Foda-se. Em inglês, a palavra fuck cabe atrás de qualquer outra. É dita com naturalidade perante algo inesperado, é uma irritação gritante, um sublinhar de um sentimento de insatisfação. O vocábulo cabe antes de uma expressão que surge quando não acordamos com o despertador e nos apercebemos que estamos atrasados, quando descobrimos que já não há ovos no armário, quando perdemos o comboio ou quando batemos com o dedo mindinho num móvel lá de casa. Independentemente da situação, a língua inglesa deu flexibilidade ao verbo para que pudesse servir de desabafo em qualquer momento.
Mas a língua portuguesa não, cá é uma espécie de suspiro, uma palavra curta de indignação que vive sozinha ou como prefácio a uma declaração de surpresa, dor ou angústia. É com esta palavra, um curto e indignado ‘foda-se’, que Diogo Faro abre o seu primeiro solo de stand-up, Lugar Estranho, depois de um vídeo de poucos minutos que espelha em episódios mais ou menos conhecidos da atualidade nacional e internacional um mundo misógino e racista.
Pode-se dizer que o espetáculo se resume nesta palavra pela forma como o comediante satiriza e coloca em linhas humorísticas a frustração que sente com o mundo.
“Estive muito tempo sem fazer um espetáculo grande ao vivo e nunca tinha feito um solo de stand-up, só stand-up. E neste momento tenho uma necessidade artística de dar expressão a tudo isto que tenho pensado sobre estes assuntos da identidade de género, da igualdade de género, machismo, homofobia, mesmo da burocracia portuguesa. Acho que está na altura de mandar tudo isto cá para fora e tentar que as pessoas também pensem um bocado sobre estes assuntos. Acima de tudo, fazê-las rir, acho que essa é sempre a prioridade de um comediante, mas tentar que as pessoas pensem um bocadinho sobre isso”, confessou Diogo Faro ao SAPO24 nos bastidores, antes da estreia da tour em Palmela.
Era aqui que o Diogo se diferenciava para dar azo ao título do mini documentário que acompanhou as primeiras datas do solo: Para Além do Riso. Rejeitando o rótulo de ativista, diz “se puder fazer as pessoas pensar, satisfaz-me muito mais do que se só fizer rir”. “Se calhar é também utópico da minha parte e um bocado arrogante do ponto de vista artístico achar que posso mudar as pessoas, não quero que as pessoas pensem todas da mesma maneira que eu. Quero fazer rir, certo, mas se conseguir que as pessoas pensem um bocadinho sobre estas coisas e se ao verem os meus espetáculos vão para casa e até vão conversar com os colegas, com as namoradas ou namorados sobre o que se passou e refletir sobre estes assuntos, então talvez esteja a mudar um bocadinho de nada de alguém para melhor”, assume.
Há quem diga que não devemos voltar onde já fomos felizes. O ditado é velho, mas todos os dias surgem histórias de quem tem vontade de o contrariar. Afinal de contas, por que razão não podemos voltar a ser felizes num sítio que nos é familiar, acolhedor e nos traz à cabeça boas memórias? Diogo Faro voltou a Palmela para celebrar o sonho da comédia, na vila da sua infância, onde alimentou o sonho de uma carreira na música, num palco onde já tinha atuado em jovem, no Cine-Teatro S. João.
No dia sete de fevereiro, Faro acordou já na vila do distrito de Setúbal, no dia em que iria estrear o primeiro solo de stand-up da carreira. Com os genes repartidos por três cidades, Lisboa onde nasceu, Palmela, a vila da família da mãe, Isabel Biu, cantora lírica, e Goa de onde é o pai, o maestro Luís Pedro Faro, foi ali que Diogo passou verões inteiros e muitos fins de semana da sua infância e adolescência. “Tenho muitos amigos e muita família em Palmela. Foi aqui que comecei a andar de skate, era aqui que jogava muito à bola ali nos largos, que comecei a dar beijinhos na boca... Por ter esta ligação familiar, por ter muita gente que me conhece sem ser do meu trabalho, que me conhece por ser Diogo Faro neto do Humberto Biu e da Manuela Biu, filho da Belinha, achei que fazia todo o sentido começar aqui um espetáculo que é muito muito importante para mim, um texto que demorei, se quisermos, 30 anos a escrever. Senti que seria o sítio onde eu poderia estar à vontade e confiante e sentir-me confortável para me estrear”, explica.
