Nota do editor

Em 2017 Germano Almeida iniciou a redação de um novo romance, a que viria a dar o título de O Fiel Defunto. O livro foi publicado em 2018 e a intenção do autor era ficar por aí.

Porém, mais tarde verificou que a história relatada nesse romance, embora pudesse ser lida como livro independente, colocava um conjunto de questões a que importava voltar. Por isso mesmo, logo nesse ano de 2018 iniciou a redação de um novo romance, que viria a ser publicado em 2020, com o título de O Último Mugido. Mas a história não estava ainda concluída. Tratava-se de uma ideia com uma grande riqueza de aspetos e significados, a exigir um terceiro romance, que é este que agora se publica, com o título de A Confissão e a Culpa. Para que a história fique definitivamente encerrada, se é que tal é possível, o autor decidiu dar a este conjunto de romances o antetítulo de Trilogia do Mindelo. Isto porque, de facto, o verdadeiro personagem destes três romances é o povo da cidade Mindelo, Cabo Verde. Os naturais reconhecer-se-ão nestas páginas. Aliás, não seria a primeira vez que leitores de Cabo Verde, e em especial do Mindelo, tentam «descobrir» que pessoas reais se apresentam disfarçadas de personagens de Germano Almeida. E quanto aos estrangeiros, sobretudo aqueles que nunca tiveram a felicidade de estagiar por alguns dias na cidade do Mindelo, descobrirão nesta trilogia um microcosmos onde se sentiriam confortáveis. Em todo o caso, como se depreende da leitura desta prosa deliciosamente curvilínea e aliciante, é essa a intenção do autor, embora ele o negue.

I

Não obstante o pertinaz zelo e, digamos mesmo, notável brilho do meu jovem e ambicioso advogado, acabei sendo condenado a vinte anos de prisão efetiva pelo assassinato em primeiro grau do escritor Miguel Lopes Macieira. Homicídio voluntário, cometido com premeditada frieza por quem tinha especial dever de defender e respeitar uma longa e mútua amizade, decidiu o meritíssimo juiz na prolixa sentença que levou mais de duas horas a ler, eu ali de pé a ouvi-lo e pouco preocupado em entender a sua voz monocórdica, via-se que está pouco habituado a longas leituras em voz alta. Mais parece a leitura do testamento do senhor Napumoceno, lembro-me de ter pensado, porque o que desejava era que terminasse depressa aquele longo arrazoado para que finalmente pudesse sentar-me, até o banco dos réus pareceria naquela hora uma cómoda poltrona, é mesmo uma mania, ou então um acréscimo de castigo, essa regra de obrigar os réus a ouvir de pé as decisões que lhes ditam o destino.

A Matilde tinha tido a infeliz iniciativa de me fazer chegar um par de sapatos novos, muito bonitos, é certo, que eu tinha trazido aquando da nossa viagem a França há já alguns anos e nunca tinha usado porque era o que se poderia chamar um sapato de uma hora sim, não de uso vulgar quanto mais diário, e portanto achou que aquela era uma boa ocasião para os tirar da caixa onde se encontravam ainda guardados. Porém, arrependi-me amargamente de ter perfilhado a ideia porque, não sendo confortáveis mesmo estando eu apenas sentado, o que na verdade aconteceu durante todos aqueles dias que durou o julgamento, magoavam-me dolorosamente nos períodos que tive que ficar de pé.

Não contestei a convicção do juiz relativamente à premeditação, embora não esteja completamente seguro sobre ela. É verdade que não neguei ter andado sempre com a pistola comigo nos 14 dias anteriores ao meu ato, porém nunca cheguei a ter a certeza, sequer no momento em que disparei, de que o queria matar ou que o mataria, tanto mais que nesse intervalo de tempo estive por diversas vezes na sua casa, com a mesma arma no bolso das minhas calças, carregada de balas, porém travada em segurança, pelo que nos limitámos a conversar e a beber, trocando impressões sobre o momento político que se avizinhava pois que as eleições estavam próximas, os diferentes partidos já estavam na recolha de fundos junto dos simpatizantes e até, brincando, ele perguntou se não seria ainda desta vez que me candidataria a deputado nacional. Não, lembro-me de lhe ter respondido, decisões mais urgentes me impediram de aceitar os convites que pelo menos dois dos partidos mais importantes na nossa sociedade me fizeram com pompa e circunstância, podia de facto ser uma oportunidade, porém estou preso a assuntos mais delicados.

