Prólogo
Domingo, 18 de junho
O cérebro morreu às 11h47 da noite.
Às nove da noite de domingo, o juiz do Supremo Tribunal, Howard Wynn, contorceu-se com irritação na sua poltrona de couro favorita, uma Chesterfield de costas altas, teoricamente encomendada pelo Presidente do Supremo Tribunal, William Howard Taft. O assento largo mais fazia lembrar um pequeno sofá do que uma poltrona, mas este Howard de cepa mais recente apreciava a largura generosa. Ao contrário do anterior presidente, um cavalheiro robusto, o juiz Wynn tinha uma constituição mais elegante, era como uma esguia corveta em comparação com o navio de carga do homem que o antecedera no cargo. Todavia, gostava daquela poltrona e da sua utilidade inesperada. Proporcionava-lhe um espaço extra junto às ancas para os livros que ali guardava com regularidade, não fosse dar-se o caso de se aborrecer com o tomo que escolhera para as leituras noturnas.
Howard Wynn não tolerava muito bem o tédio nem a mediocridade.
Tinha uma opinião igualmente depreciativa em relação à ignorância obstinada — que constituía a sua descrição da imprensa moderna — e à estupidez fanfarrona, à forma simpática como se referia aos políticos. Na sua ideia, eram todos um bando de pulhas arrogantes e enfadonhos que roubavam avidamente as informações uns aos outros como se estas fossem migalhas escassas, enquanto a sociedade se encaminhava alegremente em direção ao inferno. Com a sua colheita atual de analistas, burocratas e mercenários contratados, a América estava destinada a repetir os ciclos de torpor intelectual que derrubaram Roma e a Grécia, o Mali e os Incas e todos os restantes impérios que tropeçaram numa existência breve e moralmente pervertida. Apresentem aos homens o trabalho ignóbil e o sexo fácil, e lá se vai a civilização.
— O que nós precisávamos era de um bom dilúvio — murmurou ele para o escritório debilmente iluminado. — Para afogar estes sacanas todos.
Atrás dele, um tabuleiro de xadrez exibia uma partida a meio, as peças antigas de madeira já a atraírem o pó por falta de uso. Em tempos, jogava xadrez com uma ferocidade que rivalizava com os grandes mestres e na juventude fora um verdadeiro prodígio. Jogadas cuidadosas e conjeturas de fases finais tinham sido suficientes para se aperceber de que podia fazer o mesmo na vida real, quando a sua mente se revelou destinada à lei. O jogo em progresso envolvia um homem que não conhecia, que vivia a meio mundo de distância. Mas até o novo amigo o abandonara naquele derradeiro refúgio.
Há horas que a porta do gabinete estava firmemente fechada, deixando-o a sós no seu santuário. No exterior do escritório, uma tempestade de verão fazia estremecer as janelas. Ao longe, apareceu no céu um clarão branco e depois o inevitável rugido do trovão. Wynn assentiu, em sinal de penoso reconhecimento da tormenta. Para abafar os sons da tempestade, virou-se para a pequena televisão que tinha na sala. Desprezava a caixa idiota por princípio, mas no presente, embora com relutância, via-se obrigado a reconhecer-lhe a utilidade. Nessa noite, o aparelho dir-lhe-ia se ele destruíra ou se salvara a missão da sua vida.
Um anúncio oferecia seguros automóvel com descontos, seguido pelo genérico de abertura de um daqueles talk-shows noturnos populares repletos de invetivas cómicas e políticas. Wynn observou com olhos predadores quando o anfitrião não perdeu tempo antes de lançar a sua ferroada: «E hoje o assunto é... o colapso épico do juiz Howard Wynn na Universidade Americana... Ou talvez fosse melhor chamar-lhe Juiz Onde Diabo Estou?»
O público no estúdio riu à gargalhada enquanto o ecrã mostrava a imagem de Wynn a discursar na cerimónia de graduação da universidade. Fizera-o inúmeras vezes, proferindo mentiras piedosas sobre as promessas da geração seguinte. O excerto do vídeo mostrava o momento em que se debruçara no pódio, vestido com os mantos cerimoniais — que não passavam de mais uma toga negra insignificante. Um plano aproximado do seu rosto aparecia na imagem, com a boca transformada num esgar desdenhoso.
