Para o lisboeta típico, a música das marchas serve para acompanhar um copo de vinho e uma sardinha num pão, sempre que o Santo António bate à porta. Para Pedro Mafama, alfacinha de gema, criado numa Graça hoje mais gentrificada, foram o estímulo para aquele que é o seu segundo álbum de estúdio, “Estava No Abismo Mas Dei Um Passo Em Frente”. Marchas, rumbas portuguesas e música de baile: se é popular e faz dançar, encontrou o seu lugar neste disco.
O título, esse, é uma referência tanto ao estado melancólico que foi o seu cartão de visita pelo menos desde 'Jazigo', canção editada em 2018 que percorreu inúmeros palcos e playlists, como ao facto de já não ser dessa água que Mafama bebe. Hoje, o músico é uma pessoa mais alegre – e a isso não é alheio o facto de ter iniciado uma relação com a fadista Ana Moura, com quem tem uma filha, Emília.
Encontrámo-nos com Pedro Mafama não na sua Graça, mas em Santos, para uma conversa onde se abordaram abismos, passados artísticos, questões de classe, TVDEs, o “Preço Certo”, Lisboa e, claro, a música, a força motriz do universo. A poucos dias de se iniciarem as festividades de Santos Populares, aqui está a sua banda-sonora. Agarrem nos phones e no manjerico, escrevam as quadras que quiserem, comam e bebam em fartura: está na hora de bailar.
Já mostraste este disco ao VULTO. e ao GP?
Ainda não! [risos]
Ainda vais a tempo...
Exato... E lembras-me de uma coisa que eu quero muito fazer: eu tenho esta tradição de lhes mostrar qualquer coisa antes de lançar. O VULTO. foi muito importante no início, fez assim um bocadinho de mentor, como acho que faz com muita gente. E gosto muito de ir lá a casa dele, mostrar-lhe a música, e vê-lo assim a remexer as barbas enquanto ouve, apontar e dizer que está bom. Às vezes diz que está bom!...
Por acaso é curioso: o que é que eles achariam deste disco? Vamos ver.
"eu estava no abismo, estava a afundar-me pelo rio abaixo, mas agora dei um passo em frente"
Falemos do título. Que abismo era este?
Era o abismo que me levou a escrever o "Por Este Rio Abaixo". As tempestades, a melancolia, a solidão, a má sorte no amor, que estavam a descrever a minha música desde o início, desde o EP "Má Fama" até ao "Tanto Sal". O "Por Este Rio Abaixo" é um bocadinho o culminar disso tudo.
Então: eu estava no abismo, estava a afundar-me pelo rio abaixo, mas agora dei um passo em frente. E, claro, também há nesta frase alguma coisa trágica. Aliás, não diria trágica, diria irónica e existencial. É precisamente isso que eu gosto nesta frase, porque acho que ninguém acorda feliz e se esquece de tudo o que é a vida e a realidade de viver, a maldição de saber que estamos todos a caminhar para um abismo. Mas o que eu queria fazer, e o que tenho feito, é sorrir em frente, bailar em frente, não esquecendo que ele está ali.
Na press release, dizes que estás a fazer a melhor música que já fizeste na vida. Sentes que conseguiste concretizar tudo aquilo que imaginaste para este álbum? Estão aqui presentes todas as ideias que tiveste?
Não, não.
O que é que faltou?
Acho que falta sempre alguma coisa, é essa a questão. Muitas das rumbas portuguesas que eu tinha feito acabaram por não entrar; tecnicamente, só há uma rumba portuguesa neste álbum. Há é uma influência da rumba portuguesa em muitas músicas. Por exemplo, a 'Vida Airada' tem os teclados da rumba portuguesa, as quebras da rumba portuguesa, aquele impasse antes de partir para um refrão. Há uma parte instrumental presente no 'Vais A Ver'... Ou seja, a rumba portuguesa acabou por ser uma influência forte em todo o álbum, mas canções que sejam mesmo rumbas portuguesas ficou só a 'Estrada'. Tenho muitas rumbas que provavelmente vão ser lançadas depois.
Em formato álbum, ou single?
Pois, ainda não sei muito bem e, principalmente, ainda não posso revelar [risos].
Há sempre alguma coisa por completar. Há sempre alguma coisa que fica de fora. É isso que é bom, porque sei que agora tenho um álbum e que já me apetece fazer outras coisas, a seguir.