Não deixa de ser curioso que a primeira data da tour seja no lugar onde adensou o desejo de ser músico durante a juventude. Depois de ter tido o avô como mestre e de ter integrado a banda da vila, Diogo entrou para o Conservatório com a vontade de se querer tornar músico e de continuar a tocar clarinete.
“Quando nascemos numa família em que a arte é uma constante, quer dizer, eu nasci quase em cima de um piano. Eu lembro-me de pequenino, estava sempre nos ensaios do meu pai que era maestro e ia para o Teatro Nacional São Carlos com a minha mãe, depois os meus avós a tocar, os meus tios, etc. É impossível fugir a isso, ganhas um gosto. Não é obrigação, ninguém me obrigou a ser músico, só que ganhas um gosto natural”, diz o próprio.
Mas lá em casa as vozes da experiência eram mais cautelosas: “Quando ele estava no 12º ano, eu e os meus pais pressionámo-lo para não ser só músico. Ele queria ser só músico. Infelizmente, Portugal é um país muito pequeno, não só em termos de mentalidade, mas em termos de espaço e sobretudo no mundo da música, do teatro... a cultura é uma coisa que se faz com muito esforço sempre. E nós pressionámo-lo para ter uma outra ferramenta. Ele teve um ato de rebeldia, chumbou no 12º ano, também chumbou no Conservatório nesse mesmo ano e depois disse-me 'ok, mãe. Já sei o que vou fazer'. E no ano seguinte acabou o secundário e foi para a faculdade fazer Publicidade e Marketing”, conta-nos Isabel Biu.
Aqui, a sul do Tejo, o sonho era outro e a ideia de ser comediante estava longe de lhe passar pela cabeça. “Nunca fui tímido, sempre fui extrovertido e disse parvoíces, mas também nunca tentei ser sempre o palhacinho do grupo”.
Isabel vê a estreia ali, num palco onde também já atuou, como um “ato de generosidade em relação aos avós”, de quem ele é muito próximo. Curioso é que nesse mesmo dia, ao pequeno-almoço, o Diogo nos tenha confessado, entre sorrisos, que pediu aos avós e à mãe para não irem assistir ao espetáculo porque se iria sentir desconfortável em abordar alguns temas, mais pessoais, à frente deles. Dos avós recebeu uma chamada - “ainda há bocadinho o meu avô ligou-me 'Diogo não estamos aí, mas sabes que estamos sempre a apoiar-te e estamos sempre no teu pensamento e vai correr muito bem', foi muito bonito” - da mãe viria a receber uma surpresa, no final do espetáculo quando ela saiu da plateia diretamente para os bastidores para lhe ir dar um beijinho.
Da música Faro saltou para a publicidade, mas o trabalho entre quatro paredes não era o melhor para alguém que nem dentro de fronteiras está satisfeito. Como quem diz, o Diogo queria uma melhor forma de poder fazer dinheiro para alimentar uma das suas maiores paixões, as viagens.
Foi, aliás, numas das mais recentes saídas que o processo de escrita para o Lugar Estranho, da cabeça para o papel, começou. “Não tenho um processo criativo em si, muitas coisas ocorrem-me de estar na rua e pensar. Posso dizer que grande parte do espetáculo, diria que mais de cinquenta por cento, foi escrito no Sri Lanka. Gosto muito de viajar e viajar sozinho dá-me essa liberdade. E uma grande parte da viagem ao Sri Lanka foi já... tinha andado muito pelo país, de um lado para o outro, e na última semana resolvi ficar ali na mesma zona, um sítio lindíssimo no sul do país, tinha praia, bons restaurantes, mas com pouco turismo. Estava num hotel com seis quartos em que eu era o único hóspede na altura. E sentava-me sempre todos os dias a escrever e a escrever. Depois de ter tanto explorado e pensado, visto e lido, foi assim”.
Esse mundo também haveria de ir para palco. Ao contrário de um espetáculo normal de stand-up, Diogo não iria estar sozinho. Ao seu lado, um pouco mais atrás, mais de vinte globos, trabalhados cada um de forma diferente pela Joana e pelo Sebastião, dois cenógrafos que foram desafiados pela H2N, a produtora à frente da tour, para compor o cenário do espetáculo.