Em outubro recebemos José Luís Peixoto

O escritor José Luís Peixoto é o convidado do próximo encontro do clube de leitura É Desta Que Leio Isto, no dia 28 de outubro, pelas 21h. Iremos conversar sobre o seu mais recente livro, Almoço de Domingo, mas também sobre outras das suas obras.

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Reparei que na ocasião a própria Matilde ficou a olhar para mim com evidente curiosidade, certamente tentando perceber que assuntos mais delicados eram esses de que nem sequer a ela tinha falado, porém apenas disse, Não sabia que tinhas interesses políticos a ponto de seres convidado para deputado. Eu limitei-me a sorrir, mas o escritor respondeu por mim, Esse seu marido e meu afilhado é uma caixinha de surpresas, vai ver, ainda o teremos como primeiro-ministro de Cabo Verde. Agradado da brincadeira, continuei a sorrir, Se tal viesse a acontecer imediatamente o proporia para concorrer a presidente da República. Que Deus tal não permita, exclamou Matilde, com essas coisas a gente nem brinca, anjo pode ouvir e dizer amém!, e vir a acontecer. O escritor sorria, Não há risco, minha amiga, em nenhum caso, mesmo contrariando o Divino, se esse fosse o seu desígnio, eu aceitaria um cargo desses, estão a ver que nunca mais teríamos um momento de paz para nos concentrarmos numa reunião como esta?

No entanto, o juiz declarou não ter atinado, quer no processo quer ao longo dos muitos dias que durou o julgamento, quaisquer circunstâncias que minimamente poderiam atenuar a evidente responsabilidade penal do réu… (a minha responsabilidade!), de molde a indiciar algum desagravamento da pesada, porém, mais do que justa pena, sic.

Não posso dizer que não me tenha custado ouvir esse número brutal de anos, sobretudo por não ter conseguido traduzi-lo em dias, não deu sequer para calcular imediatamente a enorme quantidade de noites que provavelmente terei de passar longe da minha casa e dos braços da minha amada mulher. Por sinal, na altura do caso dos autos estávamos a atravessar um momento particularmente agradável na nossa relação, de tal maneira que na noite dessa conversa com o escritor sobre eleições, mal chegámos a casa, ela, no geral sempre muito reservada, agarrou-me para me beijar com sofreguidão e fazendo isso pedia, Não te metas nessas confusões de política, por favor, estamos tão bem como estamos! E arrastou-me para o quarto enquanto pedia, no intervalo de um longo beijo, Promete-me, eu quero ouvir-te prometer, eu sei que és homem de palavra. E eu prometi e então ela sorriu e empurrou-me para a cama. Estávamos, pois, num período de quase uma nova lua-de-mel, porém não foi isso que me custou mais ao ouvir a sentença. Custou muito mais ver o meu orgulhoso e seguro e jovem e irrequieto advogado aos poucos desmoronando-se na sua pose altiva, conforme ia ouvindo os argumentos com que o juiz rebatia as teses que ele, com convincente brilho, é verdade, tinha defendido a meu favor. E no fim, literalmente de rastos, o rapaz chorava que nem uma criança desmamada, diante da sentença que tivemos que assinar e ele repetia sem cessar ser um «horror».

