I — FAÍSCAS
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1943 — Beauvoir está animada, Weil em transe, Rand fora de si e Arendt num pesadelo
O PROJETO
«De que serve começar se depois temos de parar?»1 Nada mal para começar. Era precisamente esse o tema do ensaio: a tensão entre a finitude da própria existência e a manifesta infinitude deste mundo. Em última instância, este era um abismo que, após breve reflexão, ameaçava reduzir ao absurdo todos os planos, todas as tentativas, todos os objetivos a que cada pessoa se propunha, fossem estes os de conquistar o mundo inteiro ou o de cuidar do jardim em frente de casa.2 Num caso e noutro, o desfecho é o mesmo. A obra criada seria um dia destruída, se não por alguém, pelo próprio tempo, e cairia para sempre no esquecimento. Como se nunca tivesse existido. Um destino tão certo como a própria morte.
E, assim, para quê fazer alguma coisa em vez de nada? Ou, melhor dizendo, sob a forma de uma tríade clássica de perguntas: «Qual é então a medida de um homem? Que objetivos pode ele propor-se, e que esperanças lhe são permitidas?»3 Sim, era isso mesmo. Ei-la, a estrutura que procurava!
Da sua mesa no canto no segundo piso do Café Flore, Simone de Beauvoir observava os transeuntes. Passavam por ela. Os outros. Cada um e cada uma com a sua própria consciência. Caminhavam com os seus medos e preocupações muito próprios, os seus planos e esperanças. Exatamente como ela também, um indivíduo entre milhares de milhões. Um pensamento que nunca deixava de lhe causar um calafrio.
Beauvoir não aceitara de ânimo leve. E a sua relutância devia-se desde logo ao tema que o editor lhe propusera. Jean Grenier queria um texto sobre «o existencialismo» para uma antologia dedicada às principais correntes intelectuais da época.4 Nem ela nem Sartre tinham até então reivindicado este conceito. Tratava-se de uma invenção recente dos suplementos dos jornais, nada mais.
O tema proposto não podia ser mais irónico. Pois, se algum Leitmotiv determinara o seu caminho e o de Sartre nos dez anos anteriores, fora a recusa terminante em aceitar rótulos que outros criavam para eles. Esta espécie de revolta fora precisamente o cerne do projeto de ambos — até àquele dia.
A FORÇA DA IDADE
Os outros que lhe chamassem «existencialismo». Ela evitaria conscientemente este termo. E, em vez de se ocupar dele, faria enquanto autora o que mais gostava de fazer desde as primeiras entradas nos seus diários de juventude: concentrar-se o mais possível nas questões da sua vida que a preocupavam — e cujas respostas não conhecia. Estranha- mente, eram ainda as mesmas questões. À cabeça, a questão do possível sentido da sua própria existência. Bem como a de saber quão importantes eram as outras pessoas para a sua vida.
Em todo o caso, Beauvoir nunca se sentira tão segura e livre nestas reflexões quanto agora, na primavera do ano de 1943. No auge de mais uma guerra mundial. No centro da sua cidade ocupada. A despeito das senhas de racionamento e da escassez de bens, da privação crónica de café e tabaco (Sartre andava tão desesperado que todas as manhãs se agachava no chão do Flore à procura de beatas da noite anterior), a despeito da importunação dos controlos diários e do recolher obrigatório, da censura omnipresente e dos soldados alemães que mesmo aqui, em Montparnasse, entravam nos cafés de rompante e com cada vez maior descaramento. Enquanto tivesse tempo e sossego para escrever, tudo o resto se toleraria.
No outono, a Gallimard publicaria o seu primeiro romance.5 Um segundo estava já pronto na gaveta.6 Uma peça de teatro também estava bem encaminhada.7 Agora, deveria seguir-se o primeiro ensaio filosófico. A obra de mil páginas de Sartre, O Ser e o Nada, aguardava igualmente impressão por parte da editora. E, dentro de um mês, o seu drama As Moscas, a sua peça mais política até então, estrear-se-ia no Théâtre de la Cité.
Em boa verdade, tudo isto era a colheita intelectual de uma década inteira de trabalho, ao longo da qual ela e Sartre haviam criado de facto um novo estilo de fazer filosofia. Bem como — pois uma faceta era inseparável da outra — novas maneiras de guiar a própria vida: privada, profissional, literária e erótica.
