Fechadas nos últimos três anos, devido às medidas de combate à pandemia causada pelo novo coronavírus, nos próximos dias - 23, 24 e 25 de setembro - volta a ser possível 'mergulhar' na camada subterrânea da capital portuguesa, na interceção da Rua da Conceição com a Rua da Prata, entre as linhas de elétrico, para conhecer as Galerias Romanas de Lisboa.
Infelizmente, já não há bilhetes disponíveis para visitar o monumento. Esgotaram, como é habitual, em menos de 24 horas, um rito que, aliás, é responsável pelos sentimentos de "mística" e "fascínio" que envolvem estas galerias.
"Sabemos que, do ponto de vista do público, existe uma certa mística, um certo fascínio de poder visitar o monumento. Não só porque é um espaço romano datado do século I d.C., do tempo do imperador Augusto, mas também por ser um espaço inacessível", explica Joana Sousa Monteiro, diretora do Museu de Lisboa, instituição que tem as galerias sob a sua alçada, na visita de imprensa aao espaço.
No entanto, há muito mais neste monumento para além do misticismo e da forma pouco convencional com que se faz o acesso ao mesmo, numas Galerias Romanas que, não sendo únicas no país, nem o melhor exemplar do mesmo - atenção, este link dá um salto até Coimbra -, têm uma narrativa com dois mil anos de história.
As Galerias Romanas de Lisboa são, no fundo, uma estrutura romana denominada de criptopórtico, que consiste numa solução arquitetónica que criava, em terrenos irregulares e de pouca estabilidade geológica, uma plataforma horizontal de suporte à construção de edifícios de grande dimensão, normalmente públicos. Ao vivo, e debaixo de terra, traduzem-se numa sucessão de arcos assentes em pilares de diferentes tamanhos, o que faz com que, lá em baixo, os visitantes tenham de dar uso a alguma ginástica.
A presença de uma inscrição dedicada a Esculápio, deus da Medicina (atualmente no Museu Nacional de Arqueologia), confirma o caráter público do edifício. Gravada numa das faces de um bloco de calcário e datada do século I a. C., a inscrição romana é feita em nome de dois sacerdotes do culto imperial e do Município de Felicitas Iulia Olisipo, o nome então dado a Lisboa.
"Não sabemos, ainda, quais eram as suas dimensões. Sabemos alguns dos seus limites, mas não todos. Por cima haveria a construção de importantes edifícios romanos da cidade de Olisipo, mas não sabemos exatamente quais. Poderia ter sido uma estrutura portuária, de apoio ao funcionamento dos portos, um edifício com termas, um fórum... não há certezas. Só há certezas de que foi um edifício público, importante, relevante e de grande investimento. O que é absolutamente extraordinário é que a qualidade da construção aguentou o terramoto e está a ter hoje exatamente a mesma função de suporte, agora de outros edifícios modernos", explica Joana Sousa Monteiro.
A estrutura foi descoberta pela primeira vez em 1771, na sequência do terramoto que destruiu grande parte da cidade em 1755. Segundo Lídia Fernandes , coordenadora do Museu de Lisboa e do Teatro Romano, três anos depois foi descoberto um novo troço de galerias, sendo que hoje se sabe que a extensão do monumento é maior do que aquilo que é possível visitar.
"Há levantamentos de outras partes do monumento, às quais não temos acesso, infelizmente, porque essas entradas foram perdidas e porque foram construídos os coletores, no século XIX, da Rua da Prata. É claro que por muito que se conheça do monumento, como ele está a ser utilizado, como é parcial a possibilidade de vir ao seu interior, o tipo de pesquisa que os arqueólogos podem fazer é também reduzida", explica.
Uma das investigações que terá dado mais informação sobre a estrutura foi feita em 1995, quando uma primeira sondagem arqueológica permitiu saber qual a profundidade do pavimento original e permitiu, igualmente, fazer algumas sondagens parietais e perceber melhor o sistema construtivo da mesma.
As conclusões acerca das dimensões do monumento, diz Lídia, apenas se entendem "na cidade romana de Felicitas Iulia Olisipo quando ela foi conquistada. Criada. Daí dizermos que quer pelas técnicas construtivas, quer pela dimensão da obra, terá sido mandada fazer pelo imperador Augusto ou pelo seu círculo mais direto. E isto entra em conjugação com a construção de um outro edifício enorme na cidade que é o Teatro Romano".
Um erro ou um cataclismo?
A razão pela qual este não é um monumento aberto ao público, na generalidade dos dias, prende-se com uma questão: um metro de água.
Não, não era suposto existir água nestas galerias subterrâneas. Não é uma estrutura concebida para mais do que, muito basicamente, nivelar o terreno e permitir a construção de grandes edifícios. Poderia, no entanto, albergar uma função secundária de algum tipo de armazenamento, mas não de água.
A água aparece numa fenda da chama Galeria das Nascentes. É possível vê-la surgir com força junto aos nossos pés.
"A água brota de uma fenda, com força, e traz areias. Ou seja, antes da época romana teríamos uma praia nesta zona, porque a costa era completamente distinta", aponta Lídia, a título de curiosidade.
A falha situada no chão transmite-se à abóbada e seguem paralelas até ao fim daquela galeria que nunca chegou a ser acabada. O que é que aconteceu?