Ao longo dos dias que tinha demorado o julgamento ele teve frequentes embates retóricos com o acusador público, pois que não se entendiam quanto à forma de qualificar o que o outro assegurava ser «o meu crime». Salvo sempre o devido e merecido respeito, clamava o meu defensor, que parecia rapidamente ter aprendido o linguajar do tribunal, o colega está francamente equivocado quando, de forma que eu e qualquer outro jurista responsável consideraria simplista, classifica o ato do meu constituinte como um frívolo crime, não muito diferente do ato de, ao balcão de uma tasca, distraidamente pedir um café ou beber um copo d’água. Ora, na verdade, e à luz de todos os factos conhecidos e analisados na única perspetiva possível, qual seja, a perspetiva humana, temos que concluir, se queremos mesmo que a história registe que fizemos um julgamento justo, que se tratou de um ato de legítima defesa da honra diante de uma violenta e continuada agressão psicológica, ainda que virtual, porém suficientemente expectável a ponto de justificar a resposta contundente que infelizmente veio realmente a verificar-se. Assim, poderá V. Excia, digno magistrado, eventualmente contestar a veemência da resposta, um excesso de defesa legítima, nunca, porém, a factual existência da ofensa.

Mas a isso tudo o digno magistrado apenas respondia, com uma evidente ironia e a leve sombra de um sorriso, A uma ofensa que diz e bem ter sido virtual, o ilustre colega pretende justificar a resposta com dois reais tiros de pistola desferidos traiçoeiramente e à queima-roupa. E mais: disparados por alguém que tinha o particular dever de não o fazer, atenta a relação de amizade quase fraternal que unia agressor e vítima. Quererá, pois, o caro colega ter a bondade de indicar-nos o inciso legal que suporta a sua tão preclara asserção de agressão psicológica?

Ouvindo essas palavras do meu jovem causídico, eu mesmo ria-me disfarçadamente. Isso porque de forma alguma eram novas para mim, vezes sem conta já as tinha discutido com ele porque, não sendo jurista, também não sou estúpido, e portanto sabia que aquela argumentação só seria aceitável se houvesse uma lei específica a suportá-la, o que não era o caso. Pelo que o «horror» da brutal condenação, que ele só agora encarava, era para mim na verdade mais que previsível. Mas abracei comovido o meu heroico leãozinho, um longo e agradecido abraço, antes de estender os pulsos para ser algemado e de novo devolvido à cadeia. Além de que me tinha aumentado a dor nos pés, sentia-me cansado depois dos extenuantes dias que tinha durado aquela estopada e não me apetecia falar, apenas queria ficar só, descansar um pouco a minha mente que fervilhava.

Tinha pedido a Matilde para não assistir ao julgamento, forçosamente que seriam tratados temas que lhe poderiam ser dolorosos de ouvir. Como aliás de facto aconteceu, como por exemplo quando o acusador público perguntou se eu sabia ou então se desconfiava ou se admitia a hipótese de que a minha mulher e o escritor pudessem ser amantes. Era uma pergunta que eu aguardava desde o fatídico dia que devia ter sido de apresentação do seu O Último Mugido, e estava mais que preparado para responder, afinal das contas e para o comum das pessoas, essa seria a única razão que poderia justificar o meu ato, que diziam infeliz e tresloucado. E também sabia todas as consequências de uma resposta negativa, isto é, na prática significava o mesmo que voluntária e livremente colocar a minha cabeça no cepo à espera do machado. Mas, por outro lado, era a única resposta que eu queria e estava disposto a dar, por muitas outras que pudessem existir e eu sabia existirem, Não, não sabia, respondi com convicção e altivez, não sabia, nem sei, não desconfiava nem nunca desconfiei, e mesmo agora não me passa pela cabeça semelhante opróbrio.

Reparei que o ilustre procurador ficou a olhar para mim como se estivesse pasmado diante de um animal estranho, profundamente ignorante quanto à defesa dos seus interesses, muito provavelmente a pensar, alguém tem que ajudar esse louco a salvar-se de si próprio. Então porquê o assassinato, perguntou finalmente em voz muito baixa, olhando-me perplexo e à espera de qualquer palavra minha que o ajudasse a definir que tipo de ser humano eu poderia ser.

Eu sabia que não podia responder, sobretudo porque ele nunca entenderia a minha resposta, que certamente consideraria a expressão de um louco desatinado, mas felizmente que o advogado veio em meu auxílio com um oportuno e vigoroso protesto, Meritíssimo juiz, quase gritou, essa pergunta é uma evidente injunção no foro íntimo do meu constituinte, uma indelicada e inconstitucional tentativa de devassa da vida privada que as nossas leis defendem com vigor, acrescido de que qualquer que fosse a resposta do réu ela estaria sempre circunscrita ao âmbito subjetivo e portanto sem qualquer relevância para o desfecho prático deste julgamento.