Eram ainda estudantes de filosofia na École Normal Supérieure — Sartre convidara-a para sua casa para que Beauvoir lhe explicasse Leibniz —, quando firmaram ambos um pacto amoroso singular: prometeram honestidade intelectual e lealdade incondicionais e, ao mesmo tempo, uma total abertura para outras relações. Seriam absolutamente necessários um para o outro e contingentes para terceiros. Uma díade dinâmica na qual o mundo inteiro se espelharia de acordo com a vontade de ambos. Este desígnio conduzira-os sempre a novos começos e aventuras: de Paris a Berlim e Atenas; de Husserl a Heidegger, passando por Hegel; de tratados sobre romances a peças de teatro. Da nicotina às anfetaminas, passando pela mescalina. Da «pequena russa» ao «pequeno Bost» e à «pequenina russa». De Nizan a Merleau-Ponty e a Camus. E conduzia-os ainda, na verdade com mais firmeza e determinação do que nunca («Viver um amor significa lançarmo-nos através dele a novos objetivos»).8
Cumpriam a sua carga horária semanal (no máximo 16 horas) como professores de filosofia pouco empenhados. Em vez de se aterem ao programa, deixavam que os alunos, após uma breve apresentação, discutissem livremente — sempre um êxito. Chegava para pagar as contas.Ou parte delas. Afinal, não eram responsáveis pelo seu sustento apenas, mas também pelo de uma grande parte da sua «família». Mesmo depois de cinco anos em Paris, a carreira de atriz de Olga ainda não arrancara. O pequeno Bost, jornalista independente, mal conseguia chegar ao fim do mês, e Wanda, a irmã mais nova de Olga, continuava a procurar desesperadamente qualquer ocupação com a qual realmente se identificasse. Apenas Natalie Sorokin, o mais recente membro da família, podia contar com os seus próprios recursos: especializara-se logo no início da guerra em roubar bicicletas que vendia em cada vez maiores números no mercado negro — com a evidente aquiescência dos nazis.
A SITUAÇÃO
As experiências da guerra e da ocupação tinham-nos aproximado ainda mais. Nos meses anteriores, a sua vida em comum atingira o equilíbrio ideal, ou assim parecia a Beauvoir, a verdadeira cabeça de casal. Cada um usufruía do seu papel sem se ver reduzido a ele. Cada um conhecia os seus direitos e deveres sem insistir neles rigidamente. Cada um era feliz por si, mas juntos também não se aborreciam.
E por esta razão a leitura iminente da sentença inquietava-a, não apenas pensando em si própria. Havia mais de um ano que os esbirros de Vichy a investigavam. A mãe de Sorokin descobrira por acaso numa gaveta a correspondência íntima entre a filha e a sua antiga professora de filosofia. Investigara o caso e dirigira-se às autoridades com o material resultante. O modus operandi, segundo a denúncia, era sempre o mesmo: primeiro, Beauvoir tornava-se, em privado, amiga das alunas, presentes e antigas, que a admiravam, seduzia-as sexualmente e, algum tempo depois, encaminhava-as para o companheiro, o filósofo e literato Jean-Paul Sartre. No centro das investigações estava assim o «incitamento a comportamentos dissolutos»9, cujas consequências, no caso de uma eventual condenação, não se ficariam pela perda da licença de professora.
Sorokin, Bost e Sartre não tinham dito palavra quando foram convocados. Além das cartas mencionadas a Sorokin, que em última análise não eram incriminadoras, não havia provas diretas. Em contrapartida, não faltavam indícios que transmitissem aos esbirros do regime de Pétain de que lado do espectro político Beauvoir se encontrava enquanto professora — um lado que ela defendia com a própria vida.
Havia anos que viviam juntos em hotéis de Montparnasse, em vez de num apartamento. Aí, riam e dançavam, cozinhavam e bebiam, discutiam e dormiam uns com os outros. Sem pressões exteriores. Sem regras finais. E acima de tudo — na medida do possível — sem falsas promessas e renúncias. Um simples olhar, um toque ocasional, uma noite passada em branco — não poderiam ser a faísca que atearia o fogo de uma vida uma vez mais renovada? Queriam acreditar que sim. Com efeito, para Beauvoir e para Sartre, o ser humano só era ele próprio enquanto principiante.
Nunca chegamos a lado nenhum. Só há pontos de partida. A humanidade tem um novo ponto de partida em cada homem. E é por isso que o jovem que procura o seu lugar no mundo de início não o encontra e se sente desamparado, inútil, sem justificação.10
Esta era também uma maneira de explicar por que razão tinham tomado Olga, Wanda, o pequeno Bost e Sorokin como protegidos, levando-os da província para a sua casa em Paris, onde os apoiaram, encorajaram e financiaram. Para conduzir estes jovens do seu evidente desamparo em direção à liberdade. Para os encorajar a criar o seu próprio lugar no mundo, em vez de ocuparem um lugar preexistente. Tratava-se de um ato de amor, não de submissão, de Eros vivo, não de deboche cego. Um ato de preservação da humanidade. Pois «o homem só é quando se escolhe; se recusar escolher, aniquilar-se-á».11
PECADOS MORTAIS
Se, nesta sua nova filosofia, alguma coisa podia ocupar o espaço do «pecado», que ficara livre após a morte de Deus, era precisamente a recusa voluntária desta liberdade. Urgia evitar a todo o custo esta aniquilação autoinfligida. Tanto pessoalmente como para terceiros. Tanto privada como politicamente. E isso aqui e agora, em nome e em celebração da própria vida. E não em nome de um «ser para a morte», como parecia ensinar Martin Heidegger, o putativo «existencialista» alemão da província. «O ser humano existe sob a forma de projetos, que não são projetos dirigidos à morte, mas projetos dirigidos a fins singulares. […] Um para a morte não existe, portanto.»12
A única existência que contava era a existência neste mundo. Os únicos valores fundamentais eram os terrenos. A sua origem verdadeiramente fundamental era a vontade de um sujeito livre de conquistar a sua liberdade. Era isso que realmente significava existir enquanto pessoa.