Para além das rumbas mencionas, também, os bailes e as marchas. Porquê estes géneros musicais em particular?
Cada um deles tem o seu motivo. As marchas são um bocadinho uma memória de infância, de crescer na Graça. Lá, as melodias das marchas são omnipresentes. Quando chega a altura da primavera, ali por volta de abril, os ensaios das marchas ecoam por todo o lado. Então, aquelas melodias estão muito presentes em mim. Os bailes também, mas esse é um género musical que me apeteceu muito explorar, por ser muito completo.
"As marchas desbloquearam-me um lado criativo: foi o primeiro género em que eu peguei quando estava a fazer este disco que me permitiu ser um Mafama feliz, mas ainda assim interessante"
Completo em que sentido?
É um universo grande. Ou seja, as marchas, se calhar, são um universo musical mais pequeno, com um propósito mais específico. Os bailes são um universo com muitas décadas, com muitos artistas diferentes, com muitas sonoridades diferentes dentro da música de baile. As rumbas, porque é a música que me faz celebrar quando estou com amigos, com família, seja o que for: é a música que eu ponho quando chega aquela hora.
As marchas desbloquearam-me um lado criativo: foi o primeiro género em que eu peguei quando estava a fazer este disco que me permitiu ser um Mafama feliz, mas ainda assim interessante. Ou seja, foi a minha saída da melancolia. As marchas são feitas para alegrar, para celebrar, para te sentires o melhor da cidade. Ao mesmo tempo, têm uma coisa que me desbloqueou um espaço de escrita muito importante: são muito descritivas da cidade, daquilo que se passa à nossa volta. São muito "o candeeiro", "a pessoa que atravessou a estrada", "a cidade que é bonita mas que é triste"... É um espaço de escrita que eu queria muito desbloquear.
Era a minha próxima pergunta: notei, e comparando com o "Por Este Rio Abaixo", que recorres a um palavreado mais direto, a letras mais simples. Sendo música de dança, é algo que faz todo o sentido. Tiveste a preocupação de dizer mais com menos?
Acho que sim. Não no sentido de... Ao mesmo tempo que simplifiquei, também sinto que fui mais a fundo em certas coisas, como por exemplo estas descrições, observações daquilo que se passa à minha volta. Há muitas descrições da cidade nas marchas. A 'Marcha Para A Alegria' começa quase como se eu falasse para Lisboa: Se tu pudesses, escondias todos os defeitos que te fazem bela... A 'Marcha Bonita' também começa com uma descrição da cidade: Nesta cidade esquecida, sempre em festa e sempre em crise... A 'Estranha Magia', também: Em cada noite do luar, sentem-se as árvores a dançar, o carro passa a dar kizomba, o barco serpenteia o mar... Sinto que tentei simplificar, mas também tentei ir mais a fundo em assuntos que não são só a minha melancolia.
Mas esse "ir a fundo" não significa necessariamente usar palavras muito caras, figuras de estilo... É uma forma de falar mais de bairro, mais de povo.
Pois. Mas não sei se não fazia isso no "Por Este Rio Abaixo", também. Acho que sempre foi um bocadinho o meu truque.
Diria que o “Por Este Rio Abaixo” é um pouco mais alegórico.
Sim... Eu aqui quis ser mais apurado, e contar a realidade de uma forma poética, mas simples.
O facto de o disco ser lançado pouco antes da época de Santos Populares foi propositado?
Não foi o conceito do disco, inicialmente, mas rapidamente se tornou nisso. Foi uma decisão difícil, porque saindo de um álbum tão melancólico e profundo, e sendo conhecido como um artista melancólico, trágico, noturno, fadista, passar para uma coisa assumidamente alegre do início ao fim... Quando tomei essa decisão, rapidamente percebemos que o disco tinha que sair antes dos Santos Populares.
Tu não anunciaste a data de lançamento até há bem pouco tempo.
Pois. Quando se percebeu que o disco ia ter este assunto, que ia ser um disco de celebração, de música de baile, tivemos que pôr a primeira e acelerar, mesmo.
Qual foi o melhor baile em que já estiveste?
Os bailes da Vila Berta, de há dez anos. Ainda não era tão difícil andar por lá e ainda não estavam tão limpos... É de lá que tenho as melhores memórias. E de um pouco por todo o lado, porque, como toda a gente, andar pelos bailes é ir um bocadinho às Escadinhas de Santo Estêvão, ao Largo de São Miguel, andar por aí a girar.
