Ontem a mãe, o pai, deram um beijo ao menino, conversaram com ele, levaram-no pela mão, e agora essa criança que encerrava tanto futuro está ali deitada na morgue de um hospital, morta, morta de todo; mais morta, impossível. Dentro de umas horas começará a decomposição natural do organismo e em breve o menino será somente uma imagem convocada com mágoa ao pensamento; umas fotografias, lembras-te?; um nome pronunciado na solidão tingida de nostalgia ou esculpida numa lápide que a intempérie e o tempo irão desgastando sem compaixão.  

Francisco Mota Saraiva junta-se ao É Desta Que Leio Isto no próximo encontro, marcado para dia 24 de abril, uma quinta-feirapelas 21h00. Consigo traz "Morramos ao menos no Porto", publicado pela Quetzal.

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"Morramos ao menos no porto" pediu o título emprestado a Séneca e venceu o Prémio José Saramago no final de 2024. É "um romance que abala os fundamentos da narrativa clássica, um fogo que alastra até consumir todas as suas personagens e que revela o seu autor como uma voz poderosa na literatura portuguesa".

Pode ler um excerto aqui.

O dia 23 de outubro de 1980 calhou a uma quinta-feira. Cinquenta alunos de entre cinco e seis anos, além de três adultos, perderam a vida em consequência de uma explosão de gás propano numa escola de Ortuella. Tal como inúmeros textos que me precederam, isto posso e porventura devo eu testemunhar. Para isso basta uma determinada quantidade de palavras que nomeiem e descrevam. Não consigo, porém, libertar-me do temor de incorrer a contragosto na obra de arte, no exagero literário, e acabar por compor um livrinho com aspeto de romance, o qual poderia correr o risco de suscitar nos possíveis leitores aprovação e até elogios à custa de uma tragédia que representou um golpe atroz na vida de numerosas famílias.  

Mariaje guarda uma viva recordação da manhã de 23 de outubro. Se pudesse, teria aplicado uma borracha na parte do cérebro onde alberga as imagens daquela jornada, que ainda agora, muito tempo depois, não hesita em qualificar de horrível; mas bem sabemos, acrescenta, que a memória funciona por conta própria. Logo a seguir afirma, em franca contradição, que seria injusto esquecer-se do Nuco por completo. Oscila, pois, entre esquecer e recordar, e no fundo ainda bem que não tem controlo direto sobre as suas recordações. Aprender a viver com elas foi em todos estes anos o seu maior desafio.

No dia em questão o menino levantou-se esquisito. A mãe matiza: Isso de esquisito talvez me pareça agora que sei o que ia acontecer pouco antes do meio-dia. O caso é que custou ao Nuco levantar-se da cama. O normal era que saltasse como um gato mal a mãe entrava no quarto para o acordar. Que tens? Os lençóis ficaram-te colados? Demorou mais tempo que o habitual a vestir-se. O pequeno-almoço não lhe entrava. Mariaje, pelo sim, pelo não, apalpou-lhe a testa. Não se apercebeu de sinais de temperatura. Lento, silencioso, o menino mostrou falta de vontade de ir à escola, coisa insólita nele, pois adorava as tarefas escolares; sentia uma franca simpatia, que raiava a veneração, pela professora, e partilhava a sala de aulas com um nutrido grupo de amigos do bairro de Otxartaga, onde tinha a sua residência.  

Nicasio albergava a firme convicção de que o menino possuía uma inteligência divinatória. Não que tivesse visto ou sonhado durante a noite da explosão. É apenas que lhe deve ter ocorrido um pressentimento, talvez uma dedução inconsciente a partir de estímulos inexplicáveis, ou ouviu enquanto dormia uma voz que lhe sussurrava: Não te levantes, Nuco. Não te passe pela cabeça ir à escola. Ai de ti se fores. 

Livro: "O Menino"

Autor: Fernando Aramburu

Editora: D. Quixote

Data de Lançamento: 8 de abril de 2025

Preço: € 17,70

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Mariaje receava que o filho tivesse tido na véspera uma desavença, talvez uma rixa, com algum colega de turma. Era difícil sabê-lo, porque era uma criança introvertida, pouco dada a abrir-se. Andava no 1.o ano do ensino básico. Era dos novos na escola, com o entusiasmo intacto por aprender; mas ao mesmo tempo tão sensível e, porque não dizê-lo, tão frágil que ao menor contratempo se lhe podia esvair o entusiasmo. Esse traço, seguindo Mariaje, era compartilhado com José Miguel. Quando alguma coisa lhes desagradava, ambos se abstinham de protestar ou de se revoltar. Preferiam refugiar-se num silêncio hermético e ruminar a sós os seus aborrecimentos e tribulações. 

Dói-te alguma coisa? Não sei. A professora repreendeu-te? Em vez de falar, desta feita o menino disse com a cabeça que não. Foi algum colega que te bateu? Ele voltou a negar. Alguém te chamou alguma coisa feia? Nova negação. 

Sentado à mesa da cozinha, com a sua tigela matinal de ColaCao, o menino limitou-se a dizer que sim quando a mãe, pensando levantar-lhe o ânimo, propôs chamar o avô para que ele o acompanhasse à escola. Com o avô o Nuco ia a todo o lado. Com o José Miguel também; mas este, àquela hora, já estava a trabalhar na fábrica. O menino, consoante as situações, preferia a companhia do avô. O avô era o maior e o melhor. Com ele o riso e a diversão eram garantidos. Coisa de uma semana antes, Nicasio tinha deslumbrado o menino com uma promessa. Quando fosse mais crescido, fá-lo-ia sócio do Athletic e iriam os dois a San Mamés vestidos com a camisola vermelha e branca. Viúvo, reformado, Nicasio vivia a dois quarteirões da filha e estava sempre disponível para levar o menino a passear e brincar com ele. Mal recebeu a chamada telefónica de Mariaje, pôs-se a caminho em busca do neto. Quantas vezes e com quanta amargura viria a repetir no futuro que nunca perdoaria a si próprio ter levado o menino naquela manhã à escola!