No filme "Tudo Bons Rapazes / Goodfellas" (1990) de Scorsese, numa das cenas mais emblemáticas ("You broke your cherry!") desta ode cinematográfica à máfia e ao bom cinema, o adolescente Henry Hill (a versão mais nova da personagem de Ray Liotta) vê-se a braços com uma receção entusiástica de Robert De Niro no tribunal depois de ter sido apanhado a contornar a lei pela primeira vez. Além de se lhe ver enfiado no bolso da camisa um singelo e gordo maço de notas como "presente pela graduação", recebeu rasgados elogios e os parabéns. Interrogando-se do porquê de tudo aquilo, o gangster Jimmy responde a Henry: "Não lhes disseste nada, eles não têm nada", comentário a que rapidamente anexou duas importantes "lições de vida". "Nunca denuncies os teus amigos e mantém a boca sempre fechada". Noutros termos, saber não dar com a língua nos dentes é uma virtude apreciada.
Ora, este parágrafo de introdução serve apenas para contextualizar o que se passou com o protagonista de "Tulsa King", série original da Paramount+ e que em Portugal está disponível na SkyShowtime. Apesar de apanhado e condenado a uma sentença de 25 anos por homicídio para safar o Chefe da Família à qual pertence, Dwight Manfredi (Stallone), conhecido como "O General", permaneceu calado durante as mais de duas décadas que viveu numa cela. Entre as quatro perdes minúsculas, leu muitos livros (Faust, Shakespeare, Robert Green) e escreveu má poesia (palavras do próprio), mas levou a cabo algo muito mais importante: respeitou o código de honra e não bufou sobre nada nem de ninguém. Porém, quando saiu da prisão, ao contrário de Henry, não teve uma receção calorosa nem palmadinhas nas costas.
Manfredi queria ser recompensado pelas perdas do silêncio (a mulher divorciou-se dele, a filha não lhe fala). No mínimo, uma posição digna, uma compensação que seja condigna com o seu sacrifício. Contudo, aquilo que o "Boss" lhe propõe é exatamente o oposto: ir para a deserto dos cowboys no meio do nenhures e começar um império criminoso por lá. Na sua ótica, o facto de o obrigarem a ir para um novo destino é um desrespeito pelos anos de serviço à família. Ainda assim, Stallone aceita o fado traçado e parte para aquela parte remota e esquecida para reconstruir a sua vida no meio da poeira de Tulsa, no Oklahoma, no interior rural da América.
O que se segue é a sua aprendizagem de uma nova realidade enquanto aplica velhos costumes. Concretamente, assistimos a exemplos de:
Nova realidade: Ter que aprender a lidar com uma sociedade que vive rodeada de tecnologia tipo óculos VR ou simplesmente ter de aprender o que é um iPhone, apps no geral ou como apanhar um "Uber".
Velho costume: Assim que avista uma loja de erva legal, o ex-capo marca o ritmo do que aí vem através da brutalidade gangsterclássica pelo controlo e poder. Crime é crime. Agora ou há 25 anos.
Co-criada por Terence Winter (responsável por "Boardwalk Empire" e muitos episódios de "Os Sopranos") e Taylor Sheridan (criador de "Yellowstone"), além de drama, máfia e violência, "Tulsa King" oferece outro elemento improvável: humor. Muito e do bom. Stallone já provou que consegue ser engraçado. Mas com o homem que escreveu "O Lobo de Wall Street" (Winter) a dar-lhe o material, Sly está tão-somente hilariante. Especialmente nas cenas que revelam as suas dificuldades em perceber um mundo que vive com demasiadas aplicações móveis, tecnologia ou erva legal.
Depois, é a tal coisa: Stallone até pode não ser hoje uma figura relevante na indústria como noutras décadas. A realidade, contudo, é que tem sido uma presença importante no mundo do entretenimento durante mais de 40 anos e vê-lo num papel em que assenta na perfeição traz algo mais do que nostalgia: traz satisfação. Porque independentemente de os seus filmes dizerem muito ou pouco às pessoas, é inegável que inspirou muitas outras a ter vontade de singrar num mundo difícil — o de Hollywood ou da vida, especialmente com Rocky Balboa, que iluminou o acreditar no underdog e no impossível, tornando-se numa parte bem-amada da cultura pop.
"Sempre quis fazer de gangster", confessou Stallone à The Hollywood Reporter sobre o papel. "Mas eu queria interpretar um gangster diferente, um gangster atípico — pelo menos, não quando o conhecemos. Na verdade, é gangster que gosta de cooperar. Pensei em na 'Metamorfose', de Franz Kafka. Tipo, 'e se acordasse e estivesse agora numa profissão diferente, mas tivesse a mesma personalidade?' Dessa forma, não se assume o cliché automático de um bandido que olha para si de olhos mortos. Mas se ele tiver de ser sombrio, vai ser bastante sombrio", explicou.
Por fim, a premissa da série e as pessoas envolvidas sugerem que estamos perante algo repleto de masculinidade. E na verdade estamos, que é coisa presente. Todavia, tal não invalida que o forte seja a comédia, ainda que talvez não fosse esse o intuito inicial dos seus criadores. E como bem lembra esta crítica da Empire, ainda não se consegue dizer se "Tulsa King" pode ou não alcançar o sucesso dos trabalhos recentes de Taylor Sheridan (o universo "Yellowstone" parece estar para durar e ninguém pode jurar a pé juntos que os caminhos de Kevin Costner e Stallone não se vão cruzar num episódio crossover) ou os sucessos passados de Terence Winter. No entanto, para já, há uma certeza: "Tulsa King" promete ser uma excelente escolha. Tanto para os fãs da comédia como para os do drama da máfia.
- Os primeiros quatro episódios já estão disponíveis na SkyShowtime
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