Com uma humildade pouco comum nessa gente que, quando no desempenho dessas funções, normalmente consideram ter rei na barriga, o digno agente apressou-se a pedir desculpas, disse que não era sua intenção imiscuir-se na vida privada do réu, o seu desígnio tinha sido nobre, quisera apenas tentar compreender o homem que o dever o obrigava a acusar. Mas felizmente que o juiz aceitou o protesto, comentando que, embora a pergunta fosse absolutamente pertinente, muito ao contrário do que pretendia o ilustre advogado, ele, juiz, achava que ela poderia ser retardada e só trazida à colação lá muito mais para a frente no decurso do julgamento.

Ao deixar a sala de audiência a caminho do carro celular que me reconduziria à cadeia, cruzei-me de perto com o Dr. Brito-Macieira que, juntamente com o público presente no julgamento, também se preparava para deixar a sala. Tinha vindo até ao Mindelo para a apresentação de O Último Mugido do seu primo defunto, ter-se-á entusiasmado com toda a celebridade que acabou obtendo na preparação das exéquias do outro e foi ficando e parece que quer ficar de vez, encantado que parece estar por um jovem rabo de saia, com quem até sonha casar-se. Diz a Matilde que é uma moça bonita, extrovertida e culta, com formação numa área qualquer das ciências, e com metade da idade dele. Enfim, mais um elemento a engrossar o nosso rebanho de cornos nacionais!

Olhei para ele com desenvoltura e cumprimentei-o com um altivo aceno de cabeça, certamente que não iria estender-lhe as mãos algemadas. Não que eu tenha qualquer problema em fazer isso, isso não, razão aliás por que não faço o disparate de tentar escondê-las com um lenço ou um jornal, sempre tive orgulho em assumir as consequências dos meus atos. Mas ele cumprimentou-me afetuosamente pelo meu nome e reparei no seu olhar triste e abatido, certamente que pesaroso pela excessiva e certamente desnecessária pena. Com uma voz muito baixinha, como se estivesse numa igreja, disse que nem se atrevia a perguntar-me como me estava sentindo. Pois sinto-me muito bem, disse-lhe, tentando um sorriso que acredito tenha saído amargo, assim vou ter tempo de sobra para escrever todas as minhas memórias em pormenor.

Tinha reparado que ele falhara muito poucas sessões do julgamento. Desde o segundo dia que tinha dado pela sua presença na sala, sempre de fato e gravata, como era aliás tradição nos tempos antes da independência nacional, quando as pessoas se aperaltavam para ir ao tribunal com a mesma cerimónia com que frequentavam a missa dominical. Brito-Macieira ficou sempre sentado num dos bancos mais afastados do lugar onde eu estava, porém a sala é pequena, as enormes salas de audiência de antigamente, onde as pessoas se acotovelavam para entrar, saíram de moda. Por sorte ele ficou sempre atrás de mim e por isso tinha podido fingir não reparar nele, embora o observasse de soslaio e o visse frequentemente a registar apontamentos num caderninho de bolso, certamente com o objetivo de fazer em casa um relato mais circunstanciado e fiel dos acontecidos, pois sempre acreditei que a sua presença ali tinha a ver com espionagem por conta das meninas da família. Certa vez que virei a cara mais do que devia, vi-o fazer o gesto de levantar a mão para me cumprimentar, mas preferi não reparar.

