Depois de pegar noutros autores importantes da literatura portuguesa, como Agustina Bessa-Luís, Fernando Pessoa ou Eça de Queirós, o realizador João Botelho queria adaptar José Saramago, acabando a atualidade por o ‘empurrar’ para “O Ano da Morte de Ricardo Reis”, que tem como pano de fundo a afirmação do Estado Novo e o surgimento da extrema direita na Europa.
Na obra de José Saramago, Ricardo Reis regressa do Brasil, um mês depois de o seu ‘criador’ Fernando Pessoa morrer. A Lisboa que encontra, em 1935/1936, é cinzenta e triste, onde quase sempre chove.
Os mais pobres juntam-se para o bodo, assiste-se à escolha das cores do fascismo português num comício no Campo Pequeno, um gerente de hotel sempre à procura de saber tudo simboliza os bufos, ao mesmo tempo que o heterónimo de Pessoa lê notícias que vêm do resto da Europa, de Mussolini, de Hitler, do arranque da Guerra Civil espanhola.
“Eu acho que, nos tempos que correm, estamos a viver umas épocas muito parecidas, muito estranhas, com o regresso dos populismos, nacionalismos, guerras religiosas em que parece que estamos na Idade Média e este texto é atual”, disse João Botelho, que falava à agência Lusa durante as rodagens do filme, em Coimbra.
Luís Lima Barreto, que interpreta Fernando Pessoa na longa-metragem de Botelho, também salienta “uma maior urgência” em adaptar esta obra.
“Este filme há dez anos ainda se podia perguntar o porquê de se o fazer. Neste momento, as pequenas referências que há no filme são tão parecidas com o que se está a passar no mundo que até faz impressão”, diz.
O ator conta que, a estudar o texto, prendeu-se com uma frase de Pessoa a Ricardo Reis: “O mundo ainda está pior do que quando o deixei”.
“Neste momento, as coisas estão absurdamente perigosas”, constata.
Também o ator brasileiro Chico Diaz, que interpreta Ricardo Reis, considera “extremamente oportuno” o momento de adaptação da obra.
“Vem com muita força para tornar clara a discussão que estamos a viver no mundo inteiro. O filme veio para tornar essa discussão bem fértil”, acrescenta, apontando para o seu próprio país que está a viver “um momento ímpar, que chega a ser surreal”, onde “a razão se perdeu”.
Nesse sentido, acredita que também é oportuno que a discussão se faça “através da poesia”, porque “eles não suportam poesia, não suportam a arte”.
Pilar del Río, que preside à Fundação José Saramago e que esteve presente em Coimbra, durante as rodagens, evoca o “Ensaio sobre a Lucidez” e a sua epígrafe – “Uivemos, disse o cão” -, para salientar que se está num momento em que “qualquer ser humano com consciência tem de uivar”.
Quando soube que João Botelho ia adaptar o filme, a tradutora, jornalista e companheira de Saramago desejou “ser um Estado com capacidade de condecorá-lo”, notando o risco de se atrever “com uma obra tão grande”, depois de Saramago também ter tido a coragem de enfrentar um símbolo de Portugal, com uma carga “de sabedoria, de humor de ironia, com uma perspetiva contemporânea, que destroça toda essa mitologia dos anos 30″.
“A História é importante neste momento, porque estamos a incorrer, novamente, alegremente, cantando e dançando – como dizia o outro – nas mesmas atrocidades, a cair na perversão, no desprezo do outro e no elogio da ditadura”, afirma.
Nesse sentido, Pilar del Río defende que é preciso ler, não precisa de ser Saramago ou sequer literatura, mas “ler pensamento, filosofia, história”.
“Ao ler, somos mais fortes. Se somos mais fortes, não seremos tão facilmente empurrados pelos ventos”, realça.
Além de um filme, a adaptação de João Botelho vai originar uma série de cinco episódios a ser emitida na RTP, informou o produtor Alexandre Oliveira, acrescentando que o orçamento é de cerca de dois milhões de euros e que a estreia comercial está prevista para 2020.
As filmagens vão decorrer até final de maio, sendo grande parte do filme rodado em Lisboa.
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