Falando especificamente da 'Estrada', como é que chegaste aos Mineiros de Aljustrel e ao Chico Montoya?
Os Mineiros de Aljustrel, era uma música que eu já conhecia. Quando estava a trabalhar no 'Estrada', senti aquela coisa incrível e quase pseudo-espiritual, de estares a trabalhar numa música e o teu cérebro manda-te assim: "olha, o 'Hino dos Mineiros' também cabe aqui"... É para esses momentos de estúdio que eu vivo. Quando juntas 2+2 e funciona, esses momentos de eureka!. Esse foi um deles, até por toda a carga simbólica destes dois géneros musicais.
O Chico Montoya foi-me apresentado pelo Jorge Fernando, que fez os arranjos de uma das músicas do álbum, a 'Golo'. É uma pessoa da qual eu gosto muito, muito, muito, e que me dá alguma ajuda e orientação. E é um grande amigo.
Como foi a experiência de conduzir um TVDE?
Foi incrível.
És daqueles que mete conversa com os passageiros?
Sou! Foi esse o conceito. Aliás, eu quis conduzir um TVDE para ter uma desculpa para saber um bocadinho sobre as pessoas que responderam à mensagem. Este vídeo é, justamente, uma forma performativa de saber como é que estava a correr o dia das pessoas, de onde é que elas eram, o que é que elas fazem. Se eu mandasse mensagem direta no Instagram a perguntar isso, seria um bocadinho estranho...
"eu quis conduzir um TVDE para ter uma desculpa para saber um bocadinho sobre as pessoas que responderam à mensagem."
Foi uma desculpa para me conectar com as pessoas que acompanham o meu trabalho. E uma coisa que me tem interessado muito: explorar formas além do videoclip. Ou seja, já estou desde o 'Jazigo' a fazer videoclips perfeitinhos, pensados ao detalhe, a mostrar a minha visão sobre a cultura portuguesa e a forma como ela se relaciona com o mundo. Sinto que já provei, a mim mesmo e aos outros, que consigo fazer bons vídeos. Agora estou a querer explorar outras formas. Não sei, honestamente, se vai dar certo.
"A capa do disco foi feita por um pasteleiro a quem eu disse, apenas, "olá, boa tarde, queria um bolo de aniversário com esta foto, com esta frase, faça-o bonito e bem decorado"
Que tipo de formas?
Formas como o 'Preço Certo', chegar a um programa de televisão e dar-lhes a realização do videoclip para as mãos, e não saber bem o que é que vai sair dali. Se calhar, há dois anos, é uma coisa que [diria que] nunca faria, porque perdes o controlo total. Conduzir um TVDE durante doze horas sem escolher muito as pessoas, ou seja, não houve ali um casting muito planeado, foi pela logística, só. A capa do disco foi feita por um pasteleiro a quem eu disse, apenas, "olá, boa tarde, queria um bolo de aniversário com esta foto, com esta frase, faça-o bonito e bem decorado"... Depois, é claro que fotografámos o bolo, com o Pedro da Silva.
Mas é isto que me está a interessar, agora. É deixar o acaso funcionar. O imprevisível funcionar. Sinto que fui buscar isto às artes plásticas; por exemplo, o bolo de pasteleiro é quase um ready-made do [Marcel] Duchamp.
Porque é que conduziste um BMW e não um Citroën Saxo?
Queria uma desculpa para conduzir um granda carrão. O Citroën Saxo está bastante aproximado daquilo que eu conduzo no dia-a-dia.
Essa ideia levou algumas pessoas, nas redes sociais, a acusarem-te de andares a "brincar aos pobrezinhos"...
Ouviste isso? Por acaso estava à espera dessa, mas não cheguei a ler.
Até posso contrapor com a pergunta a seguir: é para responder a essas alegações de falta de consciência de classe que escreves um verso como 'tou a subir salários, nem me juntei ao Partido?
Eu não sinto que tenha de provar que tenho consciência... [pausa] Eu sei o que é a consciência de classe. Já me senti explorado pelo patrão. Sei o que é - com todos os limites dentro do meu privilégio, obviamente. Venho de uma família que esteve ligada à Revolução do 25 de Abril, por isso, quando sinto esta tensão, de usar um hino operário e frases como estas, sinto que as pessoas pensam que têm uma pessoa que as abandonou. Uma pessoa que, há três anos, também estava a lutar pela renda de casa, mas que agora veste polos e conduz BMWs pela cidade, e que já não vive dentro da cidade.
