«Maus presidentes levam à criação de boa música». A frase é de Tom Morello, e serve como uma espécie de justificação para a existência dos Prophets of Rage, supergrupo que junta, no mesmo palco, três membros dos Rage Against the Machine (o próprio Morello, o baixista Tim Commerford e o baterista Brad Wilk), dois membros dos Public Enemy (o rapper Chuck D e DJ Lord) e um Cypress Hill (o rapper B-Real).
Na génese do grupo está a eleição de Donald Trump, figura que parece representar tudo aquilo contra o qual os indivíduos que o compõem têm lutado ao longo das suas vidas e carreiras: a América racista, individualista, capitalista, misógina. A América que proclama a liberdade, mas só para alguns – para todos aqueles que não forem imigrantes, negros, mulheres, pobres ou bons cristãos.
Não é por isso inocente que a composição do grupo passe por anti-capitalistas, por negros, por descendentes de imigrantes. Assim como não é inocente que na base de muito do seu espetáculo ao vivo estejam as canções dos Rage Against the Machine, que foram provavelmente a banda rock mais politicamente engajada, dentro do mainstream, dos últimos 30 anos, conjunto para o qual não existiam limites à revolução e à provocação: desde queimar a bandeira dos Estados Unidos, passando pela gravação de um videoclip na Bolsa de Nova Iorque, até ao anúncio de um concerto gratuito no mesmo local de uma convenção do Partido Republicano.
De certa forma, um concerto dos Prophets of Rage é um concerto dos Rage Against the Machine, mas sem o seu vocalista e letrista de sempre, Zack de la Rocha. A energia empregue às canções é a mesma, a mensagem igual. Substitui-se um grande MC por dois gigantes, Chuck D e B-Real (também eles extremamente políticos), e a atitude revolucionária é a mesma. Não se pense nisto como “apenas” rock n' roll; é mais que isso. É um cocktail molotov atirado ao rosto do imperialismo, do fascismo, do grande capital.
Más línguas dirão que os Rage Against the Machine, e por arrasto os Prophets of Rage, não passam de hipócritas: afinal de contas, a sua música é vendida em grandes lojas e distribuída por grandes editoras, e os seus membros ganharam mais dinheiro em nove anos de carreira (de 1991 a 2000, com uma reunião posterior) que muita gente da classe operária numa vida inteira. A justificação de Morello é simples e lógica: não vale a pena pregar aos convertidos, e Noam Chomsky – uma das suas grandes influências ideológicas – não se queixa de ter os seus livros à venda em grandes retalhistas.
Chomsky não esteve em Vilar de Mouros, mas os “convertidos” sim: aqueles que ouviram a música dos Rage Against the Machine na adolescência, e que vieram testemunhar, em primeira mão, os temas que os marcaram fortemente durante esse período, na impossibilidade de assistir a um espetáculo da banda propriamente dita. Como que a confirmá-lo, a segunda canção ouvida ao longo de uma hora e pouco de concerto foi 'Testify'. Explicando-o recorrendo a um dos versos desse tema: «quem controla o passado controla o futuro».
É essencialmente isso o que fazem os Prophets of Rage: resgatam as canções do passado para poder construir um futuro melhor, um futuro onde a sua mensagem revolucionária já não tenha que fazer sentido porque a revolução já se deu. Até lá, terão que erguer bem alto os seus punhos – foi assim que entraram em palco, com dezenas de pessoas a replicar imediatamente o gesto. Terão que entoar, a plenos pulmões, canções como a que lhes dá nome: 'Prophets of Rage', dos Public Enemy, que de imediato levou à loucura generalizada – copos de cerveja pelo ar, camisolas voando ao vento, poeira muita a subir rumo aos céus.