Não existe uma resposta objetiva, mas existem duas teorias muito plausíveis: "Eu penso que [os romanos] não estariam à espera que isto acontecesse, se não o aproveitamento das águas teria adotado uma morfologia distinta, teria existido aqui uma estrutura com esse fim. Aquilo que temos aqui é uma falha, uma falha incerta, que se transmite do chão até à abóbada. Poderá ter acontecido no terramoto de 1755, mas nós acreditamos que tenha acontecido muito anos antes devido a um erro de obra ou a um cataclismo que tenha ocorrido ainda em época romana, como um pequeno sismo", explica Lídia Fernandes.
No entanto, uma vez concluída a obra, tendo o edifício capacidade de conviver com a existência de água no seu interior, apenas se abandonou qualquer utilização que estas galerias pudessem ter ao nível de armazenamento de produtos, por exemplo.
No entanto, mais tarde, quando foi descoberta, nos séculos XVIII e XIX, sendo esta uma água boa para consumo, o espaço foi utilizado como cisterna, tendo sido criados vários pontos de acesso à mesma. Imaginemos, alguém que, à época, vivesse na baixa pombalina e que habitasse perto de um dos pontos de acesso, denominados poços, estava a apenas uns degraus e uns baldes de ter boa água em casa.
Ao longo do espaço que é possível visitar vêm-se vários destes poços, uns em que se vê a tampa, e, que no meio do misticismo que envolve uma galeria subterrânea permite imaginar saídas inusitadas, outras, menos manuseadas nos anos, onde já é possível ver a formação de estalactites.
No entanto, este uso da água que se armazenava nas galerias conheceu o seu fim na segunda metade do século XIX com a construção dos coletores da Rua da Prata. O sistema de esgotos viria a contaminar esta água e a torná-la imprópria para consumo.
"Em relação às águas que entram no seu interior, o monumento comporta-se de forma una com a quantidade de água que está no seu interior. Sabemos isso porque há uma monitorização constante da abertura ao fecho da falha que existe no teto e no chão, na galeria das nascentes, e essas leituras são feitas de três em três meses. Por isso é que afirmamos que a quantidade de água existente no interior está diretamente proporcional à abertura ou fecho desta fenda. Isto é a teoria dos vasos comunicantes, a água entra no edifício, sobe até um certo ponto e depois, com a pressão do ar, não sobe mais. No entanto, claro que toda a alteração de subsolo na baixa tem influência quer na quantidade de água que entra no interior, quer na própria estabilidade dos edifícios que estão na envolvente deste monumento", explica mais detalhadamente a responsável pelo Teatro Romano da cidade.
Todo este sistema torna complexa a ação de abertura das galerias para visita do público. "Temos de ter, vários dias antes da abertura, duas bombas a funcionar em permanência para a extração desta água, temos de ter o apoio dos bombeiros, da polícia municipal, porque o trânsito é fechado nos três dias de visita do público, bem como o apoio dos serviços elétricos da câmara e da Junta de Freguesia de Santa Maria Maior. É toda uma máquina de produção para poder abrir este monumento estes três dias duas vezes por ano", explica Joana Sousa Monteiro.
Mas perguntar-se-á o leitor - ou aquele visitante que nunca teve a sorte de apanhar bilhetes disponíveis : não é possível bombear a água em permanência e abrir assim as galerias ao público?
A resposta sucinta é não. Pelo menos para já. "No que diz respeito às questões de conservação, não temos nenhuma indicação segura, até hoje, que possamos tirar a água deste monumento e que, o retirar da água e a baixa drástica da humidade relativa, não seja prejudicial para a conservação do mesmo".
No entanto, há esperança."Existe um projeto da Câmara Municipal de Lisboa para a criação de um Centro Interpretativo das Galerias Romanas, para o qual já existe um edifício aqui ao lado [ver na fotogaleria], para o público, todos os dias, poder perceber o que são estas galerias. O que não sabemos é quando é que esse centro interpretativo vai estar finalizado e se vai ser possível vir cá abaixo, conforme o nível de água que vai ser possível manter ou não", explica a diretora do Museu de Lisboa.
Essa sala, que albergará o centro interpretativo é visível na galeria das nascentes, contrastando com o restante espaço pela utilização de um azulejo. Crê-se que o espaço a ser reabilitado pela Câmara, com o devido apoio arqueológico, era uma cave clandestina.
Um monumento abandonado
Identificado em 1771, com novas galerias descobertas em 1859, aquando da construção dos coletores da Rua da Prata, a existência desta estrutura era conhecida apenas por alguns estudiosos e eruditos, sem que lhe fosse dada grande importância, conta Lídia Fernandes.
A primeira entrada no século XX far-se-ia por um grupo de estudiosos com um barco a remos e velas colocadas nos capacetes.
Um espaço destes é facilmente palco de histórias pouco vistas. Há cerca de quatro anos, os bombeiros de Lisboa "fizeram um exercício de subaquática dentro destas galerias". "Eles queriam fazer uma experiência com equipamentos que tinham adquirido, para salvamento em meio submerso. Aquilo que fizeram foi testar o equipamento e fazer um reconhecimento das galerias, com as galerias cheias de água", conta a coordenadora do Museu de Lisboa.
As visitas guiadas começariam em 1988, no mesmo molde com que são feitas hoje.
Mas este artigo não é só desalento de um fim de semana esgotado e spoilers de um dos monumentos mais curiosos da cidade. Traz também um apontamento para que não falhe a próxima visita. Tome nota: as Galerias Romanas de Lisboa abrem sempre duas vezes por ano, uma no fim de semana próximo do dia 18 de abril, por ocasião do dia Internacional dos Monumentos e Sítios, e noutro fim de semana em setembro por ocasião das Jornadas Europeias do Património.
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