Eu não as abandonei, mas também não as vou servir a vida toda. Estou suficientemente seguro em relação às minhas intenções para não ter de estar a provar e adaptar a minha revolução aos padrões de uma pessoa no Twitter. Vou sempre lutar, e vou sempre ter consciência de classe e de justiça. Pessoas que criticaram o uso do 'Hino dos Mineiros' não perceberam a verdadeira subversão dessa música, que eu sinto que contém uma mensagem muito importante, no país que temos. Que diz respeito a toda uma comunidade, que faz parte da nossa cultura e do nosso país, que não está a ser ouvida e respeitada. E eu quis usar o recurso artístico de justapor dois universos diferentes para nos fazer a todos pensar um bocadinho sobre esse assunto.
"A minha intenção, aqui, não era brincar ao proletariado; era arranjar uma desculpa para representar a cidade de uma forma não artificial"
A minha intenção, aqui, não era brincar ao proletariado; era arranjar uma desculpa para representar a cidade de uma forma não artificial, porque quis pôr uma câmara no carro que capta a cidade pelos caminhos onde me levaram, e não onde eu os levei. Quis ter uma desculpa para perguntar a dezenas de pessoas como é que estava a correr o dia delas, o que é que faziam, em que é que estavam a pensar, aquilo que lhes preocupa, o que lhes dá alegrias. Foi uma forma de me conectar com a cidade, de uma forma real.
Acho que o mundo está cheio de imagens bonitas e artificiais, e eu quis criar o meu próprio vício, de estar sempre a selecionar que realidade é que eu quero representar. Se eu vou à Graça, e represento uma parede de azulejo em vez de uma parede caiada, carcomida - que é a tendência, sempre que apontamos uma câmara; uma câmara aponta para um sítio, não aponta para o outro -... Então, eu quis andar com câmaras GoPro, 360º, pela cidade, para justamente fugir aos nossos vícios de representar sempre a cidade e os bairros típicos de uma forma viciada. Sinto que há uma intenção de contar as histórias das pessoas. O vídeo não era sobre mim. Não era sobre o condutor do TVDE. Era sobre as pessoas que estavam no banco de trás. Sinto que isso é uma tentativa minha de saber mais sobre as pessoas que me acompanham, de representar esta cidade de uma perspetiva nova e diferente, e de não estar sempre a apontar a câmara para mim, a ser fixe, a fumar um cigarro com um olhar sério. Acho que é mais subversivo apontar a câmara para as pessoas.
Em 2017, a Punch Mag descreveu-te como um "cozido à lisboeta", que é uma expressão que ainda utilizas no teu perfil no Facebook. Como é que um alfacinha de gema olha para a gentrificação da cidade?
É um problema que já me tocou bastante, e é uma das coisas que, nos meus últimos tempos no hostel onde estava a trabalhar, me fez muita confusão eterna. Houve ali uma altura em que eu senti, claramente - e conheço pessoas que têm uma grande consciência de classe, que estavam também no hostel, e que provavelmente sentiram a mesma coisa, a certa altura - que estávamos, um bocadinho, a servir o nosso próprio veneno. Durante essa altura, fiz uma música chamada 'Não Saio', que era a minha própria forma, mais ou menos abstrata, e sem querer colar-me a movimentos e rótulos, sem me querer aproveitar de chavões, a minha homenagem a esse sentimento e ao sentimento de crescer na Graça e ver os meus amigos todos a ir embora. Chegar ao bairro onde cresceste e já não veres as pessoas com quem cresceste...
À luz dessa ideia, este disco pode ser uma celebração de uma Lisboa que ou já não existe ou está prestes a deixar de existir?
Não sei, porque não vejo este disco tanto como uma representação de memórias do passado, como uma coisa que é feita para estar viva e que é para ser vivida agora. Os géneros musicais que eu escolhi abordar neste disco são muito diferentes dos do "Por Este Rio Abaixo", no sentido em que esse disco era muito baseado no nosso passado, em música de recolha, em coisas que já não estão cá; em reimaginar o nosso passado. Este disco é baseado em géneros musicais que estão cá e estão vivos. As marchas são vividas e são praticadas.