— A ciência é o maior embuste que o diabo já dirigiu aos homens! — anunciou, enquanto os recém-licenciados se contorciam, confrangidos, nas cadeiras de metal. O homem que agora via no ecrã levantou o dedo com uma expressão de fúria. — Ele deixou-nos acreditar que podíamos controlar o nosso destino, mas a única coisa que fizemos foi preparar o nosso fim. Quebrámos as leis da natureza para construir um altar dedicado aos trabalhos de Satanás. E temos de ser impedidos de continuar!
A imagem na televisão mudou e mostrou o rosto austero de Brandon Stokes, o Presidente dos Estados Unidos, que fitava estoicamente o juiz Wynn enquanto este continuava a sua diatribe. O Presidente comparecera à cerimónia de graduação da filha mais nova e concordara em partilhar o pódio com o jurista que adorava derrubar as suas iniciativas e eviscerar as leis assinadas pela sua administração. A animosidade entre os dois homens era motivo de grande debate na universidade — debate esse suspenso pela graduação inesperada de Zoe Stokes, alcançada através das equivalências dos estudos no estrangeiro. Uma vez que o juiz do Supremo Tribunal de Justiça já tinha aceitado o convite para estar presente, a universidade não conseguira encontrar uma forma graciosa de prescindir do seu discurso.
Wynn fitou a multidão com o rosto imobilizado numa expressão irascível. Na imagem seguinte, a presidente da universidade, claramente consciente do seu grave erro, aproximou-se do lado do pódio e estendeu a mão naquele gesto universalmente conhecido de «pronto, cãozinho bom, pronto». A sua voz soou fraca, mas perfeitamente audível para o operador de câmara.
— Juiz Wynn? Está a sentir-se bem?
Wynn virou-se de repente, deu uma palmada na mão estendida e com um tom desdenhoso respondeu:
— Claro que não. Estou a tentar avisar-vos sobre o apocalipse iminente e vocês querem que diga a estas crianças que o mundo está à sua espera. O que vos espera é a morte. Virá em busca de outros primeiro, mas o diabo vai colher o que lhe é devido.
Nesta altura, murmúrios desconfortáveis começaram a percorrer a multidão, a par de risos trocistas, e Wynn voltou-se novamente para trás.
— Podem rir-se à vontade, escumalha da sociedade. Mas ouçam bem o que vos digo: o inferno veio à terra e os vossos pais escolheram o seu descendente.
Posto isto, enfiou a mão no bolso e fitou furiosamente o Presidente Stokes; depois marchou na sua direção. Tirando a mão livre do bolso, o juiz Wynn parou frente a Stokes e estendeu-lhe a mão direita. O presidente levantou-se, confrangido, e aceitou o cumprimento. A seguir, o juiz murmurou-lhe qualquer coisa ao ouvido.
O vídeo mostrou o aperto de mão forçado antes de o juiz sair do palco, seguido pela presidente da universidade, notoriamente perturbada.
«Não sabemos exatamente o que o juiz Wynn murmurou ao ouvido do Presidente, mas provavelmente disse-lhe que não apoiará a sua reeleição», comentou inexpressivamente o apresentador, e o público aplaudiu com entusiasmo. «Chamam ao juiz Wynn “a Voz do Povo”, mas agora toda a gente está a questionar-se se é ele quem ouve vozes. É conhecido por andar de metro em DC, mas isto deixou-me a pensar se o próprio não irá viver para os túneis em breve. É assustador o facto de ter o voto decisivo em algumas das decisões que o tribunal vai tomar este mês. Mas o mais assustador é que provavelmente ele nem é o pior. Será que o vão convidar para apresentar o seu próprio reality show, Justiça Louca?» Seguiram-se mais gargalhadas, e Wynn desligou a televisão.
— Que homem engraçado — resmungou sozinho, fitando novamente a tempestade que rugia do outro lado da janela. — Thoreau tinha razão no que dizia a respeito da natureza versus o homem. A natureza ganha sempre.
Ao falar para o escritório vazio, a sua voz não transmitia qualquer veneno, apenas resignação. Wynn sabia que a natureza era uma adversária hábil. Enquanto um homem dormia pacificamente na cama, a natureza passava revista a todos os tecidos e células até aos cromossomas, tão discreta que era praticamente invisível. Com um gesto caprichoso podia ligar o temporizador da bomba que rebentaria com a vida do homem. Com o seu cérebro.
