Tal como o conheci, André Pessel era um homem quase redondo, tão largo como alto. Devido a essa particularidade, a rue Saint-Jacques deixava-o derreado; chegava sempre à nossa sala a bufar e a suar grossas bagas. Sentava-se à secretária, sacava do casaco um lenço de pano elegantemente dobrado, depois secava o rosto com paciência e resignação, antes de começar a aula.
À quinta-feira, Pessel entregava-se a improvisações sobre os temas que dera nas orais da terça-feira precedente. Nesse dia, começou a estudar os problemas do amor; citava Platão, Agostinho, Espinoza. A certo momento, pousou os enormes óculos no alto do crânio calvo, como por vezes fazia; apoiado nos cotovelos, abriu em seguida as mãos de um lado e de outro das têmporas. Era a postura que gostava de adotar para se abandonar sem reserva às suas reflexões. Enquanto olhava para nós sem nos ver, os dedos como tentáculos sobre o crânio, os argumentos que desenvolvia iam ganhando em profundidade. Sem deixar de pesar os prós e os contras, refletindo sempre contra e contra ele mesmo, desenvolveu uma meditação tão abissal, de tal poder, de tal beleza, que, sem deixar de tomar notas, parei de respirar. Ao fim de alguns momentos, fiquei tão alterado que já não conseguia escrever. Estupefacto com o que ouvia, ergui os olhos.
O que vi então, o que senti, a natureza do silêncio, a origem da conflagração, a forma, a força e a frequência que irradiaram todas as pessoas presentes: é esse o objeto deste livro.
Introdução
Quase toda a gente já se viu, algum dia, perante alguém de quem recebeu alguma forma de inspiração — um professor de francês ou de matemática, de gestão, de tecnologia, de ioga ou seja do que for. Os nossos mentores e as nossas fadas não são todos os professores, mas mesmo que se contem pelos dedos de uma mão, terá sido preciso de facto pouca sorte para não ter nunca, no decurso da vida, lançado um olhar fascinado sobre uma dessas pessoas.
Muitas vezes, o que nos prende à pessoa que encarna esse papel é uma forma de generosidade, talvez de abertura, um pouco maior do que a média. À medida que se lhe presta mais atenção, podemos dar por nós surpreendidos pela rapidez da sua inteligência, pela quantidade de saber que acumulou, pela pertinência dos reparos que faz, pela facilidade com que nos parece reconhecermos nela o que sonharíamos desenvolver em nós mesmos. Essa lufada de admiração é tão potente que basta uma chispa para que a admiração expluda em amor — um desses amores juvenis, confuso e inocente, terno, frágil, indizível e irrealizável, mediante os quais os jovens (mas não só eles) são levados a superar-se. Seja qual for a intensidade com que se vive isso, desde o erguer de sobrancelha logo desfeito até às agruras de uma paixão que nos impede de dormir, parece difícil passar da infância à idade adulta sem nunca ter sentido, de uma forma ou de outra, essa atração estranha pela figura do professor.
Pensando bem, não é sequer um fenómeno marginal. A troca de amor no seu sentido mais lato é um motor consubstancial ao crescimento dos seres humanos. Se não se sentissem cativadas pelos adultos, as crianças nada poderiam aprender. Sem o desejo de se aproximarem de algo que intuem em si, de se apropriarem disso, sem a espécie de equívoco que os faz por vezes desejarem tornar-se semelhantes, ou comparáveis, e, porque não, superiores, seria rigorosamente impossível para os mais jovens adquirir a mínima parcela de saber dos mais velhos. Reciprocamente, sem um forte amor, os mais velhos não poderiam transmitir, nem sequer querer transmitir fosse o que fosse aos mais novos. Há que admiti-lo: o encontro dos professores e as relações que se mantêm com eles, da nossa mais tenra idade ao ponto mais avançado da nossa formação, é tão importante que estrutura e matiza, dá cor, tanto quanto os laços de família, quase todas as outras relações que se terá a seguir.