Mas, lá está: com a gentrificação da cidade parece que essas marchas, hoje em dia, são praticadas para turista ver.
As marchas não são praticadas para turista ver; são praticadas por pessoas que já não se podem dar ao luxo de viver em Alfama e na Graça, pessoas que, por exemplo, têm de voltar de Cacilhas todos os dias para ir a Alfama, a um ensaio das marchas.
Achas que se sente mais a cidade não morando nela? Já tendo morado e não morando agora?
Sem dúvida. Eu estou a trabalhar com as Marchas de Alfama, este ano...
É para ganhar?
É para ganhar [risos]. Contra mim falo, sendo da Graça. Estou a ajudar a Marcha de Alfama, escrevi a música. E a própria música que eu escrevi, uma de quatro marchas que apresentam, pisca o olho à gentrificação. O mote da música, que é cantado com muita intensidade por pessoas que vivem isto todos os dias, é "daqui não saio, daqui ninguém me tira". E a Marcha de Alfama tem tido um papel de comentário e intervenção, porque os lemas deles andam sempre à volta disso, nos últimos tempos. Acho que isso é uma prova de que a marcha não é um folclore para turistas, é uma coisa que está viva e que tem uma intervenção sobre a cidade, e que é vivida pelas pessoas da cidade, mesmo. Acho que se formos à Avenida ou ao Pavilhão, não vamos ver um espetáculo para turistas: vamos ver um espetáculo para o povo de Lisboa e para o povo de Portugal.
Voltando atrás na cassete: explica-me lá o papel da tua família na Revolução.
O meu avô esteve preso muitos meses, pela PIDE. Foi sujeito a torturas que nem consigo imaginar - e era muito mais novo do que eu. Ele fala pouco sobre isso, a minha família também sabe pouco sobre isso. Tudo porque ajudou uma pessoa a fugir do país. A minha família, por isso, viveu muito a Revolução, porque sofreu isso na pele.
Tu estiveste no desfile do 25 de abril.
Estive este ano, como tento estar sempre. No ano passado não pude estar porque tinha tido uma filha há muito pouco tempo. É um momento, por isto que te contei agora, que me toca mesmo, mesmo muito; acho que é o dia que mais me toca. No sentido emocional, mesmo. Pensares numa pessoa, num jovem, como o meu avô era, como tantos avôs, bisavôs, pais, eram... A sofrer de uma violência extrema, às mãos da ditadura... É uma coisa que só nos faz valorizar aquilo que temos.
Passando para coisas mais alegres, como o disco o pede: que é que ofereceste ao Fernando Mendes?
Ofereci-lhe uma canção [risos].
E ele gostou?
Gostou muito.
Não a guardou no armazém dele?
Não, mas acho que a guardou no coração.
"acho que os locutores da rádio deviam passar todos para a televisão. Nós precisamos daquela intensidade de relato com imagem, também"
Na 'Golo', tu usas um sample daquele som que a TSF transmite, nos relatos, sempre que alguém marca. Também és #TeamJoãoRicardoPateiro ou tens outra preferência?
...Quem é o João Ricardo Pateiro? [risos]
...Como assim? O homem que canta os golos!
Ah, claro! Adoro. E que fique aqui escrito que acho que os locutores da rádio deviam passar todos para a televisão. Nós precisamos daquela intensidade de relato com imagem, também.
Como estão os teus skills de futebolista?
Nunca foram grande coisa. Era o meu sonho durante muito tempo, mas...
Eras o que ia à baliza?
Não! [risos] As minhas pernas nunca acompanharam. Sou alto e desengonçado... Joguei foi basquetebol, no Maria Pia. E não presto tanta atenção aos clubes como à seleção porque não sei se aguento com mais uma preocupação na minha vida.
Na 'Tudo O Que Foi', tu cantas agora do meu lado tenho dois anjinhos que me motivam a continuar. Esta é uma pergunta provocatória: como é que alguém que em 2012 lançava uma malha chamada 'Poligamia' encontra alegria na monogamia?
Acho que é alguém que está sempre aberto a mudar, a partir para uma próxima fase da vida. Se perguntasses à mesma pessoa...
O que dirias a essa pessoa, que já nem é o nome com que assinas?