— Deixando-me assim, como uma sombra chorosa e diminuída de mim mesmo, para servir de alimento aos abutres que me rodeiam — reconheceu taciturno. Ninguém lhe respondeu. Ultimamente era demasiado frequente as suas conversas ficarem sem resposta.
Todos o abandonaram. Uma mulher morta, a outra fugida. O seu único filho desprezava-o.
E o tribunal não era muito melhor. Era uma corja de sicofantas e desprezíveis criaturas que conspiravam nas suas costas. Faziam de conta que se preocupavam com ele, mas Wynn descobrira uma forma de fazer o que era necessário, assim como os poucos a quem podia confiar as tarefas que tinha pela frente.
Levantou-se da poltrona com dificuldade e dirigiu-se à estante. Mudou os livros para a alcatifa. A tarefa revelou-se mais difícil do que previa. Com um olhar por cima do ombro, verificou que a porta continuava fechada.
— Não quero que a víbora manhosa se aproxime silenciosamente e me roube mais segredos — resmungou. Inseriu a combinação do cofre. A fechadura produziu um estalido suave e emitiu uma luz verde ao reconhecer o código. Ele puxou a maçaneta da porta.
No interior do cofre estava tudo como o tinha deixado. Porém, em breve havia de se esquecer do que ali guardara. Pior do que isso, acabaria por esquecer-se de que tinha um cofre e dos restantes esconderijos que espalhara naquela cidade devassa. Eram lugares que o podiam atraiçoar, recusando-se a ser encontrados. Assim seria o seu fatídico fim. De jurista brilhante a homem vazio atormentado por sombras, atraiçoado pela própria memória.
O tempo reduzira-se a nada. A dada altura, os seus inimigos haviam de tentar apressá-lo para a morte, mas ele estava na posse de um segredo. Entre o momento presente e o fim estendia-se um território virgem que só ele começara a mapear. Os inimigos tentariam segui-lo, mas fracassariam. Todos menos aqueles que conseguissem seguir o rasto de migalhas que Wynn ia deixar pelo caminho.
O Supremo Tribunal de Justiça dos Estados Unidos levava todos os anos a cabo as suas audições e emitia os respetivos editais como se fossem deuses do Olimpo. De acordo com a lei, começavam as deliberações na primeira segunda-feira de outubro, distribuindo o tempo entre os advogados e os biltres que estes representavam, implorando a indulgência de Wynn e dos seus colegas juristas. Contudo, o relógio dava as doze badaladas no fim de junho, fechando a porta ao salvamento ou à condenação. A tradição mandava que as decisões mais difíceis fossem tomadas nessas semanas finais do ano judicial que, ocasionalmente, se estendia até julho, coisa que nunca acontecera desde que estava no cargo. Não, 30 de junho era o seu dia-D, o seu Waterloo, o seu xeque-mate.
Fechou a porta do cofre com força e encostou-se pesadamente contra o metal frio, com a testa apoiada no braço levantado. E se ela não conseguisse acabar? Podiam ficar desmedidamente perdidos, como lhe acontecera a ele. Talvez se contasse à chefe o que tinha feito, o que descobrira, ela o pudesse ajudar. Mas se ela soubesse, sentir-se-ia impelida a pará-lo em nome da sua honra. A negar-lhe este último ato de penitência.
Uma parte de si reconhecia o argumento que lhe inundava o pensamento. Uma luta decisiva feroz da qual mal se recordava à medida que os dias iam passando. O neurologista avisara-o de que os sintomas ameaçavam agravar-se. Que as sombras na sua mente, outrora tão cristalina, iam ganhar presas e chifres. Que não tardaria a ver inimigos.
Não, recordou-se a si mesmo. Os inimigos eram reais e tinha de lutar contra eles. Porque se contasse a verdade, podiam não acreditar nele. Pior do que isso, podiam destruir a verdade. Tinha demasiados médicos à sua volta a perorar sobre a sua saúde em declínio, sobre paranoia, ansiedade e conspirações provocadas pela doença neurológica.
Era melhor assim, esperar para ver se os seus opositores aceitavam o Gambito do Rei. Um sacrifício inicial para fortalecer o resto do jogo. A Casa Branca achava-se supinamente inteligente querendo usar a traição do seu próprio corpo contra si. Enviando um espião para vigiar todos os seus movimentos e tentar descobrir o que ele sabia. O privilégio do Executivo contra o grande jurista Howard Wynn? Bah!