“Cada um vive numa bolha, para mim, na minha cabeça, era um bocado isso. E por isso cada mundo é diferente e nós construímos o nosso mundo. Nenhum mundo de ninguém é igual ao outro e é essa diversidade que quisémos transmitir na peça”, conta Joana. Ao fundo, no palco, são vários os globos. Desde um olho gigante que nos remete quase de imediato para o ‘Big Brother is watching you' de George Orwell, a um mundo às avessas e até outro, mais maleável - “deixámos um globo que é uma bola insuflável, se ele quiser dar numa de Charlie Chaplin pode brincar com o balão”, brinca Sebastião.
Para o cenógrafo havia um objetivo: conjugar a pertinência dos temas de índole mais política e social ao lado fun, ou não estivéssemos prestes a assistir a um espetáculo de comédia. “Ele podia fazer só stand-up a abrir para a galhofa, mas escolheu fazê-lo sobre temas sociais e políticos e isso requer uma coisa divertida com elegância. E aqui com os globos procuramos um bocadinho acompanhar esse equilíbrio de ser uma coisa bonita e divertida, de ter um lado fun, mas com alguma elegância. Ficámos aqui no limite entre o que é fazer piadas e a piada é uma coisa séria, acompanhar com igual elegância, mas também de forma fun e viva”.
A cenografia funciona como uma espécie de subtítulo do nome do espetáculo. “O Lugar Estranho tem a ver com... Pode ser o mundo, daí tantas referências, tanto no cenário como no vídeo de entrada. Tem muito a ver com o mundo e a maneira como o vejo e as coisas que acho que estão ainda erradas e que afetam, de uma maneira geral, a humanidade. Mas ao mesmo tempo a minha perspetiva pode estar errada. Ou há muitas pessoas que vão achar a minha perspetiva errada e vão achar que a minha cabeça é que é um Lugar Estranho”.
De estranho há de facto os ensaios na rua, enquanto caminha entre o teatro e casa, como aconteceu em Lisboa, antes do espetáculo no Tivoli. “Pareço um maluco a andar pela rua, eu sei, mas começo a entusiasmar-me, nem sequer ligo às pessoas, e vou fazendo o texto”, confessa.
Mas os gestos mudos pela Avenida da Liberdade só aconteceram porque antes houve outra estranheza. “Estranho muito acima de tudo as pessoas que perdem tempo a impedir ou a lutar contra a felicidade dos outros. Como é que ainda há tantos homofóbicos como se a homossexualidade... a homossexualidade, por exemplo, é uma coisa que só diz respeito a cada pessoa. Por que é que alguém se há de ainda sentir afetado com a sexualidade dos outros? Como é que ainda há tantos homens que acham que realmente são superiores às mulheres em direitos e talentos e capacidades? E isso causa-me muita estranheza. Como é que as pessoas perdem o tempo nestas vidas — que realmente é curto, nós vamos todos morrer num instantinho — a impedir que as outras sejam felizes quando a felicidade delas não lhes afeta nada? Isso é que para mim é completamente inacreditável”.
É daqui que parte a inquietação que leva ao ‘foda-se’ que foi repetido duas vezes em palco em dois dias, em loop nos bastidores e à mesa de almoço e jantar antes de começar a debitar o texto, numa altura em que os diálogos do Diogo já se confundiam com o texto que ensaiava. Gonçalo Nunes, mais conhecido por Bolinha, o road manager, e Gonçalo Lopes, o assessor de comunicação, ambos também amigos, foram sempre os principais visados, erguendo a cabeça à procura de entender o que o Diogo lhes tentava dizer. O gesto acabava sempre com o segundo a rir-se.