Mesmo à pessoa que escreveu o "Por Este Rio Abaixo", e que dizia que queria esticar os limites do corpo, e que não há futuro no estaleiro, que para mim nunca amanhece... Se lhe dissesses que, daí a três anos, essa pessoa iria estar feliz, contente, a querer viver, a querer um futuro bonito, a querer estar bem na vida... Eu não sei se essa pessoa acreditava, também.
Terminares o disco com a tua filha em auto-tune era algo que já estava decidido, ou surgiu espontaneamente?
Não me lembro do momento exato em que tive essa ideia, mas foi daquelas ideias para as quais eu vivo.
Estou, claramente, a partir do princípio que foi esta a última música que gravaste...
Não, não. Por acaso não foi. Eu compus o disco todo, depois tive uma fase de gravação dos instrumentos, e uma fase de mixagem e gravação de voz. Então, a ordem está meio trocada. Aliás, esta música foi escrita antes de a Emília nascer. Mas é daqueles momentos para os quais eu vivo, aquelas ideias...
..."o que ficava aqui mesmo bem era isso!"
Exato. A Emília em auto-tune fala só por si. Esse elemento. Tem sentido de humor. É disso que gosto neste álbum, também: tem sentido de humor, mas não é para rir, é para sorrir. É música alegre, mas inteligente - espero. Não é música para esquecer os problemas, é música para olhar em frente e viver com os problemas, encontrar beleza no mundo tal como ele é. Esse despedir do álbum, com a Emília em auto-tune, para mim é isso. Tem sentido de humor, tem emoção, tem sentimento, é sério e é leve ao mesmo tempo.
"Às vezes é preciso fechar os olhos e avançar em frente, não estar a pensar demasiado em coisas que ainda não estão aqui"
Se esta é a melhor música que já fizeste na vida, como é que será o espetáculo visual quando apresentares estas canções ao vivo? Algo grandioso à la C Tangana, ou algo mais comedido? Ainda barras o pão com compota de ambição?
Ainda barro o pão com compota de ambição... A minha ambição nunca irá passar por fazer um concerto a pensar no nome de outra pessoa, vai ser a pensar no meu próprio caminho. Vou sempre tentar fazer o máximo que posso com as possibilidades que tenho.
Dito isto, estou muito entusiasmado com o concerto que estou a preparar. Ainda não está montado, mas estou a prepará-lo. Estou a fazer uma versão futurista do concerto de baile. É um passo em frente em relação aos meus concertos passados, porque as minhas possibilidades estão um bocadinho maiores. Não me permitem fazer tudo aquilo com que eu sonho, e toda essa compota de ambição com que eu barro o meu pão desde há alguns anos. Mas acho, também, que é isso que é dar um passo em frente: perceber o que é que temos aqui ao nosso lado, com o que é que podemos jogar, quais são as possibilidades. Às vezes é preciso fechar os olhos e avançar em frente, não estar a pensar demasiado em coisas que ainda não estão aqui.
Disseste à Comunidade Cultura e Arte que a 'Andorinhas', da Ana Moura, foi para ti algo de "libertador", porque estavas a escrever para ela e não para ti próprio. Pergunto-te se foi mais libertador que este disco, em que te soltas das amarras de um passado menos bom.
Foi libertador noutro sentido. Desde que escrevi o 'Andorinhas'... Ou seja, este disco é bastante recente. Começou a ser escrito há um ano e meio. Foi numa fase posterior ao 'Andorinhas', em que eu estava, também, com novos desafios na cabeça, e num espaço de escrita, se calhar, diferente. Escrever o 'Andorinhas' satisfez um lado meu que era, quase, conseguir fazer uma música que descrevesse a situação do país, as longas filas que se viam durante a pandemia... Uma canção quase interventiva, de certa forma, apesar de popular, a jogar com esses dois conceitos. Não é interventiva: é neo-realista. As imagens que me estavam a inspirar e a alimentar no "Por Este Rio Abaixo", o nosso passado, de avós vestidas de negro... Esse neo-realismo do 'Andorinhas' acho que ainda vinha do "Por Este Rio Abaixo".
O que me alegrou muito neste disco, que me deu um gozo gigante descobrir, é fazer aquelas coisas que tu não te propões a fazer, e que não sabias que querias fazer. E, de repente, um disco que estava a fazer transforma-se num disco só alegre. Então, percebi que havia alguma coisa de estimulante e de revolucionário em relação ao meu próprio trabalho, de fazer um disco que é só música tendencialmente alegre. Por isso, foi muito surpreendente e bonito chegar a um sítio onde eu não achava que ia chegar.