O alvo de Hitler e dos seus sequazes era justamente esta forma de existir, que queriam aniquilar e extinguir. Quando haviam atacado o país de Beauvoir três anos antes, o seu objetivo fora esse: ditar e impor à última pessoa que restasse na Terra após a vitória final como deveria escrever o seu ensaio ou cultivar o seu jardim.
Não, realmente ela tinha coisas mais importantes a fazer do que se preocupar com a sentença daqueles burgueses fascistas. Eles que lhe tirassem a licença de professora! Ela saberia recriar-se pelos seus próprios meios! Sobretudo agora que tantas portas pareciam abrir-se ao mesmo tempo.
A MORAL
A expectativa de futuras discussões entusiasmava Beauvoir. Nessa noite, decorria o ensaio geral da última peça de Sartre. De seguida, como sempre, esperava-os a boémia. Camus anunciara que estaria presente. O curso dos seus pensamentos levava-a a considerar a possibilidade de uma nova definição do ser humano como agente. Uma definição, em particular, que não era em última instância desprovida de conteúdo, como a de Sartre, nem seria sempre necessariamente absurda, como a de Camus. Com o seu ensaio, tentaria mostrar uma outra alternativa. Um terceiro caminho — o seu próprio caminho.
Tanto quanto conseguia discernir, a medida da ação genuinamente humana era exteriormente delimitada por dois extremos: de um lado, o extremo da imposição totalitária; do outro, o extremo da abnegação absoluta e associal. Em termos concretos, encontrava-se assim entre o objetivo necessariamente solitário de conquistar o mundo inteiro e o fim igualmente solitário de cultivar o próprio jardim. Afinal, existiam mais pessoas para lá de nós próprios, bastava olhar pela janela para as ver. Portanto, assentando nesta base, também os objetivos do empenho moral tinham de ser balizados por dois extremos apenas: o extremo da compaixão por todas as pessoas em sofrimento — uma compaixão esvaziada de ego e necessariamente sem objeto; e a preocupação exclusiva pelos interesses puramente privados. Como cenário da vida real: «Uma jovem mulher irrita-se porque tem buracos nos sapatos que deixam entrar água. […] Entretanto, eis uma outra mulher que chora o horror da fome na China.»13
Beauvoir vivera esta mesma situação em tempos. A jovem mulher com buracos nos sapatos era ela (melhor dizendo, uma versão anterior dela). Já a outra mulher que chorava era a sua antiga colega de faculdade Simone Weil. Nunca voltara a cruzar-se com alguém que irrompesse espontaneamente em pranto ao inteirar-se de uma catástrofe a uma distância remota, que parecia não ter nada que ver com a sua vida. Esta outra Simone continuava a ser um mistério na sua vida.
Beauvoir deteve-se, olhou para o relógio. Eram horas. Amanhã cedo, regressaria ao Café Flore para meditar sobre o seu enigma outra vez do início.
A MISSÃO
No começo do ano de 1943, muito à semelhança de Simone de Beauvoir, Simone Weil está firmemente decidida a encetar caminhos radicalmente novos. A gravidade da situação não lhe deixa outra alternativa. Com efeito, a francesa de 34 anos nunca estivera mais certa do que nesta primavera de que enfrentava um inimigo que justificava os maiores sacrifícios. Para uma pessoa profundamente permeada pela religião como Weil, esses sacrifícios não consistiam em dar a própria vida, mas em assumir uma outra.
«Se estou pronta», anota ela no caderno desta primavera, «em caso de necessidade estratégica, a matar alemães, não é por ter sofrido por sua causa. Não é por eles odiarem Deus e Cristo. É por serem os inimigos de todas as nações da Terra, incluindo da minha, e é porque, infelizmente, com grande sofrimento meu, com grande pesar meu, não se pode impedi-los de fazer o mal a não ser matando alguns deles.»14
Em Nova Iorque, onde se encontrava depois de ter acompanhado a fuga dos pais para o exílio, subiu a bordo de um cargueiro no final de outubro de 1942, destinado a Liverpool, para se juntar em Inglaterra às forças da França Livre dirigidas pelo General Charles de Gaulle.15 Nestas semanas e meses decisivos para o desfecho da guerra, nada é para Weil mais doloroso do que se encontrar longe da sua pátria, longe do seu povo. Por esta razão, assim que chega ao quartel-general em Londres, informa os responsáveis do seu desejo ardente de receber uma missão em solo francês, para aí, se necessário, morrer como mártir pela pátria. Como para-quedista, por exemplo — afinal, estudara aturadamente os manuais relevantes. Ou como agente de ligação com os camaradas no local, alguns dos quais ela conhecia pessoalmente, pois nos anos anteriores participara ativamente no grupo católico de resistência das Testemunhas Cristãs em Marselha. Mas de preferência como responsável por uma missão especial, concebida por ela própria, e que poderia, na sua inabalável opinião, ser decisiva para o desfecho da guerra. O plano de Weil consiste na formação de uma liga especial de enfermeiras que seriam destacadas exclusivamente para os lugares mais perigosos da frente, para aí prestarem primeiros-socorros diretamente no campo de batalha. Ela dispunha já dos conhecimentos médicos necessários graças aos cursos da Cruz Vermelha de Nova Iorque. Este comando especial poderia salvar muitas vidas valiosas na linha da frente, declara Weil aos membros da direção, e, para sustentar o seu parecer, apresenta-lhes uma lista de publicações especializadas sobre cirurgia.
