Para 100 anos, dir-se-ia, está muito bem conservada, mesmo depois de ter sofrido os males da pandemia e outras doenças próprias da idade. Paciente, espera a visita de quem gosta de uma vida de histórias ou quer partilhar um pouco de solidão. Chama-se Sala António José de Almeida e foi inaugurada a 3 de outubro de 1923. Hoje, a Biblioteca da Imprensa Nacional Casa da Moeda (INCM) reabre ao público com a mesma pompa e circunstância.
Quem passa na rua não imagina o que as paredes escondem. "É uma das características dos edifícios públicos, não é muito fácil colocar informação do lado de fora", diz Inês Queiroz, que ali trabalha desde 2017. Lá dentro, uma fábrica, a gráfica onde até 2006 foi feito o "Diário da República" e onde são impressas as edições da INCM, a Biblioteca, onde repousam obras anteriores ao séc. XVI, e o que resta daquilo que em tempos foi uma escola de tipografia.
O espólio inclui, além incunábulos e edições únicas, maquetes de livros e coleções de materiais gráficos, aguarelas originais de Manuel Lapa, um dos decoradores da Exposição do Mundo Português (1940), gravuras e muito mais.
"Alguns são materiais que apenas podemos deduzir que vieram da escola tipográfica, que fechou nos anos 70, outros tivemos a sorte de conseguir confirmar com o último contramestre, que foi quem nos ajudou a perceber que alguns daqueles materiais eram treinos, exercícios para experimentar, por exemplo, a impressão de cores. Recorremos muito à ajuda deste e de outros antigos trabalhadores para fazer a história da Imprensa Nacional, por ocasião dos 250 anos", explica Inês Queiroz.
Investigadora doutorada em História Contemporânea, conta que "o acervo bibliográfico ficou encaixotado durante cerca de 20 anos. Até à chegada de Luís Derouet, figura incontornável da Imprensa Nacional - jornalista, colaborador do jornal "O Mundo", boas relações com o operariado, mas também em todos os espetros políticos e culturais, da hierarquia católica aos republicanos de esquerda -, que assume a direção-geral da empresa a 6 de outubro de 1910, primeira nomeação da República.
É Derouet quem mostra a intenção de refazer a Biblioteca. E de a abrir ao público. "Apesar de alguns impasses, muito motivados por questões financeiras, em 1912 começam a fazer-se palestras de disseminação cultural a científica, enchendo os espaços da Imprensa Nacional com operários, mas também com pessoas que vinham de fora. Em 1913 faz-se a grande exposição de artes gráficas, muito dentro daquilo que era o pressuposto republicano". Os primeiros passos para o que viria depois.
Só em 1921, já no pós-guerra e ainda num contexto financeiro complicado, se fala na necessidade de construir uma biblioteca. E o que se vai fazer é construí-la integralmente dentro de casa.
"A construção inicia-se em 1922 e a sala onde se encontra a Biblioteca é irrepetível, porque foi projetada para caber naquele espaço", conta Inês Queiroz. "Terá sido Alfredo Morais, chefe de litografia da Imprensa Nacional durante muitos anos, e que na altura colaborava com Roque Gameiro, a desenhar as estantes e o restante mobiliário. E foram os carpinteiros da empresa que a construíram, pedindo para trabalhar fora das horas de serviço sem exigir nada em troca".
Interessante é saber que os operários da Imprensa Nacional podiam consultar a Biblioteca e o acesso era até estimulado. "Os trabalhadores tinham um horário próprio para consultar a Biblioteca, normalmente à noite, uma vez que trabalhavam por turno. Isto era feito também numa lógica de garantir a formação do operariado, que continuava a fazer visitas de estudo e a assistir a palestras e a ter acesso a todas as obras, o que promovia a leitura".
Além disso, os tipógrafos da Associação Tipográfica Lisbonense, uma das entidades que está na origem da APIGRAF - Associação Portuguesa das Indústrias Gráficas e Transformadoras do Papel, hoje a organização do setor gráfico, também estavam autorizados a frequentar a Biblioteca.