Inundado de adrenalina, Wynn voltou a pôr os livros no sítio, abriu a porta do escritório e regressou à poltrona. Estava decidido. Novamente. Iria jogar o jogo labiríntico que a lei exigia e no fim acabaria por ganhar. Eles não iam impedi-lo.
De repente, a ansiedade adensou-se, as suas garras afiadas a rasgar a razão nos pensamentos subitamente nublados. Wynn endireitou-se de supetão e sibilou para o escritório vazio:
— Vocês querem matar-me, não querem? Silenciar-me? — Esmurrou o ar com um punho zangado e trémulo. — Eu sei o que fizeram. Como nos mentiram! Em breve, vou prová-lo, e nem os vossos cães de guarda serão capazes de vos salvar!
— Juiz Wynn? Está a falar com quem? — A enfermeira apareceu à porta do escritório e franziu o sobrolho perante aquela explosão. — Está ao telefone?
As nuvens retrocederam e ele rosnou:
— Estou a conversar com a Natureza, mulher. É a companhia mais inteligente que alguma vez poderei encontrar nesta casa.
Sem se deixar convencer, a enfermeira, Jamie Lewis, entrou no escritório. Trazia um sorriso estampado no rosto.
— Está na hora da medicação e, depois, cama, juiz Wynn. Precisa de descansar. Hoje teve um dia muito longo e não quero que fique demasiado cansado para ir trabalhar amanhã. Tem uma grande semana pela frente.
Wynn deu uma palmada no braço da poltrona Chesterfield.
— Eu não sou uma maldita criança, enfermeira Lewis. Não preciso de ser convencido a ir para a cama como um menino impertinente que ainda usa fraldas. Tenho um lugar no Supremo Tribunal de Justiça.
— Sim, tem. — Jamie aproximou-se, fazendo os sapatos de sola de borracha deslizarem silenciosamente no chão de madeira. Só a saia de um tom amarelo-pálido produzia um suave ruído à medida que se aproximava dele, a arrulhar. — O senhor é um excelente advogado, juiz Wynn. Sabe Deus que, graças ao meu Thomas, já conheci advogados suficientes. — Soltou uma gargalhada fingida. — Talvez devesse ter casado com um médico em vez de um vendedor.
— Com um médico? São uns pulhas! — Desta vez, a palmada no braço do sofá ecoou durante um instante. — Uns charlatões malditos... que se recusam a fazer um trabalho honesto. Andam sempre a jogar golfe e a encontrar doenças que nunca desapareceram.
— Os médicos são importantes, senhor doutor. Tão importantes quanto os advogados, diria eu. Estão a mantê-lo aqui connosco, não estão?
— É que nem há termo de comparação — rosnou ele. — A jurisprudência é um dos últimos ofícios puros da criação ocidental, como os blues ou o jogo de vazas. Para mim, os médicos modernos são pouco mais capazes do que as sanguessugas e os caldeirões das bruxas. Têm oito anos de treino e, no fim, mal conseguem praticar o seu mister!
— Os advogados não praticam a lei?
— Quando nós tropeçamos, ninguém morre. — A mão de Wynn estremeceu, enquanto folheava com ar desafiador as páginas velhas de Fausto, e apercebeu-se de que tinha mentido. — Os médicos não são mais do que aves raras e condenados que cirandam pela terra, a contar mentiras às pessoas saudáveis e a reunir cadáveres para as suas experiências.
As sobrancelhas hirsutas, manchas gémeas de alabastro contra a pele bronzeada, movimentaram-se na testa com raiva.
— Por outro lado, esta nova safra de advogados que vagueia pelo tribunal não é muito melhor do que eles. Uma geração inteira desperdiçada por causa da putrefação dos seus pensamentos. Não há uma única mente incisiva entre eles. São um bando de ignorantes automatizados que preferem que lhes digam as respostas em vez de fazerem as próprias investigações. É difícil encontrar um que seja suficientemente esperto para me ir buscar um café, quanto mais...
— Pensei que gostava do senhor Brewer e da menina Keene — recordou-o Jamie, de pé ao seu lado. O discurso irritado de Wynn converteu-se num ataque de tosse e pouco depois começou a murmurar de forma indistinta. Para alimentar a conversa, ela acrescentou: — Ainda ontem me disse que a menina Keene era uma jovem estudiosa e inteligente que valia a pena manter debaixo de olho.