Só que, apesar do papel determinante que desempenham esses encontros no desenvolvimento dos seres humanos, a relação de desejo ou de amor que confere força às trocas entre professores e alunos — e por extensão, a todas as nossas relações de aprendizagem — acaba por cair no indizível, para não dizer no interdito. No entanto, ela não só existe, de facto, mas como eu também gostaria de mostrar, entendida e estudada de um ponto de vista simplesmente material, essa relação é um dado imprescindível que só com grande perigo se escamoteia. Sem voar em elucubrações sobre as delícias dos amores platónicos, sem pasmar perante as requintadas subtilezas do não dito, sem sequer especular sobre o papel estruturante dos fantasmas, gostaria de começar por estudar as vagas de desejo físico que atravessam os corpos que compõem uma turma e o corpo dotado de saber (ou de suposto saber) que se chama professor, ou professora, a fim de compreender como as interações dos corpos reais, concebidos como sistemas dinâmicos de poder, acabam por os fazer atuar de tal maneira que fabricam e aglomeram algo que os torna mais hábeis, mais esclarecidos, mais pertinentes.
Alto aí! Vagas de desejo físico atravessando a escola, o ciclo, os liceus, as universidades, estruturalmente inscritas nas interações que enquadram essas instituições? Não, não, dirão os inspetores e os pais, que horror, é o inverso! Há que erradicar o desejo físico, porque é perigoso, porque abre a porta às derivas, porque dá as boas-vindas aos monstros, ao abjeto, ao ignóbil. Toda a gente já está por esta altura a pensar nos pedófilos. Esse terror revela a presença de duas representações muito fortes, não completamente injustificadas, que nos impedem de conceber serenamente essa ciência do desejo.
O primeiro obstáculo ao que se poderia chamar uma erótica dos professores diz respeito à nossa sensibilidade perante as relações de poder. Com efeito, ninguém ignora que as instituições de ensino são lugares políticos, onde um número tremendamente elevado de pressões se exercem e se cruzam em todos os sentidos. Consideradas no seu conjunto, essas pressões fazem com que uma sociedade, seja ela qual for, encontre na sua juventude os meios de se perpetuar. Em particular, a hierarquia piramidal das nossas instituições desce até à relação professor/alunos, e o que ressalta com mais evidência, quando se evoca essa relação, é uma questão de autoridade. Por ser quem os conta, os avalia, distribui por eles diversas formas de gratificação, etc., um professor tem autoridade sobre os seus alunos (note-se que esta autoridade é igualmente uma responsabilidade que tem não só perante os pais mas também perante a sociedade no seu todo).
Claro, o leitor considera sem dúvida que esta autoridade está em crise, daí entender que os alunos não têm respeito pelos seus professores, ou que o governo não investe o necessário na formação, ou que os estabelecimentos de ensino estão mal organizados e a sua pedagogia mal concebida, ou que os saberes no seu conjunto não são suficientemente valorizados pela nossa sociedade, ou até que os próprios pais não cumprem o seu papel. Voltarei a estas questões; aqui, quero apenas assinalar um primeiro problema: a viva consciência que temos das relações de poder proporciona tornar tabu o que essas relações comportam de desejo e de amor, para o melhor e para o pior.
De facto, com crise ou sem ela, onde quer que haja autoridade, as interações são desequilibradas. Consequentemente, um desejo recíproco no interior de uma interação inigualitária levanta uma dificuldade ética que parece insuperável — uma dificuldade, diga-se de passagem, que atravessa todas as relações entre dominantes e dominados. Todo o discurso consagrado a essas relações deriva quase automaticamente para uma ou outra de duas direções normativas: ora, num espírito de liberdade, ele tende a rejeitar o espírito de submissão e (no caso presente) incita os alunos a lutar contra a sua servidão voluntária — o que é absurdo quando se trata de aprender a ler, a escrever ou a falar línguas, enfim, de adquirir saberes pertinentes tanto para o seu desenvolvimento individual como para a sua inscrição na sociedade. Ora, inversamente, concede que se imponha uma submissão condicionada a fins utilitários, o que deixa no vago as condições e finalidades que tornam essa submissão aceitável, os meios materiais de pôr limites ao poder desejado, e os de lhe dominar os excessos. Numa palavra, numa situação de poder desigual e desequilibrada, nós não vemos como conceber um desejo livre e gratificante.
