digo "acabou com Joaquin Phoenix a anunciar o vencedor", é para ser lido de forma literal. Isto porque Anthony Hopkins não estava presente em Los Angeles. Solução encontrada? Colocou-se uma fotografia do ator britânico, aplicou-se um plano generoso ao semblante do vencedor e cortou-se para os créditos. Literalmente, fim.
Contexto, parte 5. Este é um dos momentos que espelha bem a trapalhada desta noite, que, ainda assim, foi histórica e devia de ter sido celebrada de outra forma. Mas adiante.
Sir Anthony Hopkins tem 83 anos de idade. Nesta fase da carreira, caso esteja em Londres, se decidir que não lhe apetece estar acordado às 3h30 da manhã para agradar às pessoas que gostam de filmes ou a Hollywood, está no seu direito. Se por outro lado está em Los Angeles em plena pandemia e também não lhe apetecer estar presente num evento desta natureza, por mais testes que se façam e se limitem os lugares, é só compreensível. Mais: não só está no seu direito como tem estatuto para fazer o que lhe apetece. Ter uma carreira como a sua tem os seus privilégios. Ninguém levará a mal.
Pelo contrário, todos levaremos a mal quando a Academia, sabendo disto, manteve a decisão de terminar a cerimónia desta maneira. Especialmente num ano em que Chloé Zhao, no local, tinha ganho pouco antes o Óscar para Melhor Realização. Não sei, entre acabar a emissão com a segunda mulher a conquistar este Óscar em 93 anos ou acabar com uma fotografia de um ator que não está presente…
A escolha não será óbvia?
(Não é a foto.)
O filme dos Óscares — Assim para chatinho
Para quem gosta de estrelas, do aparato, da passadeira vermelha, o formato estendeu o que é possível fazer em tempos de pandemia. Mas a realidade, na opinião deste espetador que pouco liga ao showbiz e gosta de se dedicar somente aos filmes, é que a transmissão se assemelhou a um Netflix Special, numa cerimónia de prémios em que se aproveitaram alguns discursos. Basicamente, a sensação que fica é que se viu uma comédia romântica com um super elenco. Óptima para ver ao domingo à tarde para desanuviar com a cara-metade, péssima para ver depois das 23h00. Pouco recomendada para ver de madrugada.
Steven Soderbergh prometeu durante as últimas semanas um produto repleto de estrelas. Ao vivo e a cores. Evitar o Zoom o máximo possível e dar esperança às pessoas. Fazê-las recordar que existe cinema, que está vivo e para as curvas. E se há coisa que não se pode negar é que houve star power para dar e vender. Durante as três horas e meia que durou a cerimónia foi um desfile de atores bem conhecidos a apresentar o trabalho dos seus pares — ao jeito dos últimos dois anos não houve um anfitrião.
A noite até começou bem. Os Óscares assemelhavam-se ao início de um filme de Soderbergh. Regina King, carismática e imponente, era a protagonista, entrando pelas nossas casas ao sabor dos dotes de Questlove, DJ de serviço e músico conhecido no mundo do espetáculo por ser uma biblioteca musical ambulante, de estatueta dourada na mão. A festa das estrelas, se bem que em condições muito reduzidas, estava iniciada. Regina King abordou logo a sentença do polícia condenado pela morte de George Floyd.
Mas tal como frisou Mário Augusto, que comentou a cerimónia na RTP ao lado de Catarina Furtado, foi algo "bem diferente" do que é habitual. "Morno" talvez não seja a bem a palavra que defina melhor "a gala". A festa, o espetáculo, o aparato, o glamour, o número das estrelas presentes. Foi tudo colocado numa caixa minimalista. Marcou-se presença, assinalou-se a data, mas pareceu sempre que faltou algo.
(Na RTP também faltou algo: tempo. Se por um lado a decisão de não ter ninguém a traduzir em simultâneo foi sensata, a merecer elogio, a de ter dois apresentadores e dois convidados, nem tanto. O tempo dos anúncios em Los Angeles obrigava a dupla a passar muitas vezes por cima um do outro e, pior, de estarem constantemente a apressar o discurso. Não é que os envolvidos tivessem culpa, mas simplesmente o tempo era demasiado escasso para moderar, opinar e criar conversa.)
A noite foi um filme de atores a apresentar os nomeados, os trabalhos, as mensagens, mas numa pequena sala de uma estação em Los Angeles. Os tempos são de pandemia e pede-se segurança e simplicidade. Só que o que assistimos hoje, se tirarmos o discurso e a espécie de twerk de Glenn Close, acabou por ser aborrecido. O que é uma pena porque foi o ano em que tivemos mais diversidade nos nomeados.
A cerimónia também me fez lembrar um casamento. Uma recordação estranha, bem sei, mas sem orquestra, pensei em centenas de casais a planear aquele momento tão solene da relação e a questionar-se: banda ou DJ?