Não consigo fazer ideia do tipo de informações ou comentários que ele poderá levar, quando muito dirá que estive sempre muito bem vestido durante todas as sessões do julgamento. Tinha pedido à Matilde que me fizesse chegar o meu melhor fato, na verdade o cerimonioso fato com que nos tínhamos casado já há alguns anos, e admito que o Brito lhe terá falado de como essa indumentária ainda me fica bem, eu de em frente ao juiz, ereto como um senhor e não encarquilhado como um maltrapilho. É um fato de um azul-escuro sério, e a gravata também azul, mais clara, sobre a camisa de um branco pérola, faziam sentir-me orgulhosamente bem vestido, tanto mais que, não obstante o fato já ter alguns anos, eu tinha emagrecido durante aqueles meses na cadeia e ficado muito mais fidalgo, eu que realmente nunca cheguei a ser gordo, sobretudo por causa da profissão que exercia e me mantinha sempre em movimento.

Não foi por acaso que assim me apresentei, tinha lido já não sei onde, e o meu advogado corroborou, que a técnica de se apresentar decentemente vestido perante o tribunal era uma das formas de melhor impressionar os juízes no sentido de não nos considerarem delinquentes vagabundos. Bem, no meu caso não terá servido de muito.

De todo o modo, os guardas permitiram-me parar e trocar algumas palavras com o Macieira, informar-me acerca da minha família, a saber, a Matilde, e agora também a Mariza, em casa de quem estava a minha mulher praticamente a morar. Escolhendo cuidadosamente as palavras, ele disse que andava a mantê-las informadas do andamento do «nosso caso», sic. Viviam rezando por uma condenação suportável, por exemplo, uma pena suspensa, mas infelizmente todos se sentiam traídos pela evidente exageração. Mas ainda não é a última palavra, disse ele com fervor, ainda temos a Relação e depois o Supremo e até o Tribunal Constitucional, enquanto há vida há esperança. Então já sabe, disse-lhe em despedida, pode dizer às senhoras que me mantenho firme e preparado para todas as batalhas e para todos os percalços.

A Confissão e a Culpa
A Confissão e a Culpa créditos: Caminho

Livro: “A Confissão e a Culpa - Trilogia do Mindelo Vol.3”

Autor: Germano Almeida

Editora: Caminho

Data de lançamento: 19 de outubro

Preço: 14,31 €

O meu jovem advogado não saía de ao pé de mim, tendo acompanhado toda a conversa com o Brito-Macieira. Sim, vamos recorrer, soluçou quando me despedia dele, essa condenação é um absurdo jurídico no próprio e mais expressivo sentido do termo, vamos recorrer sim senhor, se for necessário recorremos até para o próprio Deus no Céu… Olhei para ele enquanto me apertava as duas mãos algemadas, Sempre pensei que você fosse ateu, disse-lhe com um sorriso carinhoso. Ele sorriu finalmente, Quando necessário também sei ser crente.

Esses advogados não têm emenda, mesmo nas ocasiões mais pesarosas nunca se esquecem de usar palavras e expressões de grande porte e estilo. Sim, vamos recorrer, animei-o, tentando um sorriso que não me apetecia ter, descanse agora uns dias e depois vá ter comigo para falarmos sobre isso. Mas não, disse com arrebatado desespero, é mais urgente do que está a pensar, não temos muito tempo, temos de apressar, começar já, fazer as alegações com a máxima atenção e urgência, precisamos mostrar ao Supremo Tribunal a demência que foi essa iníqua condenação…