Porém, o verdadeiro valor do comando residiria na sua força simbólica, no seu valor espiritual. Como todas as guerras — prossegue ela inspiradamente —, também esta é antes de mais uma guerra de valores do espírito — e, logo, de talento para a propaganda. Contudo, neste domínio em particular, o inimigo revelava-se malignamente superior às forças da resistência. Bastava pensar nas SS de Hitler e na fama que as precedia por toda a Europa:
«Os agentes das SS expressam na perfeição o espírito de Hitler. Na frente, gozam do heroísmo da brutalidade. […] Nós, porém, podemos e devemos demonstrar que possuímos um outro tipo de coragem. A deles, é brutal e baixa, nasce da vontade do poder e da destruição. Mas nós temos outros fins, e por isso a nossa coragem nasce de um espírito inteiramente diferente. Nenhum outro símbolo poderá expressar melhor o nosso espírito do que esta liga de mulheres aqui proposta. A simples perseverança de certos serviços humanitários em plena batalha, no ponto culminante da barbárie, seria um estrondoso desafio lançado a esta barbárie que o inimigo decidiu seguir e à qual também nos obriga. O desafio seria tanto mais flagrante quanto estes serviços humanitários fossem prestados por mulheres, envolvidos numa dedicação maternal. É certo que as mulheres seriam poucas e que o número de soldados de que cuidariam seria relativamente pequeno, mas a eficácia moral de um símbolo não se mede pela quantidade. […] Esta seria a mais contundente representação dos dois rumos entre os quais a humanidade tem hoje de escolher.»16 Uma vez mais na história do país, era necessário, segundo Weil, opor salvificamente ao espírito da idolatria uma forma autêntica de fé. Em suma, a sua intenção era a de criar uma espécie de anti-SS femininas no espírito da donzela de Orleães: o plano já estava detalhado por escrito. Quando Simone Weil o entrega pessoalmente a Maurice Schumann, este promete à sua antiga colega de faculdade que o encaminhará a de Gaulle, para que este se pronuncie. E acompanha-a ao quartel, onde está alojada.
Como Schumann esperava, de Gaulle não precisa de mais de três segundos para formar uma opinião definitiva sobre o «comando das enfermeiras». «Mas ela é louca!»17 Razão pela qual se decide também que, no caso de Weil, está absolutamente excluída qualquer hipótese de uma missão em solo francês. Seria demasiado perigoso. Bastava olhar para ela. Só pele e osso, praticamente cega sem os óculos. Fisicamente, nunca estaria à altura dos obstáculos. Psicologicamente, nem valia a pena falar.
A despeito da excentricidade da proposta, Schumann frisa que Weil é uma pessoa de grande integridade e, acima de tudo, intelectualmente única: tem um curso de filosofia da École Normale Supérieure, uma universidade de elite, é uma poliglota que fala fluentemente várias línguas, tem um grande talento matemático e uma experiência de anos no jornalismo e no sindicalismo. Seria bom que aproveitassem estas qualidades.
Assim, em vez de ser destacada para a frente, onde poderia morrer pelos seus ideais, Weil recebe dos seus superiores uma missão especial inteiramente diferente: cabe-lhe esboçar planos e cenários para a reconstrução política de França na fase posterior à vitória sobre Hitler e à tomada do poder por parte do governo no exílio.
Profundamente desiludida, mas sem protestar abertamente, Weil aceita a missão, isola-se num quarto de hotel na Hill Street 19 convertido em escritório expressamente para ela — e lança-se ao trabalho de pensar.
INSPIRADA
Na história da humanidade, terá havido poucos indivíduos mais intelectualmente criativos, no lapso de escassos quatro meses, do que Simone Weil, a filósofa que lutava pela Resistência, nesse inverno de 1943 em Londres: ela escreve tratados sobre doutrina constitucional e teoria da revolução, sobre um reordenamento político da Europa, uma investigação das raízes epistemológicas do marxismo, sobre a função dos partidos numa democracia. Traduz partes dos Upanixades do sânscrito para o francês, redige ensaios sobre a história da religião na Grécia e na Índia, sobre a teoria dos sacramentos e o caráter sagrado da pessoa no cristianismo e ainda expõe, nas 300 páginas da obra O Enraizamento18, uma nova visão da existência cultural do ser humano na modernidade.