— Nunca disse semelhante coisa! — Endireitou-se numa postura belicosa e atirou: — Não me diga que afirmei coisas que nunca saíram da minha boca! Principalmente em relação a pessoas com as quais não está capaz de manter uma simples conversa, quanto mais discutir os seus méritos cerebrais relativos, enfermeira Lewis. — Pronunciou a profissão dela num tom desdenhoso e agarrou-lhe o braço, temendo desesperadamente ter, de facto, tecido o rasgado elogio a respeito de um dos seus secretários.
Ultimamente era muito frequente esquecer-se das coisas que dizia de um momento para o outro. Ou da tarde para a noite.
Wynn levantou os olhos e viu a enfermeira a olhar para ele, a avaliá-lo para ver se encontrava sinais de demência ou da morte que se aproximava. Tinha terminado a frase? Há quanto tempo estava em silêncio?
— Pare de olhar assim para mim! — exclamou com brusquidão enquanto apertava o seu braço musculado com mais força.
Jamie fez-lhe a vontade e desviou o olhar antes que ele pudesse constatar a sua preocupação. Os lapsos de Wynn surgiam com maior frequência. Um dia, o lapso iria ficar suspenso no tempo. Ela já o vira a acontecer antes. O nome da doença era síndrome de Boursin, e conseguia identificar a sua progressão nos olhos aflitos do juiz Wynn.
— Estávamos a falar de quê, senhor doutor? — perguntou suavemente.
— Porquê? Para poder denunciar-me ao presidente ou ao imbecil que a mandou vigiar-me? — Resfolegou com ar desdenhoso. — Fui longe demais na cerimónia de graduação? Mandaram-na matar-me?
A enfermeira empalideceu.
— Juiz Wynn?
— É óbvio que está a espiar-me — disse-lhe ele bruscamente. —Posso estar paranoico e a morrer, mas não sou estúpido.
— Acredita que eu seria capaz de o matar?
— Não de uma forma ousada e direta. Você limita-se a registar as suas observações e a transmiti-las, violando os meus privilégios médicos, para que possam construir o vosso caso contra mim.
— Senhor...
— Calculo que a obriguem a relatar a minha morte iminente com regularidade. Provavelmente, mandam-na ler os meus artigos durante a noite, tirar fotografias para eles saberem o que ando a fazer. Aposto que adorariam que me filmasse, mas a sua vigilância não logra penetrar nos meus aposentos. O invasor da Casa Branca tem medo de que eu esmague os seus sonhos, por isso mandaram-na para cá para me controlar. O meu discurso de hoje deve tê-lo deixado a maldizer a minha existência.
Os olhos de Jamie arregalaram-se.
— Não faço ideia do que...
— Não me minta! — rosnou ele. — Por amor de Deus, seja o último exemplar de honestidade que resta nesta casa. — Um acesso de tosse deixou-o aflito, e Wynn baixou a cabeça enquanto os pulmões se esforçavam por encontrar ar. — Como é que conseguiram conquistá-la? Foi um suborno ou uma ameaça? Usaram o seu marido?
O rubor do rosto de Jamie deu lugar à palidez, e a enfermeira deixou tombar um pouco a cabeça.
— O Thomas está novamente em sarilhos. Estão a pensar prendê-lo por causa de uma fraude qualquer. Ele jura que não fez nada — murmurou ela. — Não tive escolha.
— Teve escolha, sim, enfermeira Lewis — corrigiu ele com sobriedade. — Limitou-se a escolher os vivos em detrimento dos mortos.
— Eles querem saber se o senhor está em condições de desempenhar as suas funções. Se ainda tem capacidade para agir. A birra na cerimónia de graduação não ajudou muito.
— Aquilo não foi birra nenhuma, sua idiota! Foi estratégia. Tudo parte de uma estratégia. A jogada de abertura do Gambito do Rei! Cada inspiração é uma jogada em direção à fase final do jogo. — Wynn arregalou os olhos e abanou o punho. — Contou-lhes sobre a minha investigação? Que sei o que aconteceu?
Genuinamente confusa, Jamie franziu o sobrolho. — Investigação? Para o tribunal?
— Claro que é para o tribunal! Por que outro motivo a mandariam para aqui? Eu sou uma ameaça para a segurança nacional, mas eles não o podem provar sem admitir o que fizeram. Por isso, o invasor da Casa Branca envia os seus pombos-correio para me espiarem como um falcão. Eu conheço o segredo deles!