"Estamos a falar de uma biblioteca que procura melhorar-se tecnicamente, ir buscar obras gráficas, tudo aquilo que fazia falta ao operariado, os artistas (desenhadores, aguarelistas, tipógrafos, gravadores) que precisavam de melhorar as suas técnicas e, sobretudo, conhecer outras obras para poder comparar, corrigir ou até repudiar", afirma a investigadora.
"Os tipógrafos eram uma espécie de operários de elite, com um nível cultural bastante elevado. Muitas vezes tinham de aprender francês, hebraico, uma série de línguas para poder compor. Tanto assim que muitos acabavam a carreira como revisores, a figura de proa da tipografia, tal a evolução na composição".
Inês Queiroz dá o exemplo de Nobre França, um tipógrafo da Imprensa Nacional que esteve na origem do Partido Socialista Português do século XIX [1875-1933], com Azedo Gneco, que era gravador da Casa da Moeda (isto, cem anos antes da fusão das duas instituições), e que teria um nível de formação já muito avançado. "Foram os dois juntos que redigiram os estatutos do partido", lembra.
A Biblioteca é inaugurada a 3 de outubro de 1923 ainda por António José de Almeida, que estava a terminar o seu mandato e dá nome à sala. Terá sido o último ato público do antigo ministro do Interior, que teve a tutela da Imprensa Nacional.
"É engraçado, porque achamos sempre que estamos a inventar alguma coisa, mas na altura, para celebrar o evento, foi feita uma conferência que contou com diversas figuras públicas de referência e um concerto". Mais ou menos o programa das festas dos 100 anos (ver caixa).
Na altura, falava-se na multidão de livros que foi preciso arrumar, mas o regulamento da Biblioteca só viria a ser publicado em meados de 1924, e é aí que surge a intenção de a abrir ao público. Qualquer cidadão podia, a partir de então, fazer um cartão de leitura, sem custos, e consultar as edições. "A partir da abertura, a Biblioteca vai ter muitas doações, muitas ofertas, incluindo de Teófilo Braga", que morre nesse ano, "e tem ali muita influência".
"Infelizmente, estas coisas demoram algum tempo e só agora começámos a perceber melhor alguns destes materiais. E a Biblioteca é isto, um conjunto de coleções. Tem, por exemplo, uma camoniana, que espero um dia alguém venha a querer estudar, porque temos "Os Lusíadas" e estudos sobre Camões em pelo menos sete línguas, incluindo polaco. Aliás, o país celebra no próximo ano os centenários de Camões e, de facto, aquela camoniana é muito referida como sendo única, com edições que nem a Biblioteca Nacional tinha", orgulha-se.
Muitas das obras da Biblioteca da Imprensa Nacional perderam-se ao longo do tempo, em andas e bolandas. É preciso conhecer a história. A Imprensa Nacional foi criada em 1768, no contexto pombalino, iluminista, com o propósito de disseminar a cultura - "que, evidentemente, corresponde a uma época, ainda não tem uma perspetiva da democratização do conhecimento, do conhecimento para todos".
Por causa do terramoto de 1755, é instalada num palacete deixado por um dos muitos proprietários da altura que recuaram para a zona mais alta da cidade e alugaram aqueles espaços. "Era impensável instalar a Imprensa Nacional na zona baixa da cidade, porque a maioria dos edifícios não tinha condições estruturais para a receber".
Com as Invasões Francesas e a fuga da Corte para o Brasil, em 1807, parte da Biblioteca da Ajuda, antiga biblioteca nacional, foi levada para o outro lado do Atlântico e cerca de metade do acervo bibliográfico da Imprensa Nacional foi levado para a Ajuda. Ou seja, a pequena biblioteca passou quase todo o século XIX a tentar reconstituir-se: recuperar edições próprias e outras que faziam falta à formação do operariado tipográfico, sempre com a preocupação de conservar obras de língua e cultura portuguesa ou da cultura clássica.
