“Há a ideia de que os escritores portugueses são maus na cama”. Sem mais nem menos, Filipa Martins rasga de alto a baixo uma sala cheia desses alegados maus amantes: os escritores, que se levantaram logo num burburinho, contestando a ideia de que podem ser maus amantes.

Lá fora chove. "São os Açores", diz uma mulher que me oferece chá, pelo simples facto de me ter sentado ao lado dela, encharcado. "Não é de cá", afirma, "notei logo pelo sotaque", diz, atirando-me a continentalidade à cara. Ainda assim, a oferta da mulher, ao continental que sou, contraria a ideia de uma tal depressão insular, que ataca o ânimo e ensimesma os micaelenses, fechando-os. "Houve piratas; houve continentais que cá vieram e deixaram filhos às moças", justifica.

Essa desconfiança adensa o isolamento. E o isolamento aumenta a necessidade de expressão, donde há de vir esse romantismo insular, que faz músicos e escritores. E do romantismo, metido entre o nevoeiro e a chuva; entre o basalto negro e as paredes brancas, vêm as prosas luxuriantes e as poesias dolorosas: "No mar da tua ausência, a saudade é o barco em que navego", escreveu o açoriano Norberto Ávila.

A sala dos Armazéns Cogumbreiro está cheia. A proposta, inserida no ciclo "Arquipélago de Escritores", é responder ao desafio Literatura: Afirmação da Volúpia ou Solidão Disfarçada de Prazer. E para tal, junta os autores Filipa Martins, Luís Osório, Leonardo Sousa, Álamo Oliveira e Dulce Garcia.

O processo de escrita surge de um "estado de solidão, enfermo, quase", diz Filipa Martins. O escritor escreve porque quer criar empatia com o outro; usa a escrita como pedido de amor: "o escritor é um pedinte de amor", sublinha a autora. "É alguém sem par".

"É comum ouvir o escritor dizer que precisa da escrita quase como uma psicoterapia", diz Filipa. Psicoterapia para lidar com a solidão: "um escritor não tem família quando escreve", segue Luís Osório.

Significa isto que o autor não pode pensar na vergonha da mãe lendo a descrição gráfica de uma relação carnal; nem no constrangimento dos filhos que tomam consciência da eventual perversidade do pai que escreve.

No entanto, "escrever sobre prazer, sexo, é muito difícil", aponta Luís Osório. "E é muito fácil derrapar", completa. Derrapar para o foleiro e para o meramente pornográfico. E vai mais longe: "As pessoas que falam de maneira primária sobre prazer normalmente são maus escritores".

"O escritor é um abismo profundo onde podemos encontrar tudo", completa Luís Osório.

Literatura é sentir — mas não obrigatoriamente

"Não acho que a literatura seja a afirmação da volúpia — ela é em si a volúpia, o prazer", diz Leonardo Sousa. Para o escritor de 25 anos, é difícil "a ideia de prazer sem o sentido", sentido biológico: o cheiro, o toque, o sabor. Por isso, a obra de um autor que se refugie só na experiência imaginada e não na vida experimentada está só a montar uma cama de técnicas e pormenores inventados.

"Não acredito muito na ideia de alteridade", do escritor que se faz outro, que separa a sua ficção da realidade que tem. "Quando escrevo não posso escrever como alguém de setenta anos", diz Leonardo.

Já antes, Osório tinha dito que "cada pessoa que escreve carrega em si a sua história". E há uma "contaminação da ficção pela realidade", todavia também "uma contaminação da realidade pela ficção". O homem que escreve e o homem que é misturam-se e dissimulam-se. Anulam-se as margens de um do outro. Eu que deixo de ser eu para ser outro, vivendo pilar intermédio dalguma coisa.

Ou não.

O trabalho do escritor não é só contar o que é. É imaginar o que podia ter sido — desde que dê a esse pensamento uma força de autenticidade. É isso que explica que Filipa Martins não tenha de ter tido relações sexuais com um negro no capô de um carro para escrever isso mesmo em Mustang.

"Ninguém escreve sobre aquilo que não conhece", porém, "o escritor tem de ser um bocado fantasista". A aparente contradição é de Álamo Oliveira.

Aquilo que o escritor cria, olhando para a realidade, é que traz a desejada autenticidade, explica Álamo. Ainda assim, "quase sempre as descrições de cenas de amor são mais poéticas do que realistas", diz Álamo.

Mas não só o sexo é literário na literatura, porque "toda a literatura está cheia de voluptuosidade e prazeres", acrescenta Álamo. Mais: não consegue "entender a literatura, o romance sem esta exploração dos sentidos e dos sentimentos".

Do sexo ao regresso

Finda a discussão, ainda chove. A mulher que me ofereceu chá despede-se com um "boa sorte", enquanto vou para outro canto da cidade procurar respostas.

No salão nobre dos Paços do Concelho de Ponta Delgada fala-se dessas partidas, mas também dos regressos. Fala de viagens, da inevitabilidade de os regressos já estarem nas partidas. "Quando regressamos", diz a escritora Clara Macedo Cabral, "compreendemos melhor o lugar de onde partimos".

Vem isto ao caso porque um escritor não tem de ser nómada para conhecer mundos. "É possível escrever sobre mundos fabulosos fechado num quarto com quatro paredes brancas, numa secretária branca, num computador Macintosh branco", diz Joel Neto.

Assim sendo, o escritor pode imaginar. Mas também pode viver. Pode pegar no sentido e no pensado. E aí o sexo e as viagens encontram-se no caminho. Porque o desejo não há de ser tão diferente assim: a vontade de ir e conhecer aplica-se aos dois casos.

"As narrativas são aquilo que a vida nos dá de estimulante, sem a parte chata", diz João Tordo na discussão sobre regressos e partidas; partidas e regressos.

Por falar em idas e voltas, voltemos à sexualidade dos escritores. Lá nos Armazéns, onde se falava da volúpia, da solidão e do prazer, a conversa terminou antes de querer acabar. Havia mais a dizer, mais a pensar. Mas o constrangimento da ilha é também o horário do avião, que, no caso, o escritor Luís Osório tinha para apanhar.

Porém, antes de sair, ainda antes da despedida, fez o resumo: "Os escritores são completamente fodidos da cabeça".