Yesterday é uma história sobre amor. Que ninguém entre na sala escura a pensar que o novo filme de Danny Boyle (Quem Quer Ser Bilionário?, Trainspotting, 28 Dias Depois) é outra coisa que não uma comédia romântica — ou não tivesse sido escrita pelo autor de Quatro Casamentos e um Funeral, O Amor Acontece (aquele com a Lúcia Moniz) e Notting Hill. É uma ode ao amor à vida, à simplicidade, à arte pela arte. E, como o título sugere, ou não fosse um título duma canção, aos The Beatles — cujo legado, intrinsecamente ligado à nossa cultura, vai muito além da música.
Estamos, portanto, perante uma dupla história de amor: primeiro, pelos The Beatles e depois entre os protagonistas Jack (Himesh Patel, ator da sitcom da BBC EastEnders, que está no ar desde 1985) e Ellie (Lily James). Só que o argumento de Richard Curtis coloca-nos num mundo cujo contexto musical é diferente daquele que tomamos por nosso hoje. E que mundo é este? Um com muito Google, mas sem qualquer vestígio dos The Beatles (e não só).
Em Yesterday seguimos Jack Malik, um homem que sonha viver da música e compor as suas canções. Só que Jack trabalha num armazém em part-time e canta em pubs pequenos e vazios — e as pessoas pouco ou nada querem saber do seu trabalho. Percebendo que não passava da cepa torta, Jack mergulha numa crise existencial, começando a interrogar-se se deve ou não a continuar a perseguir o sonho. Até ao dia em que dá mais um concerto falhado e sofre um acidente que muda tudo. Não só na sua vida, mas também no mundo. É que ao mesmo tempo que é atropelado por um autocarro, dá-se um apagão à escala planetária.
Quando acorda, já recuperado e após ser recebido por um pequeno e fiel grupo de amigos que lhe pedem para cantar "qualquer coisa" em jeito de boas-vindas, derrete os presentes com "Yesterday" — de tal forma que, incrédulo, não perceba como é que ninguém ali conheça a música que pertence aos The Beatles. Só que o problema era bem grave do que imaginou. Nem o seu grupo de amigos, nem o mundo, nem o Google.... pura e simplesmente ninguém se lembra de "Eleanor Rigby", "Strawberry Fields Forever" ou "Let it Be". John Lennon, Paul McCartney, George Harrison e Ringo Starr nunca chegaram a existir.
Urge então o dilema: deve ou não aproveitar-se do facto? Se uma das maiores bandas de sempre não existe ele deve ou não fazer do seu legado um futuro seu? Pois bem, a verdade é que Jack decide aproveitar a oportunidade para tocar a música dos Fab Four como sua — o que vai chamar atenção dum tal de Ed Sheeran. Sheeran faz dele próprio e ainda tem um tempo considerável de ecrã; não se espere um mero cameo, trata-se dum papel para o qual Sheeran teve que trabalhar e ensaiar. Ou seja, é tempo suficiente para descobrir Jack Malik, levar um bigode de Jack Malik ao ponto de o considerar Mozart (na analogia ele explica que é Salieri) e ver Jack Malik a subir no ranking de popularidade. Em suma, o mundo de Jack Malik fica virado do avesso, num reboliço que vai de Suffolk a Liverpool, do estádio de Wembley ao festival Latitude, ou a passar pela Cidade dos Anjos, LA, onde Jack se vê num mundo completamente diferente daquele que é o seu.
A acompanhar Jack Malik nesta ode aos Beatles está a atriz Lily James (a Lady Rose MacClare em Downton Abbey, que também participou em Baby Driver — A Alta Velocidade e Cinderella) que interpreta Ellie. Ellie não é só a sua cara-metade não-oficial; é manager, melhor amiga, taxista, roadie, fã. É certo que Jack é a personagem principal, mas o coração da história é ela, qual gata borralheira que brilha mais que o príncipe. Sempre que aparece em cena há uma espécie de íman que nos atrai; há qualquer naquela simbiose que James constrói e molda com as suas roupas largas, cabelo desleixado e fé inabalável em Jack. E ao longo de praticamente todo o filme é difícil não ficar ao lado da personagem de James.
Em Yesterday tudo assenta em princípios e valores teoricamente simples, mas que na verdade desmontam puzzles gigantes. É um filme sobre amizade e romance; de sucesso e fracassos; de música e arte; mas é, sobretudo, sobre como é difícil domar a curva de aprendizagem quando todas estas coisas da vida culminam em simultâneo. Ellie e Jack são duas personagens que cresceram juntas e que por essa via criaram uma ligação inseparável. Só que a primeira adora a vida pacata, embora ocupada, que leva em Suffolk. É a antítese do mundo das estrelas, da ribalta, não querendo ser engolida no moribundo mundo da indústria e de Hollywood. Jack é tudo o que precisa e é deveras evidente que a vida que leva lhe é suficiente. Mas Jack tem outros focos, outras nuances, outras necessidades, outra paixão que o cega e que o faz dar valor a quase tudo excepto àquilo que está à frente dos olhos: a sua música.
Só que o guião de Curtis parece não querer saber muito da sua relação — embora passe quase todo o tempo com eles — porque desde o primeiro momento é óbvio que devem ficar juntos. De tal ordem que chega a um ponto em que não se sabe quem é que está mais cansado: se quem vê, enquanto espera pelo desfecho amoroso, se Curtis, quando escreveu alguma das cenas entre Ellie e Jack. Muito do atrito da sua relação não é conhecido e nunca fica bem explicado — e aquilo que é parece escrito de forma rápida, prosaica e recalcado dum guião antigo.