Como o «plano para uma liga de enfermeiras na frente» deixa adivinhar, era no domínio do ideal e da inspiração que urgia agir, segundo Weil. Na sua análise, os valores e ideais culturais e políticos da Europa — continente que estava na origem de duas guerras mundiais em apenas duas décadas — sofriam uma devastadora erosão havia já bastante tempo. Na verdade, em fevereiro informa os líderes da Resistência francesa, num documento com o mesmo título, que esta guerra é «uma guerra de religiões».19
A Europa permanece no centro do drama. Do fogo que Cristo lançou sobre a terra e que era talvez o fogo de Prometeu, sobraram algumas brasas candentes em Inglaterra. O que evitou o pior… Se destas brasas e faúlhas que brilham no continente não nascer uma chama que alumie a Europa, estamos perdidos. Se só o dinheiro e as fábricas americanas nos libertarem, voltaremos a cair de uma maneira ou de outra numa servidão semelhante à presente. Não esqueçamos que a Europa não foi subjugada por hordas vindas de outro continente ou de Marte e que escorraçá-las não seria suficiente. A Europa padece de uma doença interior. Precisa de ser curada. […] Os países subjugados só podem opor ao vencedor uma religião. […] As linhas do inimigo […] soçobrariam se o fogo de uma fé verdadeira se espalhasse por toda esta região.20
Para pôr em marcha este processo de cura, primeiro militar, depois também político e cultural, teria de se «soprar» uma nova «inspiração»21 ao continente europeu — retirada, segundo Weil, sobretudo dos textos de Platão e do Novo Testamento. Pois quem procura uma cura verdadeira tem de se ater, sobretudo em tempos sombrios, a fontes que não sejam apenas deste mundo.
Isto valia antes de mais para a sua pátria, França, que, como país que estivera na origem do ímpeto libertador de 1789, era, entre as nações beligerantes, a que mais decaíra espiritualmente. No verão de 1940, depois de se ter rendido a Hitler no lapso de poucas semanas e praticamente sem oferecer resistência, a libertação de França dependia agora de ajuda estrangeira, e o povo perdera toda a fé em si mesmo. Por outras palavras, a mais importante e profunda de todas as necessidades da alma humana sofrera um abalo: precisamente a necessidade de «enraizamento».
O enraizamento talvez seja a necessidade mais importante e mais ignorada da alma humana. É uma das mais difíceis de definir. Um ser humano cria raízes devido à sua participação real, ativa e natural na existência de uma coletividade que mantém vivos alguns tesouros do passado e alguns pressentimentos do futuro. Participação natural, isto é, criada automatica- mente pelo lugar, pelo nascimento, pela profissão, pelo meio ambiente. Todo o ser humano precisa de ter múltiplas raízes, precisa de receber a quase totalidade da sua vida moral, intelectual, espiritual, por intermédio dos ambientes a que normalmente pertence. […] Há desenraizamento sempre que há uma conquista militar […]. Mas, quando o conquistador se mantém estrangeiro no território de que se tornou possuidor, o desenraizamento é uma doença quase fatal para as populações submetidas. E atinge um grau mais profundo quando há deportações em massa, como na Europa ocupada pela Alemanha […].22
É esta a avaliação que Simone Weil faz da situação, enquanto filósofa designada do governo-sombra do General de Gaulle na primavera de 1943. Nascida na fé judaica, mas há muitos anos profundamente cristã, esta análise de um défice espiritual como sendo a verdadeira causa da matança serve-lhe de motor da sua produção intelectual aparentemente sobre-humana.
EM TRANSE
Ao longo destes meses, como num transe, o seu espírito singular parece verter-se em toda a sua largueza para a folha de papel. Hora após hora, dia após dia. Sem dormir o suficiente. E, sobretudo, como já acontecera nos anos anteriores, sem comer o suficiente. No seu diário de Londres, Weil anota: «Mas, considerando a situação geral e duradoura da humanidade neste mundo, é porventura sempre um erro comer até à saciedade. (Erro que muitas vezes cometi.)»23
A 15 de abril de 1943, o êxtase tem um fim abrupto. Weil sofre um colapso no seu quarto e perde a consciência. Passam-se horas até que uma camarada a descobre. Ao recobrar os sentidos, Weil proíbe-a categoricamente de chamar um médico. Ainda não perdeu a esperança de que lhe atribuam uma missão de combate. Em vez disso, liga diretamente a Schumann, que, inquirido, lhe assegura repetidas vezes que ainda não foi tomada nenhuma decisão definitiva sobre uma missão em França — e, portanto, que tudo é ainda possível. Mas desde que ela convalesça rapidamente. É só então que Weil se deixa conduzir ao hospital.
IDIOTIA
Se Ayn Rand, escritora e filósofa nova-iorquina, quisesse conceber uma outra personificação de todos os valores que, na sua opinião, eram responsáveis pela catástrofe da Segunda Guerra Mundial, nenhuma candidata seria mais apropriada do que Simone Weil em Londres. Pois para Rand, com efeito, nesta primavera de 1943, nada parece ser mais desastroso do que a prontidão para sacrificar a própria vida em nome de uma nação. Moralmente, nada parece ser mais fatal do que a vontade de ajudar os outros acima de tudo. Filosoficamente, nada é mais errado do que a confiança cega em Deus. Metafisicamente, nada é mais confuso do que a tentativa de ancorar valores conducentes da ação num domínio transcendente. Existencialmente, não há nada de mais louco do que praticar uma ascese pessoal em nome da salvação do mundo.
O inimigo é precisamente esta atitude e a ética que a guia. Urge superá-las e lutar contra elas incondicionalmente, onde quer que se deem a ver. Este irracionalismo não deveria avançar nem mais um passo. Sobretudo quando estava em jogo a própria sobrevivência.