Claro que chega a uma certa altura do dia em que a gravata do padrinho do noivo já está na cabeça e se o Quim Barreiros pedir para apitar o comboio, a maioria dos presentes da sala vai ceder e a festa prossegue com toda a pompa e circunstância. Mas a orquestra dá um toque e uma dimensão diferente. A única situação de que não senti a sua falta foi na hora de utilizar a palavra. Ou seja, na altura dos discursos, foi bom deixar os protagonistas falar e não vê-los serem expulsos pela orquestra.
A noite de Zhao
O cerne da edição de hoje passa pela conquista da realizadora Chloé Zhao, ao ser a primeira mulher de ascendência asiática nomeada e a segunda mulher a levar para casa a estatueta da categoria de Melhor Realização, depois de Kathryn Bigelow o ter feito, como o seu "Estado de Guerra" (2010).
Naquela que pode ser considerada uma cerimónia invulgar dos Óscares, o drama "Nomadland - Sobreviver na América" acaba por ser o filme da noite, ao triunfar nas categorias de Melhor Filme, Melhor Realização e Melhor Atriz.
"Nomadland - Sobreviver na América" conta a história de uma mulher que viaja pela América como nómada, vivendo numa caravana, trabalhando em empregos temporários e sobrevivendo na estrada, na sequência de uma crise económica. Embora o filme seja uma ficção, assenta em testemunhos reais de norte-americanos que vivem na estrada, sempre em trânsito, numa comunidade nómada mais envelhecida e nas margens da sociedade.
Este é o terceiro Óscar de Frances McDormand, em três nomeações para melhor atriz, depois de "Fargo" (1996) e "Três Cartazes à Beira da Estrada" (2018). Ao longo da carreira, McDormand esteve nomeada três vezes na categoria secundária, pelos papéis em "Terra Fria" (2005), "Quase Famosos" (2000) e "Mississippi em Chamas" (1988).
"Por favor, vejam o nosso filme no maior ecrã possível. Um dia em breve leve todos os que conhece, ombro a ombro, naquele espaço escuro e veja todos os filmes que estão aqui representados esta noite", apelou McDormand durante o seu curto discurso, que além de protagonizar, também é produtora do filme.
"Uma Miúda com Potencial" foi daquelas surpresas boas de 2020. Escrito pela Camilla Parker Bowles de "The Crown", foi rodado em apenas 23 dias e teve em Carey Mulligan a sua muleta.
Emerald Fennell (o nome da atriz e realizadora) levou esta madrugada o Óscar de Melhor Argumento Original. A última mulher a ganhar nesta categoria tinha sido Diablo Cody, em 2008, por Juno.
Um molusco amigo e uma avó à maneira
Uma das categorias que me intrigava era a de Melhor Documentário. Sendo uma das que sigo religiosamente e uma das primeiras que vasculho quando são conhecidas as nomeações, estava particularmente curioso para saber quem iria levar a melhor: o romeno "Collective" ou o sul-africano "My Octopus Teacher"?
A espera trouxe um sentimento estranho: ganhou o que queria que ganhasse, mas consagrada a vitória rapidamente o sentimento de regozijo pessoal deu lugar a um sabor agridoce no peito. Isto porque "Collective" merecia sair vitorioso mais do que qualquer outro. Entre o sentimentalismo e a racionalidade tenho de ser objetivo e a investigação que mostrou os podres do ministério de Saúde romeno devia de ser premiada.
Já "My Octopus Teacher", de Pippa Ehrlich e James Reed, documenta um ano passado pelo cineasta Craig Foster a forjar uma relação com um polvo selvagem, junto à costa sul-africana. Foi o primeiro a ser visionado por estar disponível na Netflix. E, confesso, esta relação de amizade entre cefalópode e humano caiu-me no goto.
Primeiro, a voz do narrador faz o filme e embala-nos nesta amizade verdadeiramente improvável. Depois, porque estão oito anos de trabalho condensados em menos de duas horas. A história é intimista e embarca-nos para a jornada de um homem a entrar em parafuso que conseguiu criar uma ligação com o filho porque desenvolveu uma relação com um polvo. Se isto não desperta curiosidade, o que desperta?
Por outro lado, a avó YoYo fez-me sorrir. Glenn Close que me perdoe, mas a sul-coreana (embora nascida na Coreia do Norte) Yuh-Jung Youn merecia a estatueta. Tenho noção que a primeira já deve ter perdido a vontade de ir às cerimónias, ou não fosse esta a sua oitava nomeação gorada, mas o discurso da vencedora do Óscar da Melhor Atriz Secundária, valeu por si só a pena. Aos 73 anos, a avó de "Minari" foi o café que perto das 3h00 este espetador precisava.
Flirtou com Brad Pitt, interrogou-se como podia comparar-se a Glenn Close e revelou um sentido de humor tão apurado como o da personagem que lhe valeu uma estatueta. E nos bastidores explicou aos jornalistas que não acredita "em competição". Yuh-Jung Youn é da opinião de que esta noite teve "sorte". "Estamos a comparar diferentes filmes e diferentes papéis", disse.