De entre os leitores, alguns irresponsáveis responderão sem dúvida que qualquer interação humana é perigosa e pelo menos teoricamente ambivalente, e que é preciso assumir riscos. Mas no caso do desejo físico entre professores e alunos, esse risco é de facto muito grande. Na sombra, de novo, se perfila a silhueta do pedófilo. Ora, a pedofilia não é uma perversão sexual qualquer: a violação de uma criança (como de qualquer ser humano, aliás) significa a destruição dos laços que as suas interações tecem no seu próprio corpo. Trata-se nem mais nem menos do que de uma tentativa de assassínio, cuja especificidade é deixar o organismo vivo. Neste sentido, o imaginário da infância só desempenha um papel secundário na gravidade da pedofilia. O principal é que no cerne desse crime há a violação, e no cerne da violação, o assassínio.
Mas porque se impõe aqui com tanta força o espectro da pedofilia? Porque se associa espontaneamente o desejo físico a uma relação sexual? É o segundo problema que torna tabu essa erótica: ele diz respeito ao carácter supostamente original do aspeto «sexual» nas relações entre seres vivos, e em particular entre humanos. De facto, a nossa sociedade acha-se ainda na senda que Sigmund Freud traçou na compreensão da psique humana, em que o desejo mais original é uma pulsão de natureza sexual. Freud, note-se, não descobriu o inconsciente; ele substituiu sobretudo a noção de psique (essa «alma» única e insondável em nós) pela de aparelho psíquico; e o que define um aparelho é que ele se organiza em torno de um certo número de funções. O inconsciente, até então misterioso e indomável, achou-se incumbido de designar funções não conscientes perfeitamente articuladas, e portanto inteligíveis, o que era uma conceção absolutamente genial. Isso permitiu esclarecer com maior ou menor êxito comportamentos aparentemente aberrantes (neuroses, psicoses — mas não todas), assim como algumas curiosas criações humanas (os sonhos, as artes — mas não todas) como produtos de operações realizadas pelo aparelho psíquico, a partir da estrutura da linguagem, sobre o fundo obscuro da sua energia pulsional. Acrescento que a ideia de uma pulsão sexual fundamental suscitou, de imediato, um tão grande número de dificuldades a Freud e aos seus colegas que eles nunca deixaram de procurar proposições alternativas.
No entanto, não quero escamotear uma evidência: o aspeto sexual manifesta de facto algo de problemático entre os corpos e as interações humanas. Ter-se considerado «o sexo» como a coluna vertebral do desenvolvimento subjetivo, tê-lo sobrevalorizado, tê-lo monetizado, utilizá-lo hoje como pretexto para fazer dos seres humanos mercadorias, tudo isso basta para o impor como tema que uma erótica não pode escamotear. Os seres humanos passam a vida a pensar em roçar-se uns nos outros. Há, pois, como veremos, uma brecha sexual nas interações. Será preciso simplesmente aprender a situá-la de modo diferente — decerto não como a origem de toda a interação.
Assim, este livro tem o propósito de esclarecer essas trocas tão perturbadoras que afetam simultaneamente os professores, os alunos, os pais e os antigos alunos — enfim, cada um. Percebendo o que «funciona» nos nossos grandes momentos de descoberta, pretende-se descrever as relações de saber e o desejos que nos animam, sem recorrer às noções habituais de despertar, de curiosidade, de gosto de aprender, de prazer de conhecer, etc. Essas maneiras de falar são demasiado vagas. Sobretudo, dão como adquirido o valor do saber, ao passo que esse valor deve pelo contrário ser progressivamente — e sempre muito delicadamente — elaborado no âmbito de situações precisas, em que o mínimo pormenor pode marcar a diferença. Se pudéssemos dar voz às nossas emoções mais delicadas, destacar as trocas subtis que tornam inesquecíveis certas aprendizagens, poder-se-ia entender melhor as relações entre saberes e poderes. Então, tornar-se-ia possível enfrentar melhor as rebeliões (as nossas e as dos outros), perceber como a aptidão para aprender pode iluminar toda a vida, e talvez permitir-nos aproximarmo-nos, sem os irritar, dos seres dilacerados e das suas incuráveis feridas, tanto nas nossas interações individuais como nas nossas relações a grande escala.
