Nesta produção da FX, que por cá estreou esta quarta-feira na Disney+, seguimos de perto os passos (quase em jeito sombra) de Carmen "Carmy" Berzatto (Jeremy Allen White, o “Lip” de “Shameless”), um jovem Chef do tipo de restaurantes que associamos a estrelas Michelin e a comida sofisticada, que por força de uma perda pessoal regressa à sua terra natal para gerir o pequeno restaurante de família, cuja especialidade está na confeção da carne de vaca à moda italiana das suas sandes.
Carmy é um Chef inteligente que tem tanto de talentoso como de desenrascado, cuja personalidade forte se equipara ao brio com que batalha para assegurar a sobrevivência do restaurante no dia a dia, mesmo que isso implique negociar um casaco da Levis a troco de bife. O seu foco, a sua luta, a obsessão, remam todos para maré comum: a de colocar o negócio, aparentemente em maus lençóis, à tona. Porém, a realidade é que está num mundo (ou, melhor, numa cozinha) bem diferente daquele(a) a que se habituou nos últimos anos.
Os tempos em que supervisionava o empratamento num sítio onde reinava a alta gastronomia do Upper East Side de Nova Iorque, em que era uma das vozes de comando de uma cozinha organizada, limpa, refinada, com todas as “estações” oleadas, já lá vão. Agora, os seus dias são consumidos com a recalcitrante pequena equipa do “The Original Beef of Chicagoland”, uma pequena casa de família na gélida e inclemente cidade de Chicago, pouco dada aos seus costumes “profissionais” da “alta cozinha”.
A adaptação, de resto, não é fácil para ninguém. Não o é para alguém que chega com boas intenções e tenta implementar novos costumes, nem tão pouco é para os que já estão na casa há vários anos e que confundem a sua força de vontade e maneirismos com snobismo. O primordial desejo, contudo, é comum a todas as personagens: para que a receita, nova ou velha, não faça o restaurante fechar portas. Mas para tal é preciso que estejam todos de acordo para que o tempero de relações tensas fique de fora do menu. Só que isso… é coisa mais fácil de dizer do que fazer.
“The Bear” é uma daquelas séries que deixa marca e que nos faz remoer sobre o que acabámos de ver. Como bem elucida este ensaio, força-nos a ter uma reação. E fá-lo porque a câmara nos coloca a vaguear junto das personagens, qual voyeur desinibido que trocou uma praia de nudismo pela cozinha, em que andamos ao sabor de uma escrita despretensiosa, que nos faz sentir que tudo é real e com que sintamos na pele cada cena.
A culpa é de uma realização que carrega aos ombros toda a intensidade vivida no setor. A vida numa cozinha de um restaurante em horário de refeição é rápida, frenética e de movimento constante. Só que o espaço onde toda esta ação decorre é pequeno, sufocante, quase de inquietação e aflição. No fundo, o ambiente ideal para um confinamento de emoções a cada “Yes, Chef!”, a cada movimento frenético da faca a cortar legumes. Em “The Bear”, tudo isto é evidenciado e exposto de forma intensa. Aliás, intensidade parece ser a palavra de ordem.
A montagem acelerada, a música de fundo escolhida, a interpretação dos atores, os close-ups e composições da cinematografia, tudo contribui para a criação de intensidade louca, criando uma consternação visual e emocional. No entanto, todo este aparato e caos que nos chega é calculado. Dentro da cozinha, a câmara aproxima-se muito das mãos, dos rostos, dos detalhes. A lente dá ideia de que sofre de astigmatismo severo, de que distorce o que devia estar nítido.
Porém, nesta série, este malabarismo técnico resulta. Parece contraditório, mas tudo isto acaba por dar precisão e estabilidade no meio da romaria. O que, ultimamente, faz com a audiência sinta que está lá também, naquela cozinha, com as personagens, a cortar legumes e a assistir às discussões. Como se cada frame desfocado fosse o nosso olhar cansado, cada corte rápido na montagem fosse o nosso pestanejar dormente.
Criada por Christopher Storer (realizador de vários episódios de “Ramy”), “The Bear” tem recebido rasgados elogios pela crítica especializada e pela comunidade da restauração pela autenticidade (assegurada por Matty Matheson, um Chef “a sério”, que serviu de consultor e que na série dá uma perninha enquanto ator ao dar vida à personagem Neil Fak, ainda que nunca se aproxime dos tachos). A vida dentro de uma cozinha é muito peculiar e dura. Família, amizade, amigos, muitas ficam em segundo plano em prol do ofício e das ambições. E “The Bear” demonstra-o bem, ao dispensar tempo no desenvolvimento das suas personagens.
Os episódios são de trinta minutos, mas nada cai no vazio. Os seus interesses, as suas motivações, os seus sonhos, os seus objetivos. O porquê de fazerem algo. E é aí que, além das partes técnicas, a série brilha. O guião dá-nos cenas em que é complicado ver alguém com quem simpatizamos, com quem partilhamos a ambição ou simplesmente feitio, perder as estribeiras sem aparente razão. E não é o stress, a pressão, de fazer uma cozinha pequena em modo sobrevivência funcionar. É a maneira como isso se assemelha a muitos outros trabalhos, a outras existências, a outras histórias. As suas falhas, as suas batalhas interiores tão reconhecíveis, fazem com que a audiência se importe com as personagens. E esse traço de “The Bear”, revelado episódio a episódio, é algo que lhe concede o estatuto de uma deliciosa sandes no menu das séries que recomendamos.
- Os oitos episódios de “The Bear” vão ficar disponíveis amanhã, dia 5 de outubro, no Disney+.
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