Este é o mundo de Yesterday. E será que queríamos viver nele? Num mundo sem a riqueza e as canções dos Beatles? E de tudo e todos aqueles que eles influenciaram? Fica ao critério de cada um, mas tenho para mim que a opinião seria quase unânime: não, porque seria certamente um mundo bem mais pobre. E falar em pobre, debrucemo-nos sobre o guião de Richard Curtis. Porque uma pessoa vê o filme e se não pensar muito no que acabou de ver, até nem sai indisposto, porque é divertido. (É difícil não sair bem disposto e rir com as pesquisas de Jack no Google que revelam que os Beatles não são o único fenómeno da cultura pop que desapareceu à face da Terra. É mais ou menos óbvio que não há Oasis, certo?)
Só que ruminando um bocado o assunto percebemos que nunca é explicado como é que tal acontece. Qual seria a explicação lógica para isso? Para algo "atacar" especificamente o legado do quarteto de Liverpool? Não era necessário um argumento cientificamente apurado nem uma explicação ao estilo wormhole com papel e caneta, como acontece nos filmes de ficção científica que abordam viagens no tempo; só que sem explicação alguma parece apenas que a ideia saiu diretamente dum fórum de crentes que a Terra é plana. Não era preciso muito — só algo que revelasse uma sequência narrativa que fizesse sentido e que mantivesse a integridade da história.
Acrescente-se que em Yesterday Curtis não viaja no tempo como fez em Dá Tempo ao Tempo (que escreveu e realizou), mas tenta misturar a mesma dose de fantasia romântica. Só que falha, porque não se percebe muito bem até onde quer chegar. No segundo, a mensagem era clara. No primeiro, com uma premissa tão boa para vasculhar ideias, cria questões às quais não tem grande interesse em responder e ficou-se pelos caminhos que o levaram em direção a uma comédia romântica quando tinha tudo para não o fazer. E quando o faz, deixa arrastar demasiado o romance para trilhos prevísseis sem dar arco ou tempo à redenção dos envolvidos. (E, sim. Estou a falar de forma concreta do final. No entanto, não escrevo sobre ele para não estragar a experiência a ninguém.)
Mas há momentos bons, engraçados e que são bem característicos do trabalho que tem feito nas últimas décadas. E para o perceber, basta que se faça um pequeno exercício: de memória, e apenas de memória, sem utilizar recurso dos motores de busca da Internet, será que consegue escrever uma canção completa dos Beatles? De início ao fim e sem trocar a ordem? Parece fácil, mas não é. Jack também era o único que se lembrava, mas precisou de ir a Abbey Road e a Liverpool — e basicamente visitar os sítios icónicos da cidade para se conseguir lembrar das letras de algumas canções (num dos melhores momentos da fita e que transmitiu verdadeiramente a sensação de estarmos realmente num filme de Danny Boyle). O que parece ser consonante com a realidade de alguém que de súbito tenta recordar o espólio de algumas das melhores canções de sempre. É o tal chavão de que "dificilmente se escreve" sobre algo que nunca se viveu ou conheceu.
Daniel Pemberton, o compositor convidado por Doyle, realça que a música é algo que une uma quantidade enorme de pessoas — basta pensar na intimidade do último concerto de Eddie Vedder na Altice Arena a semana passada — e que pode mudar o mundo. "É bom ser relembrado disso num momento em que parece que a arte está a ser inundada pelo mundo moderno das selfies e do Instagram. Para nos reconectarmos com o poder da música é um deleite fantástico". Nesse aspecto, o filme passou a sua mensagem. Porque cada vez que a câmara de Boyle quis que ouvíssemos as canções dos Beatles pela primeira vez pela voz de Jack — fosse com Ellie ou fosse ao vivo na entrevista que fez com que Ed Sheeran o descobrisse — o sentimento passou. Himesh Patel canta com um encanto que cativa a essência do conteúdo original.
Yesterday é uma comédia charmosa o suficiente para arrancar largos sorrisos em vários momentos do filme, mas que se perde por vezes — demasiado — nas políticas da indústria musical; fica a sensação que Boyle (e Curtis) preferiram parodiar os exageros de todo o seu espectro à boleia da vilã máquina de negócios do outro lado do atlântico (a manager que também representa Ed Sheeran e que é interpretada de forma hilariante pela atriz Kate McKinnon). Percebe-se a importância dos jogos de bastidores que levam um desconhecido de Suffolk virar ícone e marca global, mas haveria outras maneiras menos aborrecidas de o fazer. Podia ser apenas uma teoriazinha da conspiração ao estilo Paul McCartney está morto desde a década de 60 ou que a banda pertence aos Illuminati. Mas não foi esse caminho o escolhido. O que é pena.
No entanto, acredito que seja de saudar o mergulho de Danny Boyle pela comédia e em ter aceitado o convite de Curtis. Porque no papel parecia um desafio intrigante para os seus préstimos. Só que saíamos do visionamento de Yesterday com um sabor agridoce, uma vez que implementar uma ideia destas (de como seria o mundo sem os The Beatles) e não fazer grande coisa com ela parece truncar as aspirações de todos aqueles que se sentaram na cadeira à espera da transcendência de Boyle ou do humor inconfundível de Curtis.
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