Fiz-lhe a vontade de recorrermos, claro, mas infelizmente não tenho como ele a certeza de o juiz se ter equivocado na minha condenação. Porém, ele é um jovem promissor ainda no início de carreira e precisa ser encorajado a prosseguir e perseguir aquilo que acredita ser a justiça. Cedo aprendi que ninguém é ele próprio sozinho, carregamos pela vida as marcas da nossa vivência, e o meu advogado é um bom exemplo disso mesmo. Praticamente é filho de pai incógnito, surgido durante as confusões de preparação para a independência nacional. Toda a gente sabe, talvez menos ele, que a mãe, uma conhecida e estouvada professora do ensino primário, deu em revolucionária a seguir ao 25 de Abril e alistou-se no PAIGC, na propaganda anticolonial. Fez parte das milícias populares criadas para garantir a vigilância das nossas costas contra eventuais invasões externas, passando noites e mais noites na ourela do mar de arma aperrada e perscrutando o mar em busca do inimigo. Foi nesse período que apareceu grávida. Quem conheceu um militar cubano que estava cá na altura como instrutor desses grupos de milicianos diz que Joel é a cara chapada do mesmo, ainda que a estória que ele me contou num intervalo das nossas sessões, que eu chamava de psicanálise invertida, ponha um pretenso pai, dito mergulhador inveterado, a morrer afogado numa gruta no fundo do mar. Ficou filho único, carregando para sempre o insuportável peso de ter de satisfazer todos os caprichos e necessidades emocionais da mãe, para a convencer de que nunca sentiu a ausência de um pai para se afirmar como homem. Confesso ter algum receio por ele, as pessoas assim são muitas vezes perigosas para a sociedade porque normalmente nunca chegam sozinhas à conclusão de que não precisam de provar nada a ninguém e não poucas vezes cometem erros lamentáveis. Um exemplo disso foi a suficiência com que encarava este julgamento, que considerava de absolvição garantida e a forma miserável como recebeu a condenação. Enquanto eu, o sentenciado, sou franco em dizer que, consciente ou inconscientemente, por simples instinto ou então por inspiração divina, o juiz conseguiu ler, se não nas minhas palavras, pelo menos no mais profundo da minha alma, toda a completa e lúcida responsabilidade que eu tinha livremente assumido quanto à necessidade absoluta de simplesmente eliminar o escritor porque, vivo, ele continuaria causando danos irreversíveis como já acontecera por diversas vezes com a Matilde e agora ameaçava acontecer com a tal Letícia, que já se mostrava embasbacada com aquela voz que parecia embriagá-las. E, chegando ele, juiz, a essa conclusão, só a minha condenação por homicídio voluntário era possível. E obedecendo à lei e à sua consciência, não hesitou em agir em conformidade. E, chegado a esse ponto, a dosimetria da pena, maior ou menor, era um pormenor sem grande importância.

Por mais que o meu advogado insista e espere, e não serei eu a destruir-lhe essa esperança, não estou a contar sequer com uma redução da pena quanto mais com uma absolvição, que seria a mais absurda e completa deturpação de todos os princípios de justiça que conhecemos. Assim, vou aproveitar o muito tempo de que vou dispor daqui para o futuro para falar das razões pessoais que me conduziram à absoluta necessidade dessa ablação social, que tinha acabado por tornar-se não só necessária como também de certa forma urgente.

Sei, melhor, sempre soube do que se comenta na sociedade mindelense acerca de mim e da minha relação com o defunto escritor, e com a minha mulher, pode-se dizer que literalmente metida entre nós. O mínimo que se diz, ou pelo menos se dizia, era que sou um corno que, de tanto apanhar chifres, ficou manso jato, sempre de cabeça baixa à espera de mais e mais canga que transporto, se não alegremente, pelo menos resignadamente, como se fosse uma fatalidade. O boi da paciência, diziam de mim. Sabia isso não expressado pessoalmente, bem entendido, porque nunca permiti a ninguém a ousadia de falar comigo acerca de assuntos que só a mim e à minha esposa dizem respeito, mas através de centenas de cartas anónimas que fui recebendo. Não só em papel na minha caixa postal como também via internet, no meu computador, quando chegou a nova moda que é o email. Tenho-as todas ordenadas por data de entrada e rigorosamente preservadas em pastas especificadas conforme a natureza do seu conteúdo. As que chegaram em papel estão acondicionadas por lotes num velho cofre que uso no escritório para conservar o arquivo morto; os ficheiros em suporte digital também ocupam diversas pastas que fui criando por anos em discos externos de computador. Os primeiros anos são extremamente volumosos e violentos, os seguintes vão enfraquecendo a pouco e pouco, como se os cuidadores da minha testa fossem com o tempo achando-me um caso perdido. E de facto os últimos anos são mesmo muito escassos, pouco mais terão que uma dúzia de ficheiros. Evidentemente que a Matilde nunca soube dessas mensagens e também nada disso consta do processo penal, sequer uma breve referência. Nem ao meu advogado deixei transparecer qualquer ideia sobre esse facto, quanto mais ao tribunal. Mas agora que escrevo é que me ocorre que o meu advogado certamente utilizaria todo esse abundante material para provar que fui induzido, melhor, quase que impelido ao crime por força de uma opinião pública maldosa e mexeriqueira e altamente desfavorável à minha pessoa.