Atualmente, a Biblioteca mantém a sua política de aquisições. Mas o espaço, todos os bibliotecários se queixam do mesmo, não estica. A sala já cresceu, com um anexo posterior, uma espécie de hall. Mas a tendência é cada vez mais para a especialização. "Tem havido alguma reorganização de bibliotecas da cidade e algumas contactam-nos porque sabem que temos uma especialização em artes gráficas e estão a especializar-se noutra área. Então, fazemos trocas. E esse é um caminho".
"O património fechado está condenado a morrer"
Cem anos depois a Biblioteca da Imprensa Nacional tem agora mais uma oportunidade. E o público também. "Um património fechado é um património condenado a morrer", assegura Inês Queiroz. "Uma coisa é a preservação, a salvaguarda, o cumprimento de procedimentos, sempre com a garantia de que esse património será entregue à geração seguinte para que também esta cuide dele. Outra coisa é mantê-lo fechado sem que ninguém o conheça. E o desconhecimento do património é o maior risco que podemos correr".
Se é assim, por que razão permanece o mito de que Biblioteca da Imprensa Nacional está fechada? "Na verdade, durante muitos anos ficou praticamente fechada, porque a grande procura era o acesso ao Diário da República, era para isso que as pessoas se dirigiam ao edifício e era isso que ocupava quem aí trabalhava, a reprodução e autenticação de Diários da República para concursos públicos e outras questões. E o acervo bibliográfico acabou por ficar para segundo plano".
Entretanto chegou o Diário da República Eletrónico, mas agora faltam curiosos. Ou então apenas quem saiba que ali mora uma biblioteca com 100 anos. Será que Lisboa tem mais bibliotecas do que leitores? A investigadora franze o sobrolho: "Esse é um tema que me ocupa e me preocupa", diz. "Mas depois leio que em 1924 o primeiro chefe da Biblioteca já achava o futebol estava a ganhar às bibliotecas, onde os jovens já não iam. E penso, se isto era em 1924 e a Biblioteca sobreviveu 100 anos, então é porque afinal há leitores interessados", ri.
Na opinião da investigadora "a relação com o público pode fazer-se de várias formas". Apesar de admitir que, sobretudo nos últimos anos, por causa da pandemia, a Biblioteca tem mantido um programa cultural muito reduzido, avança que a normalidade está a ser retomada, com concertos, com leituras, lançamentos de livros, colóquios e seminários, entre outras iniciativas.
Além do mais, "abrimos a Biblioteca à comunidade científica, para que esta possa, por exemplo, promover encontros na zona nobre da cidade sem custos. Ou ensinar. Isto tem sido feito em parceria com algumas instituições académicas, escolas como a ETIC, alunos de design ou de arquitetura. Por outro lado, porque sabemos que há um conjunto de questões que pode afastar as pessoas das bibliotecas, podemos tê-la também como um espaço de trabalho. Nesta altura, por impacto da Covid-19, a Biblioteca está sujeita a marcação prévia, mas consegue-se articular muito bem. Está acessível a quem precisa de consultar bibliografia ou a quem queira simplesmente aproveitar aquele espaço magnífico para trabalhar".
E agora melhor que nunca. É que madeira e livros são a tempestade perfeita para caruncho, peixinho prata e outras pragas, mas a Biblioteca acaba de ser completamente desinfestada. "Foi detetada no edifício alguma infestação das madeiras. Aproveitámos, uma vez que teríamos de fazer a intervenção na Biblioteca, e conseguimos, com a colaboração da EXPM, fazer também a desinfestação dos livros por anóxia, como medida preventiva". Mesmo a tempo do centenário.
"Há ainda um detalhe", diz. "Já estamos a pensar no que serão as bibliotecas no futuro. E uma das coisas que queremos garantir é que, à medida que a Imprensa vai começando a ter edições exclusivamente eletrónicas, também damos acesso a essas publicações. Não é porque o livro em papel acaba que vamos deixar de cumprir essa função e fazer a catalogação e preservação desses formatos".
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