Rand aprendera dolorosamente, ao longo de dez anos como escritora independente, que, nos EUA, estas questões eram em última instância questões comerciais. É por isso que, numa carta de 6 de maio de 1943 ao seu editor Archibald Ogden, ela dá largas à sua raiva como nunca acontecera antes na correspondência entre ambos: «Fé… Fé, nem sei o que esta palavra significa. Se com ela te referes à fé em sentido religioso, ou seja, no sentido de uma aceitação cega, então não tenho fé em nada nem em ninguém. Nunca tive e nunca terei. As únicas coisas a que me atenho são o meu discernimento e os factos», diz Rand, explicitando o verdadeiro fundamento da sua visão do mundo. E confronta de imediato Ogden com os seus interesses mais prementes: «Que indícios objetivos existem hoje de que a editora Bobbs-Merrill será bem-sucedida a colocar o meu livro no mercado? Em quem exatamente deverei fazer fé? E por que motivo?»24
Trabalhou sete anos neste romance. Pôs nele toda a sua energia vital, a sua criatividade e, acima de tudo, a sua filosofia. E agora a editora pretende publicitar The Fountainhead [A Nascente] — muito discretamente, ainda por cima — como uma história de amor que se desenrola no meio da arquitetura. O departamento de comunicação nem sequer consegue anunciar que a autora do livro é uma mulher, não um homem: «É bastante claro que a única fé que se pode ter em colaboradores como estes é a fé dos idiotas. […] É mesmo essa espécie de fé que esperas de mim?»25
A pergunta era evidentemente retórica. Rand já fora apodada de tudo na sua vida. Mas nunca de idiota. Pelo contrário, os seus interlocutores percebiam passados poucos minutos que estavam diante de um intelecto de uma clareza singular e que nunca se deixava comprometer. Nesta perspetiva, o problema fundamental a resolver neste mundo não era para ela o da sua existência, mas o da existência de todos os outros. Para Rand, o que os seus semelhantes pensavam e faziam não era enigmático, enigmática era a razão por que o faziam: porque não podiam eles pensar e sobretudo agir convincentemente? O que era ao certo que impedia sempre as pessoas de seguirem o seu próprio juízo, baseado estritamente em factos? Afinal, ela conseguia.
DESAVERGONHADA
Porque se coibia o seu editor de dizer o óbvio, sobretudo agora, a um dia da publicação oficial do livro? Os dois ou três anúncios eram meramente ornamentais. A verdade era que a editora não acreditava no livro. O departamento de marketing decidira que The Fountainhead, a singrar, teria de fazer o seu próprio caminho até às livrarias ou às listas de bestsellers. Afinal, bastava ler uma única página desta obra de mais de 700 páginas, com o arquiteto Howard Roark como protagonista, uma figura aparentemente sobre-humana, para perceber que se tratava antes de um manifesto filosófico tornado romance. Um impressionante monumento de ideias com páginas e páginas de monólogos, que além disso tinha a característica, dificilmente vendável, de desafiar todas as intuições morais sobre as quais presumivelmente assentava a sensibilidade moral do público americano em geral.
Para Rand, era precisamente essa a promessa singular da sua obra. E era assim que deveria ser apresentada e publicitada: como um ato de leitura transformador que oferece aos seus leitores uma visão do mundo fundamentalmente diferente e os leva da caverna para a luz, de maneira que vejam o mundo e a si mesmos pela primeira vez com clareza! Assim, a autora revela ao seu círculo mais estreito de amizades que está convencida de que no mínimo se venderiam 100 000 exemplares26 — e também de que Hollywood depressa faria a adaptação ao cinema com o seu ator preferido, Gary Cooper, no papel de Howard Roark.
De um ponto de vista puramente racional¸ o que poderia pôr em causa estas expectativas? Decerto, não a qualidade do seu romance. Decerto, não a atualidade da sua mensagem! Não era evidente o estado do mundo e mesmo dos EUA? Não sentia cada cidadão individual deste país que se assistia nele a um qualquer desequilíbrio fundamental? Que era mais urgente do que nunca proteger todo um meio cultural de um declínio autoinfligido? De o submeter a uma terapia, com o poder da liberdade de expressão, da concisão da argumentação e com uma força narrativa capaz de mudar o mundo, capaz de o resgatar da profunda confusão que ameaçava engoli-lo, na primavera de 1943, numa orgia mundial de violência?
POSIÇÃO DE COMBATE
O objetivo que Rand se propusera com o seu romance era o de elucidar «a luta entre individualismo e coletivismo, não no domínio da política, mas no da alma humana»27. Era esse o verdadeiro tema: por outras palavras, a luta entre ser autónomo e ser definido por terceiros, entre pensar e obedecer, entre coragem e humildade, entre criar e imitar, entre integridade e corrupção, entre progresso e declínio, entre o eu e todos os demais — entre liberdade e opressão.