Tenho que admitir que alguns dos indivíduos que me escreveram, mesmo anonimamente, terão tido por mim alguma consideração, senão mesmo alguma estima. Isso pela maneira delicada como sempre souberam expor o penoso assunto que era a saúde da minha testa. Claro que não foram todas, a maioria foi simplesmente brutal, És um corno manso, diziam alguns, os teus chifres atravessaram o mar de canal e já penetram a ilha de Santo Antão; está provado que ser corno não mata, se matasse tu nem osso já terias; mas é bem feito, teres casado com uma mulher que bem perfeitamente podia ser tua filha, ou até tua neta, de modo que agora só tens que aguentar os chifres com alegria, vais com sorte se ela não te levar alguma doença maligna para casa, a sida está muito na moda… Coisas assim, maléficas! Houve um até que se deu ao trabalho de me indicar a designação moderna para homens como eu, «Cuckold — homem que tem prazer em partilhar a sua mulher».

Mas também chegavam cartas simpáticas, de pessoas com educação escolar e que diziam entender que ela, uma rapariga ainda nova, precisasse de outras companhias para além da minha, já bastante estafada por causa de uma profissão muito desgastante. Por isso mesmo elogiavam a forma civilizada como tínhamos aprendido a gerir uma situação sobre a qual a sociedade não devia ter o direito de se imiscuir, sobretudo porque certamente nos agradava a todos continuar a vivê-la como a vivíamos. Um ou outro lamentou o facto de a Matilde, ainda tão jovem, ter escolhido para amante alguém que tinha idade para ser pai do seu marido, como era o caso do escritor. E tentavam justificá-la como sendo certamente uma atração pela inteligência do homem, uma paixão mais intelectual que carnal, e até indicavam a palavra que modernamente explicava esse comportamento algo bizarro mas já bastante comum: sapiosexual.

Sim, é certo. Não só a sociedade não tinha o direito de se imiscuir nas nossas vidas, sequer na vida do escritor, ainda que ele fosse uma figura pública, como de facto não interveio (pelo menos que tivéssemos dado conta!), como também nos agradava plenamente a situação que existia porque ela nos apaziguava a todos, proporcionando-nos uma vida tranquila e feliz. Muito bem: por que então tomei a difícil decisão de suprimir o escritor? Uso a palavra «suprimir» não por acaso, acho ser a palavra mais próxima daquela que pode corretamente exprimir o meu pensamento. É que sei muito bem que não se tratou de um assassínio, por mais que a sociedade me condene por esse crime. Mas também não se tratou de simplesmente o afastar do nosso convívio. Vezes sem conta analisei a nossa tragédia nos seus mais íntimos e ínfimos pormenores e em todos os ângulos existentes, chegando sempre à amarga conclusão de que infelizmente a única solução prática, e também definitiva, ainda que a mais dolorosa, seria eliminá-lo. Qualquer outra opção seria sempre paliativa, um simples adiamento de um desfecho que se tinha tornado necessário, irremediável, assim uma espécie de uma eutanásia antecipada, praticada antes que os horrores do sofrimento se abatessem e se instalassem num corpo, isto é, numa situação a ficar cada dia mais doentia e calamitosa. Ora é precisamente isso que pretendo, se não explicar, pelo menos contar no presente texto. Quanto mais não seja, poderá ser útil ao meu advogado, que está convencido, não direi da minha inocência, mas pelo menos do meu direito à exclusão de culpa, o que em termos práticos acaba por dar no mesmo. Mas infelizmente ele está errado! Não só à luz das leis que nos governam como também à luz dos valores que enformam a nossa sociedade. De modo que, e de acordo com a nossa cínica e pervertida moral judaico-cristã, reconheço-me incontestavelmente culpado pelo homicídio quase premeditado na pessoa do escritor Miguel Lopes Macieira.