— Juiz Wynn, o que diz não faz sentido. Sente-se, por favor.
— Não me vou sentar nem serei silenciado! — O grito raiava a histeria. Pensou novamente no filho que se afastara. — Eles não podem matar o meu filho com as suas mentiras!
— Ninguém está a tentar matar o Jared — acalmou-o Jamie, acariciando as costas tensas do juiz com a mão. — Por favor, senhor doutor, acalme-se.
— É o dilema do prisioneiro — murmurou ele com a voz trémula. — A vida do meu filho pela sua derrota. Mas eu fui mais esperto do que eles. Lasker-Bauer. Jamais suspeitarão.
— Lask Bauer? Quem é esse?
— Não é uma pessoa, sua ignorante. A meio do jogo, ambos os bispos morrem para o salvar. Para salvaguardar a jogada final.
— Quem são os bispos? — Jamie franziu o sobrolho, confusa, e segurou-lhe no ombro. — Juiz Wynn, quem sou eu?
— Deixe-me em paz!
Jamie aproximou-se um pouco mais e insistiu.
— Quem sou eu?
Os olhos do juiz fixaram-se nos dela, a mente a clarear. Rosnou.
— É alguém em quem não posso confiar. Já não posso confiar em ninguém.
— Estou aqui para o ajudar.
— Mentirosa. Está a dizer-me que sou louco. Que estou doente. Eu ainda sou muito forte, minha senhora. Mais forte do que ele. — Mesmo assim, a agitação provocava-lhe um nó no estômago. Se a chamada chegasse no dia certo, num dia em que se tivesse esquecido do seu plano, podia aceitar as exigências deles e arruinar tudo o que construíra com tanto cuidado.
Ainda não. Por Deus, ainda não. Obrigando o pensamento novamente ágil a concentrar-se, o juiz Wynn voltou a apanhar o fio à meada da conversa com a enfermeira Lewis.
— Pare de olhar assim para mim.
— Estávamos a falar de quê?
— Antes de admitir a sua perfídia, discutíamos a capacidade intelectual dos meus funcionários judiciais, e eu fiz referência a uma estratégia que a senhora não compreende. E, para que fique registado, a menina Keene não é melhor nem pior do que o resto. A única coisa que a distingue é a centelha de potencial que ela tenta esconder. De resto, é tão inteligente quanto se pode esperar de alguém que teve professores absolutamente medianos.
Jamie fechou os dedos firmes e robustos em redor do braço do juiz Wynn e conduziu-o para a porta aberta.
— Pensei que ela tinha estudado em Yale. Não é uma boa faculdade?
— É uma latrina, como Harvard, Stanford ou qualquer outro bastião da educação nestes tempos apocalípticos. Um mar de pensamento desajeitado disfarçado de educação legal. — O juiz tropeçou e agarrou-se à parede do corredor. — Não admira que os advogados desejem uma criação rígida da Constituição. Caramba, assim, já está tudo escrito, menos um desafio às suas mentes débeis.
Junto à escada, Jamie conduziu-o para a esquerda. Wynn parou por baixo de uma fotografia emoldurada que mostrava a vista parcial de um glaciar, o azul vibrante e grandioso. Recordando a conversa anterior, abanou a cabeça.
— Conhecer a lei não tem nada que ver com a faculdade onde se estuda. Tem que ver com a mente, com o coração. É necessário entender tanto o que a lei postula como o que se pode ler nas entrelinhas. É saber como encontrar o caminho de cada um de nós até à verdade. — A sua respiração aprofundou-se e apoiou mais do peso no corpo robusto de Jamie, confiante de que ela o ampararia.
Levantou os olhos, fitando-a intensamente.
— Gosta da Avery? — perguntou.
Jamie assentiu com hesitação.
— Ela é impressionante. Exprime-se muito bem.
— É só o que tem a dizer a seu respeito?
Com um encolher de ombros, Jamie continuou:
— Bem, se quer a minha opinião, ela tem uma certa atitude, uma impertinência. É dura. Não é como o encantador senhor Brewer. Ele vai longe, dá para perceber.