As obras de Max Stirner e de Friedrich Nietzsche tinham constituído não mais do que princípios rapsódicos no caminho para a verdadeira libertação do indivíduo do jugo da moral altruísta de escravo. Só a filosofia de Ayn Rand apresentaria um fundamento objetivamente justificado para o egoísmo esclarecido! É neste espírito que a autora põe o seu protagonista no banco dos réus no julgamento decisivo no final do romance. Como personificação pioneira de uma existência guiada pelo amor à liberdade e pela razão pura e criadora. O credo de Roark era também o de Rand:
O criador vive para a sua obra. Não precisa de mais ninguém. O seu objetivo primeiro está dentro de si […]. O altruísmo é a doutrina que exige que o homem viva para os outros e os coloque acima de si mesmo […]. O que mais se lhe aproxima na realidade — o homem que vive para servir os outros — é o escravo. Se a escravatura física é repulsiva, o que dizer do conceito de servidão do espírito? O escravo conquistado tem um vestígio de honra. Tem o mérito de ter oferecido resistência e de execrar a sua condição. Mas o homem que se escraviza voluntariamente em nome do amor é a mais ignóbil criatura. Degrada a dignidade do homem e degrada o conceito de amor. Mas a essência do altruísmo é esta.28
Rand sabia do que falava o seu protagonista em tom admonitório. Sentira no próprio corpo como era viver numa sociedade de escravos engendrados pelo Estado. Como muitas famílias judias em tempo abastadas, também os Rosenbaums de São Petersburgo tinham sido expropriados durante a Revolução de Outubro. Depois de a farmácia do pai ter sido saqueada e destruída (Lenine: «Saqueiem os saqueadores!»), no final de 1918, Ayn, na altura ainda tratada por Alissa, refugiara-se com os pais e as duas irmãs na Crimeia. Percorreram milhares de quilómetros, de início de comboio, pouco depois a caminhar. É verdade que a família pôde regressar a São Petersburgo (Petrogrado, a partir de 1924 Leninegrado) em 1921. Mas o pai, agora desvalido, já não podia continuar a trabalhar como farmacêutico, por em tempos ter sido representante da «burguesia».29
No outono desse ano, Rand matricula-se na universidade para estudar história e filosofia e, uma vez concluídos os estudos, passa em 1924 para a Escola de Artes Aplicadas para estudar cinema. Porém, nesta época o seu verdadeiro objetivo é já outro: a refugiada de 19 anos não quer senão escapar da União Soviética, não quer ter nada que ver com a sua utopia do «novo homem», quer, sim, tornar-se pelos seus meios aquilo que verdadeiramente é: uma criadora dos seus próprios mundos. Quer a liberdade, quer ir para a terra das suas estrelas de cinema e realizadores preferidos — a América!
No início de 1926, os pais conseguiram enviá-la para Chicago, para casa de parentes, graças a um visto de férias. Seis aventurosas semanas mais tarde (Riga, Berlim, Le Havre, Nova Iorque), ela parte de autocarro para Hollywood, para aí viver como escritora e guionista. Alissa Rosenbaum tem então 21 anos, não sabe uma palavra de inglês e doravante quer ser sempre tratada por «Ayn Rand». Se o Velho Mundo não podia ser salvo, Alissa podia tornar-se outra no Novo Mundo. Jurou a si mesma que mais valia morrer a regressar ao seu país natal.
APENAS LÓGICO
A partir de então, lutou todos os dias ao longo de 17 anos pelo seu sonho americano. Quando Rand acredita estar mais perto do que nunca do objetivo da sua vida com a publicação de The Fountainhead, os pais e as duas irmãs mais novas correm o risco de morrer à fome em Leninegrado, cidade então cercada pela Wehrmacht de Hitler. Se é que viviam ainda. Rand não tem como saber. Os poucos relatos que chegam do outro lado do Atlântico sob a forma de rumores acerca da luta crua pela sobrevivência dos sitiados transcendem os limites do humanamente concebível. Segundo esses relatos, cerca de um milhão de habitantes terá aí morrido até à primavera de 1943. Todos os cães e gatos já tinham sido comidos havia muito. Já se falava até de canibalismo sistemático.30 Não, não era preciso dizerem-lhe mais nada. Ela já vivera tudo isso. A fome. O tifo. Os mortos. Desde então, vivia de olhos bem abertos. E a filosofia aguçara-lhe entretanto a visão.
Na perspetiva de Rand, a ânsia assassina tanto de Hitler quanto de Estaline obedecia a uma e a mesma lógica: a lógica da subjugação violenta de cada indivíduo pelo Estado em nome de um coletivo elevado a ideal. Quer este coletivo se chamasse «classe» ou «povo», «nação» ou «raça», a diferença era meramente superficial. Pois, nos seus impulsos, métodos e sobretudo no seu desprezo pelas pessoas, estes «totalitarismos»31 — para usar o conceito com que Rand, no início dos anos 1940, designava as ameaças políticas — tinham os mesmos efeitos. O totalitarismo conquistara primeiro a Rússia, depois Itália e por fim a Alemanha. Nenhum país lhe era imune, portanto. Nem mesmo os EUA, sobretudo os EUA. Afinal, o verdadeiro segredo do êxito das forças totalitárias residia no facto de o processo de subjugação sistemática não depender de modo algum do apoio expresso das massas, mas tão-somente da sua indiferença.
Por esta razão, com a entrada dos EUA na guerra com Roosevelt, o presidente do New Deal, o mundo inteiro corria o risco, aos olhos de Rand, de sucumbir por causa de uma ideia errada, de um mal-entendido filosófico fundamental: o enobrecimento do autossacrifício em nome de terceiros, em nome de um coletivo incensado pela propaganda. Era precisamente este bloqueio altruísta ao pensamento que urgia quebrar. Esta guerra era uma guerra de ideias!