Sorte ou não, com uma extensa carreira na Coreia do Sul, este foi o primeiro filme americano em que a atriz participou, o que tornou a vitória ainda mais relevante. E estarei cá sempre para ver o que tem para dizer se se aproximar de Pitt (que aparentemente foi o único que pronunciou corretamente o seu nome; imprensa europeia e norte-americana falham redondamente e a própria explicou que é se pronuncia YoYo).
O futuro e a bondade
A bondade, generosidade, ajudar o outro. Esta foi a mensagem da vencedora da noite. E se há algo que o mundo de hoje precisa é de ouvir o que a realizadora de "Nomadland" nos trouxe. "Encontrei sempre bondade nas pessoas que conheci em todo os sítios que visitei no mundo", disse. Mas não foi único caso. O realizador Tyler Perry fê-lo também.
Perry contou uma história sobre uma mulher sem-abrigo e como o departamento de guarda-roupa de um dos seus filmes a ajudou a encontrar uns sapatos, algo tão básico, mas que neste caso se revelou mais importante do que dinheiro. O realizador contou também que a sua sua mãe o ensinou a ajudar as pessoas e a recusar o ódio — frase que repetiria várias vezes. No final acabaria por receber uma ovação de pé de uma centena de pessoas, mas este era provavelmente um daqueles momentos que encheria o Dolby Theater (sem pandemia) de palmas.
Outro momento desses terá sido o emocionante discurso de Thomas Vinterberg, realizador dinamarquês que recebeu o Óscar de Melhor Filme Internacional por "Mais uma Rodada", com uma homenagem emocionante à filha, Ida, que faleceu no início da rodagem do filme em maio de 2019.
Mas estes momentos, por mais notórios que sejam, não deverão chegar para trazer mais interessados para o ano. Com a pandemia, 2020 foi o ano do streaming. 2021 não deverá ser muito diferente, pelo menos ao nível de audiência. Neste formato em que não existe um apresentador e que se tenta apressar uma cerimónia já se de si longa, com quase quatro horas, ter atores a apresentar atores deixa de ter grande apelo.
Este ano houve diversidade, história. Foi a primeira vez que uma atriz coreana venceu um Óscar de representação, a primeira mulher não branca venceu na categoria de realização e até houve espaço para as primeiras afro-americanas a vencerem o Óscar de Melhor Caracterização (Mia Neal e Jamika Wilson). Mas num dia em que aconteceu tanto parece não se passou muito. As estrelas não chegaram para aquecer a noite maior do cinema.
Acredito que colocar uma centena de pessoas presentes numa estação de comboios já tenha sido uma logística complicada. E também sei que eventualmente o mundo regressará de forma gradual à normalidade e os filmes à sala escura. Mas aquilo que acredito é que nos próximos anos, se nada for feito e se os moldes das cerimónias continuarem, não se recupere a audiência, a descer de ano para ano.
Se as coisas ficarem como estão, na Era da Internet, o que aumenta são os números e visualizações no dia seguinte de um momento "viral" nas redes sociais. Na hora, na transmissão, o interesse tende a escassear. Tudo parece longo, mais do mesmo. As pessoas vão continuar a preferir ver os resumos, ler sobre o que se passou ou ir à procura dos melhores momentos. Mas certamente não vão querer passar uma noite em claro para ver os Óscares. Especialmente se voltarem a ser como hoje.
Lista completa dos vencedores da 93.ª edição dos Óscares
Melhor filme
"Nomadland - Sobreviver na América"
Melhor realização
Chloé Zhao - "Nomadland - Sobreviver na América"
Melhor ator
Anthony Hopkins - "O Pai"
Melhor ator secundário
Daniel Kaluuya - "Judas and the Black Messiah"
Melhor atriz
Frances McDormand - "Nomadland: Sobreviver na América"
Melhor atriz secundária
Yuh-Jung Youn - "Minari"
Melhor argumento adaptado:
"O Pai"
Melhor argumento original
"Promising Young Woman - Uma miúda com potencial"
Melhor filme internacional
"Another Round" - Dinamarca
Melhor filme de animação
"Soul - Uma aventura com alma"
Melhor curta-metragem de animação
"If Anything Happens I Love You"
Melhor documentário
"My Octopus Teacher"
Melhor documentário em curta-metragem
"Colette"
Melhor curta-metragem
"Two Distant Strangers"
Melhor cenografia
"Mank"
Melhor direção de arte
"Mank"
Melhor montagem
"Sound of Metal"
Melhor caracterização
"Ma Rainey: A mãe dos blues"
Melhor guarda-roupa
"Ma Rainey: A mãe dos blues"
Melhor banda sonora original
"Soul - Uma aventura com alma", Trent Reznor, Atticus Ross e Jon Batiste
Melhor canção
"Fight For You" - "Judas and the Black Messiah"
Melhor montagem de som
"Sound of Metal"
Melhores efeitos visuais
"Tenet"
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