— O Brewer vai construir impérios superficiais — resfolegou Wynn. — Mas a Avery Keene é uma rapariga inteligente. Muito inteligente. Está um tudo-nada preocupada em provar o seu valor, mas tem uma mente que de vez em quando põe a uso. E se fosse uma pensadora um pouco mais precisa, seria brilhante.
— Mais precisa?
— Precisa, enfermeira. Uma condição de que a senhora ainda não padece. — Obrigando-se a endireitar as costas, libertou a mão. — Não sou um inválido. Posso perfeitamente ir para a cama sozinho. Vá lá buscar aqueles comprimidos de veneno que eles a mandaram impingir-me.
— Sim, senhor doutor juiz. — Abriu a porta do quarto e esperou enquanto ele entrava. — Porque não veste o pijama? Já lhe trago a sua medicação em dois batidos.
— Não seja condescendente comigo. Estou a morrer, mas não estou senil. Consigo identificar as ténues tentativas paternalistas ainda antes de lhe saírem dos lábios.
— Pus o pijama preto em cima da cama. Precisa de ajuda?
— Só se for ajuda no que toca a arranjar uma substituta para si. — Wynn fitou furiosamente o vulto de Jamie à medida que esta se afastava. — Traga-me um maldito uísque com os meus comprimidos letais.
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As onze da noite chegaram antes de a enfermeira particular regressar ao quarto e encontrar os olhos vazios e fixos, sentir a pulsação que se arrastava nas veias comprimidas pela doença. Ajoelhou-se ao lado dele e estremeceu quando sentiu qualquer coisa a enterrar-se na sua carne. Afastando o joelho, alcançou o candeeiro com a mão e o objeto estranho com a outra. Os dedos fecharam-se em redor de um frasco de comprimidos caído na alcatifa. Ao levantá-lo à luz, viu a risca colorida que ela própria tinha desenhado e arquejou. Levou a mão debaixo da cama, procurando freneticamente o frasco que sabia que ia encontrar.
O frasco de plástico bateu na sua mão. Depois de o puxar, a etiqueta confirmou os seus piores receios. O juiz tinha tomado os comprimidos para as convulsões que de vez em quando lhe sacudiam os membros. Tomada isoladamente, a medicação era perigosa, mas quando combinada com outros medicamentos e álcool, a dose podia ser letal. Jamie tateou debaixo da cama e apanhou os comprimidos que tinham caído, mas só quando consultasse as tabelas saberia quantos faltavam.
Porém, as provas eram claras. O juiz Wynn tentara matar-se.
Uma sensação de culpa comprimiu-lhe a garganta, obrigando-a a olhar para o homem que aprendera a respeitar, para não dizer gostar, não obstante o seu temperamento impetuoso. A promessa de liberdade e estabilidade para o seu marido, Thomas, providenciada pelo governo americano, tinha-lhe parecia uma justificação adequada para traição quando aceitara aquele trabalho e as subsequentes instruções. Devia tornar-se cuidadora de um poderoso homem idoso, mas doente, cuja doença estava a transformá-lo paulatinamente num risco para a segurança nacional. Devia monitorizar as coisas que ele escrevia, fazer um relatório semanal do seu estado e agir quando recebesse instruções. Aceitara, mas isso fora antes de conhecer Howard Wynn.
As suas mãos agarraram no telemóvel descartável com força.
Tinha gravado na memória o número que devia marcar quando obtivesse a confirmação de que a morte estava próxima. Era uma chamada que, depois de feita, garantiria que ele não voltaria a acordar. Jamie hesitou, não querendo ser ela a atraiçoá-lo, como ele suspeitava, mas disse para si mesma que o mal estava feito. Era demasiado tarde para voltar atrás no acordo. Mas antes devia verificar, para ter a certeza.
Pressionando o estetoscópio contra os pulmões dele, ouviu o som da respiração esforçada. O aparelho de plástico em redor do braço pesadão indicava que a pressão sanguínea estava baixa. Ligou a caneta luminosa com um cuidado ensaiado. A reação à luz era mínima. Jamie percorreu brevemente todos os testes que confirmariam a morte iminente do juiz.
As palavras murmuradas apanharam-na de surpresa.
— A Avery tem de o acabar. Por ele.
Os instrumentos caíram na alcatifa, e Jamie voltou a ajoelhar-se, desta vez em choque.
— Juiz Wynn?
Uma mão débil levantou-se e agarrou-lhe na manga.
— Não estou morto. Mas pode tentar matar-me.