O que acontece em palco em Lugar Estranho é uma sátira não diferente do que Diogo escreve semanalmente nas crónicas escritas pelo humorista para o SAPO24 ou numa base quase diária nas publicações nas redes sociais do próprio. Se quisermos, é um acumular de texto, devidamente encaixado e temporizado, mais nervoso em Palmela, mais limado no Tivoli, que grita uma inquietação, talvez a mesma que Diogo gritou quando um dia recebeu duas mensagens, de duas raparigas, em resposta a uma crónica que escreveu sobre assédio sexual. “Acabo por ver que pessoas que eu não estava à espera, amigas minhas, pessoas conhecidas, vieram-me falar e dizer 'Diogo ainda bem que falas disso e que usas a tua voz pública para falar sobre isto porque eu fui assediada no trabalho, já fui violada'. E pessoas que nunca contaram isto a ninguém, e são muito mais pessoas à nossa volta que nós não fazemos conta. É horrível. É muito mais gente do que nós achamos. Eu tenho visto isso, porque depois as pessoas respondem-me às crónicas ou aos vídeos, seja o que for, a contar 'também já fui assediada, também já fui perseguida na rua, também já me apalparam nos transportes públicos'... E é surreal como é que as mulheres não se podem sentir seguras em Portugal em 2019, surreal. Não é uma realidade distante. Não foi num bairro lixado, são pessoas normalíssimas com uma vida normalíssima. E é horrível”, conta.
É curioso como um espetáculo de comédia acaba por ganhar uma dimensão desconfortável, primeiro com o vídeo, depois com várias reflexões que vão sendo entregues tanto de forma comprimida na piada, como as mais longas, em discurso direto, depois dos risos. “Espero que seja um bocadinho desconfortável, o que é bom, quer dizer que mexeu com as pessoas, mas que as pessoas se riam muito. E depois se causar ali uma cena, 'epá, o Faro tem razão naquilo', se as pessoas forem assim até um bocadinho mais tensas a pensar nas coisas…”.
“Eu não odeio o mundo, nem sou misantropo, não odeio a humanidade, mas estou a tentar usar a comédia para focar o que está mal no mundo. Se eu fosse fazer um espetáculo de comédia a dizer 'já repararam como as plantas são tão bonitas e os animais fofinhos?' não tem graça. Há muito bom stand-up, até de coisas banais. Há gente em Portugal que é muito engraçada e que consegue fazer stand-up sobre duas cadeiras estarem aqui. Mas eu não consigo, não tenho esse talento. Então acabo por falar destas coisas que mexem mais comigo, destes assuntos mais fraturantes. Tive muito tempo sem conseguir fazer um espetáculo porque não me revia, não queria falar mais do mesmo, falar dos mesmos assuntos que a maior parte dos comediantes falam e falam com graça, mas eu não sei ou não queria falar mais desses assuntos. Tive muito tempo para pesquisar, para ler, para pensar, para falar destes assuntos que são um bocadinho mais complexos e que para fazer humor tens de saber bem do que estás a falar. Não é 'ah vi uma pedra da calçada e coiso'. Tens que estar bem informado porque tem muita opinião e se tem muita opinião tem de estar sustentada”, explica.
Antes de entrar para palco os rituais cumprem-se, o shot de uísque e o soco no braço do Bolinha. Há adrenalina e cartazes espalhados pelo chão do camarim com os tópicos e seguimento das piadas. A música ‘Need Your Love’, de Curtis Harding, ecoa em todo o lado. Os nervos impedem-no de comer muito, segue um prego para a viagem, em Palmela ‘jogou em casa’, em Lisboa tem uma sala icónica praticamente cheia à sua espera. E de repente tudo explode no momento em que entra em palco, com um Gonçalo de lado, entre as cortinas, a medir o tempo entre as piadas, os risos e os aplausos e a mandar indicações mudas para dentro de campo como se fosse um treinador de futebol e o outro, mais contido nas reações, de braços cruzados e cabeça para baixo a ouvir cada piada atentamente e a não esconder o riso em cada uma delas. E é quando vem a maré de palmas que a música de Curtis Harding explode dos corredores dos bastidores para a sala para o momento de ovação. E a letra embala as palavras do Diogo que nem acredita no que acabou de acontecer e que se desfaz em agradecimentos para depois se desfazer em abraços. No fim, durante toda a música, naquela comunhão, parece que o Lugar Estranho só existiu na cabeça dele. Já na memória do público fica mais uma perspectiva, a de Diogo, sobre coisas que podem mudar, cabendo a cada um de nós “fazer deste mundo um lugar menos estranho”.
Comentários