Quando se mergulha na maneira como os saberes circulam, consegue-se esclarecer as interações de toda a gente. É natural! Não existe absolutamente nenhuma interação da qual seja impossível aprender alguma coisa, uma vez que a escola, de facto, não se limita de modo algum às instituições que ministram ensinamentos; mas isso é bem mais verdade quanto se beneficia de uma consciência mais clara do que é aprender. A vontade de aprender ultrapassa largamente a de compreender; abre os humanos a dimensões mais vastas que os esquemas de organização rígidos, um pouco simplistas que se considera geralmente como «racionais». Ela envolve relações físicas intensas, tanto mais essenciais quanto são elementares. Aliás, a experiência do confinamento ligada à pandemia do coronavírus, afastando-nos uns dos outros, tornou-nos sensíveis à necessidade que tínhamos da presença uns dos outros; mas também acelerou e generalizou certas experiências digitais, sem determinar até onde poderíamos ir na desmaterialização das nossas relações. A despeito dos testemunhos dolorosos da maior parte dos professores e dos alunos, certas universidades estão já prontas a renunciar às aulas «presenciais». O êxito desta palavra, que faz da presença uma opção não propriamente indispensável à formação dos estudantes, leva a crer que a escola do futuro poderia dispensar reunir os corpos dos professores e dos alunos num lugar preciso. É uma ideia interessante, porque contém a promessa de um acesso ao saber mais vasto (e mesmo teoricamente mundializado), menos custoso, menos fatigante, etc. No entanto, isso nunca acontecerá. As aulas à distância não podem ser senão soluções provisórias apenas preferíveis a não haver aulas, e esses parênteses só funcionam porque as aulas «presenciais» podem comunicar-lhes a força que circula entre os humanos reunidos. Qual é essa força? Para responder a esta pergunta, impõe-se voltar a essa famosa presença que mantém os nossos corpos ligados de modo invisível, mas observável, e mostrar como as tensões que dela nascem, onde se entretecem todo o tipo de desejos, participam na elaboração dos saberes.
Assim, a conceção do ensino pode ver-se alterada em profundidade, e por outras coisas que não as proezas tecnológicas. Apercebemo-nos rapidamente de que é errado considerar os professores como correias de transmissão, que fazem passar conteúdos de saber de uma geração para outra. Na realidade, a experiência da aprendizagem, tal como o ofício de professor, são coisas muito mais mágicas e bem mais perigosas. Os professores são virtuosos que manipulam materiais estranhos, dos quais os alunos não são recetores passivos, e que não deixam os pais de fora: todos eles estão implicados na aventura dos saberes. Estudando as suas interações, poderá esclarecer-se o tipo de amor que circula entre professores e alunos, mas também o leque de problemas que surgem sob formas diversas conforme as suas trocas chocam com interferências mais ou menos graves.
A primeira parte deste livro consagra-se assim a dar conta dos efeitos extraordinários das trocas entre seres humanos (em particular, está claro, entre professores e alunos); a segunda esclarece a implicação dos nossos corpos (sexuados, mas não necessariamente sexuais) nos saberes; a terceira estuda as atitudes de revolta, de rejeição ou de violência que tanto complicam as nossas relações; e a última mostra a especificidade dos processos de emancipação. No seu conjunto, este percurso visa apenas uma coisa: reconsiderar em profundidade o ato de aprender, assim como o de ensinar, no interior mas também fora das instituições de ensino, visto que tanto uns como outros atestam maneiras mais ou menos controladas de nos amarmos uns aos outros, de nos ajudarmos uns aos outros, e assim de desejarmos algo que dê vida às nossas mais belas experiências: as experiências das interações produtoras de saberes.
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