— Eu não quis que... — Os seus dedos fecharam-se sobre os dedos frios e trémulos dele. — O senhor tomou os comprimidos...
— Não há tempo para desculpas. — Um acesso de tosse seca sacudiu-o. — A Avery tem de nos salvar. Prometa-me!
— Deixe-me chamar a ambulância — murmurou ela, agitada. — Lamento imenso!
— É demasiado tarde para desculpas. — A respiração tornou-se mais difícil e os olhos tremeluziram. — Prometa-me. Vai entregar-lhe a mensagem. Pelo sim, pelo não. Prometa-me.
Demasiado chocada para objetar, Jamie respondeu.
— Prometo.
— Diga-lhe... que procure as respostas a Leste. Observe o rio. No meio. Procure no quadrado. Lasker. Bauer. Perdoe-me.
— Juiz Wynn? Não compreendo. — Jamie debruçou-se freneticamente sobre ele. — Quem é o senhor Bauer?
— Diga à Avery. Leste. Rio. — O juiz Wynn respirou com dificuldade e engasgou-se com uma golfada de ar. — No meio. Quadrado. Perdoe-me.
Jamie sacudiu-lhe os ombros, procurando acordá-lo mais uma vez, para tentar encontrar um sentido nas frases que ouvira. Mas as íris dos seus olhos fitavam a luz tépida inexpressivamente, sem reagir. Voltou a colocar a mão dele na cama.
— Não. Não — murmurou em voz alta. — Eles não me vão obrigar a matá-lo. — Levantou o telefone da mesa de cabeceira e carregou na tecla de marcação rápida para este tipo de situações.
— U.S. Marshals. Qual é a sua emergência?
— O juiz Howard Wynn está inconsciente. Precisa de cuidados médicos imediatos.
— Identifique-se.
— Enfermeira Jamie Lewis — respondeu lapidarmente. — Envie já uma ambulância. Ele está a morrer.
— Por favor, fique em linha.
Quando teve a certeza de que a ambulância vinha a caminho, pegou no outro telefone e marcou o número do homem que nunca conhecera. Esperou poucos segundos até que a ligação se estabelecesse.
— Está feito?
— Acho que ele tomou uma overdose.
— Propositadamente?
— Talvez. — Hesitou. — O pulso está fraco e tem breves períodos de consciência. A morte é iminente.
— Não faça nada. Chego dentro de vinte minutos.
Jamie fechou os olhos com força.
— Não posso.
— Não pode o quê?
— Não posso não fazer nada. Não é correto.
Um longo silêncio, e depois:
— Saia de casa, enfermeira Lewis. Imediatamente.
— Já disse que não posso. A ambulância está a caminho — confessou Jamie. — Não tive escolha.
— Esta é uma questão de segurança nacional. Recebeu instruções para não contactar mais ninguém além de mim. Para não tentar qualquer ato heroico no sentido de prolongar a vida do juiz. Não entendeu as suas instruções?
— Entendi. Mas tinha de o ajudar. Ele precisa de um médico.
A admissão da antiga enfermeira do Exército confirmou ao homem em linha que a sua utilidade estava próxima do fim.
— Entendido.
Sem se deixar perturbar pela resposta, Jamie perguntou:
— O que acontece agora?
— Leve-o para o hospital e depois fica dispensada do seu dever. Amanhã receberá o pagamento. — A chamada foi desligada.
Jamie fitou o telefone. Estava livre? Uma sensação de alívio trepou por si acima e os joelhos cederam sob o peso do corpo. Deixou-se cair sobre a cama, a anca encostada à mão inerte que ainda há poucos minutos a agarrara.
Um homem moribundo fizera-lhe um pedido. Um último pedido. O seu olhar recaiu sobre o juiz Wynn, um homem que servira bem o seu país. A única coisa que ele lhe pedira nos derradeiros momentos de lucidez fora que Jamie entregasse uma mensagem. A Avery tem de nos salvar.
Alisando as rugas do uniforme, Jamie voltou a marcar um número no telemóvel. Perdida por cem...
Desta vez, era um número que decorara após passar meses no escritório dele. Os toques deram lugar a uma saudação breve; seguiu-se um apito. Jamie repetiu a mensagem que o juiz moribundo lhe transmitira. Falou rapidamente, com os olhos fixos nos dele. Depois terminou e disse:
— Avery, as suas últimas palavras foram: Perdoe-me.
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