Fruto do acaso, como dizias há pouco?
Sim, porque eu não me propus a fazer um disco alegre. Não foi o conceito inicial. Foi o começar a olhar para as músicas que estava a fazer, e perceber que... Uma coisa que eu nunca quero fazer na vida é repetir fórmulas. Acho que nós artistas temos de estar muito atentos, e temos que nos censurar a nós mesmos quando estamos a repetir só uma fórmula.
Portanto, o próximo disco será de heavy metal.
[risos] Eu não sei o que vai ser o próximo disco. E é isso que eu quero que as pessoas também percebam. Que eu não sei como é que vai ser o meu próximo trabalho, e é disso que eu gosto. Acho que um artista deve funcionar assim. A única coisa que devemos censurar é o repetir de fórmulas nossas por preguiça. E que, ainda por cima, não nos representam. Foi isso que comecei rapidamente a descobrir quando comecei a compor este disco: estava a repetir fórmulas, a escrever de um espaço de melancolia, de saudade, etc. Estava a repetir uma fórmula que não estava a viver no meu dia-a-dia. E isso não me ia trazer nenhuma novidade.
Vês-te a escrever para outras pessoas, no futuro? Um Festival da Canção, por exemplo?
Especificamente não sei. Mas vejo-me a escrever para outras pessoas, a desenhar roupas, a realizar filmes, a ter telenovelas...
A ter uma frota de TVDEs...
...Sim, apesar de me querer focar mais no lado artístico, que é o que eu tenho para oferecer. Foi como eu disse ao Fernando Mendes no "Preço Certo": "Eu sou um artista". E o Fernando Mendes pergunta, "um artista de quê?". "Um artista de música". Acho que isso define muito bem a forma como eu me vejo: como um artista que faz música, e que tem coisas para oferecer em vários formatos, com várias ferramentas.
Em duas entrevistas distintas ao Rimas e Batidas, tu abordaste um conceito que tinhas, o de "novos fados", que entretanto abandonaste. Hoje temos Pedro Mafama, David Bruno, Chico da Tina, Conan Osiris, mais recentemente a Ana Lua Caiano, o revival do José Pinhal, coisas que bebem de fontes e de experiências portuguesas. Achas que esta geração deixou de ter vergonha deste tipo de músicas?
Acho que deixou de ter um tipo de vergonha que era muito evidente.
"Acho que nós todos percebemos que fomos um bocado colonizados culturalmente, pela cultura anglo-saxónica. E não foi só em Portugal que se percebeu isso"
O de achar que as músicas dos pais são parolas.
Exato. E de assumir o local. De pensar que o que vem de fora é melhor que o que vem de dentro só porque vem de fora. Acho que nós todos percebemos que fomos um bocado colonizados culturalmente, pela cultura anglo-saxónica. E não foi só em Portugal que se percebeu isso, há todo um conjunto de países, normalmente até do sul - ou seja, os países que têm artistas que estão a revisitar o local e o tradicional e a trazê-lo para o futuro são da Europa do sul. À volta do Mediterrâneo, da América Latina. Não vejo isto a acontecer muito na Europa do norte. Acho que é uma reação, justamente, a uma lavagem musical anglo-saxónica.
Acabou por ser também influência do hip-hop, ou não? Porque o hip-hop, via sampling, pode funcionar como base para qualquer coisa que queiras. E a geração atual ouviu, obviamente, bastante hip-hop - e estão a ir buscar as músicas tradicionais portuguesas.
Sim, mas acho que a nossa geração também percebeu que o hip-hop também é um género musical que não foi feito segundo as nossas regras. Sem querer falar por outras pessoas. Como sabes, comecei por fazer música hip-hop...
O que eu quero dizer é que estão a usar o hip-hop como um template, ou seja: não o género, especificamente, mas a forma como o género funciona.
Ah, sim. E eu sinto que a forma como eu faço a minha música também é segundo o template do hip-hop, e da música urbana no geral. Acho que a música urbana mundial tem toda esse formato em comum. Eu faço-o de uma perspetiva local, mas com os cânones quase americanizados, tentando ir para o mesmo lugar de pop, de brilho, de belo, que a música pop exige. Eu sinto que a minha música precisa de ter sempre beleza. Pode estar a comentar alguma coisa triste e feia da realidade, mas eu preciso sempre de beleza. E sinto que isso vem do mundo do hip-hop e da pop global. Sinto que faço música popular num formato pop.