As palavras não podiam ser mais diretas, e as imagens também não; a dada altura, Tom Morello vira a sua guitarra e é possível ver um sinal de proibição a enfeitar uma cruz suástica, ali colado. A mensagem é a mais básica e a mais verdadeira: «as pessoas têm que se unir». Unir, transformar, e se for preciso disparar, como simulado por Chuck D a meio da bateria-metralhadora de 'Made With Hate', um dos poucos temas originais que se escutaram esta noite.
Musicalmente falando, o concerto não tinha como correr mal. A técnica de Morello, que faz da guitarra uma verdadeira mesa de scratch, continua impressionante. Commerford foi rei e senhor do baixo e do groove, Wilk mostrou uma pujança invejável lado a lado com DJ Lord, e o vozeirão de Chuck D continua temível, lado a lado com o flow mais anasalado de B-Real. Nem uma viagem ao mundo do medley hip-hop, quando os Prophets of Rage fazem uma pausa no ativismo para recordar temas mais festivos como 'Insane in the Brain', dos Cypress Hill, e 'Jump Around', dos House of Pain, afastou os roqueiros mais acérrimos.
De uma homenagem sentida a Chris Cornell, que tocou com estes três Rage Against the Machine nos Audioslave (a canção escolhida foi 'Cochise' e não teve vocalista; Morello impeliu o próprio público a cantá-la), passa-se para 'Bullet in the Head' (com Morello a tocar com os dentes), 'Bulls on Parade' (com direito a introdução ambient) e 'Killing in the Name' (com um toque ligeiro de 'Fight the Power' ao início). Seria este o final programado, de acordo com os alinhamentos de concertos anteriores dos Prophets of Rage, mas ainda houve tempo para uma surpresa (para além do slogan 'Façam Portugal Enraivecer Novamente', que por esta altura foi sendo exibido no palco); 'Bombtrack', que deixou ao rubro um público que estava conquistado ao início. Tom Morello dixit: Portugal «tem sido muito bom para as nossas bandas». Bem, as suas bandas têm sido muito boas para o Mundo. Estamos quites.
Naquele que foi o último dia do EDP Vilar de Mouros, os britânicos Gang of Four ainda tentaram, ao final de tarde, fazer esquecer que à mesma hora se jogava um Benfica x FC Porto, mas praticamente sem sucesso. Longe vão os tempos em que a banda era uma das mais frescas e interessantes dentro do pós-punk, através de álbuns como “Entertainment!”, de 1979, e através da mesma ideologia marxista dos Prophets of Rage (mas mais subtis).
Hoje em dia, os Gang of Four servem sobretudo como forma de Andy Gill, guitarrista da banda e único membro original da mesma, mostrar que ainda não está pronto para a reforma – e o que sofre são as boas memórias. Se é mau escutar 'I Love a Man in a Uniform' sem o coro gospel que lhe dá charme na versão de estúdio, é absolutamente confrangedor ouvir 'Damaged Goods', o maior dos seus clássicos, ser tão mal tocado. Os problemas de som, com Gill a reclamar por várias vezes com o seu roadie, também não ajudaram...
O fecho pertenceu aos Gogol Bordello, que após a revolução dos Prophets of Rage aproveitaram para dançar um bom bocado (já dizia Emma Goldman que, se não se pode dançar, não vale a pena tomar parte numa revolução). A banda norte-americana transformou o recinto num enorme bailarico, recorrendo a um punk rock de matriz cigana onde cabem ritmos e sons do ska, da polka, da folk, e a temas como 'Not a Crime', 'Immigrant Punk' e 'Wanderlust King', com o vocalista Eugene Hütz a dedicar-se a um lento striptease à medida que o espetáculo avançava. Mesmo que muito disto nos soe já datado e sensaborão (2005 já lá vai...), a certeza é uma: nunca ninguém não dançou 'Start Wearing Purple', com Hütz a celebrar no meio do público, como é seu apanágio.
O EDP Vilar de Mouros regressa em 2020, e já há datas: 27, 28 e 29 de agosto.
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