À publicação brasileira Scream & Yell disseste, "passo a minha vida a pensar na forma como Portugal vai tocar o mundo, e acredito que podemos figurar no panorama pop mundial". O que falta para que isso aconteça?
Falta Portugal e o Brasil aproximarem-se, por exemplo. Falta Portugal resolver melhor a forma como se relaciona com os países de língua portuguesa. Falta Portugal resolver-se melhor internamente, também, porque o género musical que influenciou este álbum - as rumbas portuguesas - é desconhecido para a maior parte dos portugueses; e no entanto é música portuguesa, que é feita cá, por uma comunidade importantíssima da nossa população e que é ignorada e discriminada. E falta continuar a trabalhar, e a tentar, e a aperfeiçoar as nossas fórmulas. Neste álbum, por exemplo, percebi coisas que tinha que resolver em relação à minha música, que não estavam no padrão de qualidade que eu agora tenho para mim. Por exemplo, fizemos um grande esforço em procurar os microfones certos, em gastar dinheiro no equipamento certo para gravar estas músicas. Há que continuar a trabalhar, para pôr o nosso trabalho num padrão de qualidade mundial. E continuarmos a criar relações com artistas de fora.
Tens planos para apresentar este disco além-fronteiras?
Com o "Por Este Rio Abaixo" fui a Paris, a Barcelona, a Madrid duas vezes, a Santiago de Compostela... Estive bastante em Espanha. Estamos a trabalhar com uma agência espanhola, por isso vou sempre continuar a tentar que isso aconteça cada vez mais.
Antes da minha última pergunta, o que me podes explicar sobre o teu fascínio com o rei-poeta Almutâmide?
Foi o último rei da Península Ibérica árabe. É uma figura importantíssima na história do Al-Andaluz. Foi o último rei da Taifa de Sevilha, e as pessoas não sabem que nasceu em Beja. Era um rei-poeta, do qual até há rumores acerca da sua sexualidade - acerca da sua homossexualidade e, até, bissexualidade, o que acho que nos faz ver que essa civilização muçulmana que viveu aqui, na Península Ibérica, não era tão conservadora como os livros de história a pintam. Temos aqui uma civilização que até foi um berço de tolerância e de liberdade. E tem uma história de vida incrível, que me inspira muito.
"A partir do momento em que as pessoas perceberem que este sítio foi árabe durante 500 anos, e que os cristãos que vieram a seguir eram mais intransigentes, extremistas e conservadores do que os árabes que cá estiveram, então aí a história começa a virar-se do avesso"
Acho que é uma pessoa que todos devíamos estudar, nos livros da escola. E que não estudamos, porque temos sempre a tendência de censurar a história e de a vermos de uma forma fabricada, para que as estacas da nossa ilusão se mantenham no sítio. A partir do momento em que as pessoas perceberem que este sítio foi árabe durante 500 anos, e que os cristãos que vieram a seguir eram mais intransigentes, extremistas e conservadores do que os árabes que cá estiveram, então aí a história começa a virar-se do avesso. O conceito de invasor e invadido começa-se a desmoronar. E, aí, a nossa identidade vai-se. É uma coisa que eu gostava muito que acontecesse: que a nossa identidade se fosse. Acho que estas identidades fechadas não fazem sentido nenhum nos nossos dias.
Para terminar, a pergunta óbvia: qual será o teu próximo passo em frente?
Não sei, porque estar no abismo e dar um passo em frente é, justamente, não saber o caminho que tens a percorrer e o que nos espera lá à frente.
Vais ao acaso.
Exatamente. E esta frase tem-me dado muita força em muitas situações do dia-a-dia, situações criativas. Desligo a minha obsessão por controlo e o meu perfeccionismo e digo, para mim mesmo, "fecha os olhos e dá um passo em frente". Acho que isso faz parte do conceito deste álbum, deixar algumas coisas ao acaso na vida. Se estivermos sempre a lutar contra a corrente, estamos sempre em esforço. Acho que é mais bonito, às vezes, saborearmos a corrente e deixarmo-nos levar.
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