Estes horrores são possíveis exclusivamente por causa de homens que perderam todo o respeito pelos seres humanos individuais, que aceitam a ideia de que as classes, as raças e as nações são importantes, mas não os indivíduos, que uma maioria é sagrada, mas uma minoria é pó, que os rebanhos contam, mas o Homem é nada. Qual é a sua posição sobre este ponto? Não há aqui meios-termos.32
Rand já tinha escrito estas linhas em 1941 para um manifesto político. Dada a situação política mundial, considerava agora transformar o texto num livro de ensaio o mais brevemente possível. Na primavera de 1943, sente-se decidida como nunca a lançar-se com toda a sua força intelectual a esta guerra de ideias. E fá-lo unicamente por fins egoístas. Pela sua própria liberdade e integridade, que estão sob ameaça. Por tudo aquilo que, para ela, é mais caro e sagrado neste mundo e em nenhum outro. Por que ou quem mais haveria de o fazer?
A ESTRANGEIRA
A pouca distância do apartamento de Ayn Rand em Manhattan, também Hannah Arendt vê chegar a altura de uma redefinição intelectual fundamental. Só que num espírito muito menos combativo. «São muito poucos os indivíduos», escreve a filósofa de 36 anos num artigo de janeiro de 1943, «com o vigor necessário para conservar a sua integridade quando o seu estatuto social, político e legal se encontra completamente confundido.»33 Exatamente dez anos após a sua expulsão da Alemanha de Hitler, Arendt, olhando-se ao espelho, não está certa de encontrar em si mesma a energia necessária para continuar. Nunca antes na sua vida se sentira tão isolada, tão completamente vazia e desprovida de sentido, como nas semanas anteriores: «Tínhamos perdido a nossa pátria, o que significa que perdêramos a familiaridade com a nossa vida quotidiana. Tínhamos perdido os nossos empregos, o que quer dizer que perdêramos a confiança de quem sabe ter alguma utilidade no mundo. Tínhamos perdido a nossa língua, o que representa que perdêramos a naturalidade das reações, a simplicidade dos gestos, a expressão não afetada dos sentimentos. Tínhamos deixado os nossos parentes nos guetos polacos, e os nossos melhores amigos tinham sido mortos em campos de concentração, e isso significa a rutura das nossas vidas privadas. […] Se alguém nos salva, sentimo-nos humilhados, e quando somos ajudados sentimo-nos rebaixados. Combatemos como doidos pelas nossas existências privadas, cada qual com o seu destino individual.»34
Com efeito, a descrição que Arendt faz do seu estado de espírito é um exemplo comovente daquele mal de alma que Simone Weil descreve como consequência necessária do «desenraizamento» existencial. Só que Arendt, nessa altura, não vive num país permanentemente ocupado nem foi vítima de deportações em massa. Este trecho do seu ensaio Nós, Refugiados descreve antes a enorme perda que os refugiados judeus alemães sentem com particular acuidade no Novo Mundo em 1942/1943. Ao longo de semanas, ela e o marido fitam o céu cinzento e vazio de Nova Iorque no inverno. Fumam. Calam. Como as últimas pessoas na Terra.
SEM APOIO
Arendt, cronicamente solar por natureza, aceitara a sua situação nos dez anos precedentes com iguais doses de tenacidade e de criatividade. Sempre que fora necessário, encontrara em si mesma o fogo interior que lhe permitira abrir caminho para uma nova vida. De Berlim para Paris, de Paris para Marselha, por fim para Nova Iorque. Sempre com o objetivo de «viver sem recurso a todas essas artimanhas e astúcias de adequação e assimilação».35
Entretanto, na primavera de 1943, a única coisa que salvara da sua vida privada fora o seu «Monsieur» Heinrich, com quem vivia num quarto mobilado de um bloco de apartamentos esquálido na 95th Avenue, bem como, no mesmo andar, a sua mãe, Martha Beerwald, viúva de Paul Arendt, sempre achacada e perdida no Novo Mundo. Claro que isso era mais do que muitas displaced persons tinham conseguido salvar na fuga. Porém, também estava longe de ser um destino autodeterminado digno do nome.
Em tempos aluna de Karl Jaspers e de Martin Heidegger, mesmo nos anos de exílio não perdera a sua intuição especial para se colocar no centro das encruzilhadas. Com efeito, as pessoas em cuja ajuda podia realmente confiar contavam-se pelos dedos de uma mão: o seu mentor, Kurt Blumenfeld, em Nova Iorque, bem como o judaísta Gershom Scholem, em Jerusalém. O seu ex-marido Günther Stern, na Califórnia, e o teólogo Paul Tillich, também em Nova Iorque. Não sabia se os Jaspers viviam ainda e, se sim, onde — era impossível descobrir. Já transcorrera uma década desde a última carta. Ela própria não sabia porque se quebrara o contacto tão cedo. Retrospetivamente, Jaspers é o único verdadeiro professor que alguma vez teve. A sua antiga relação tempestuosa com Heidegger terminara em 1933 por razões bem diferentes, quando este se inscreveu no NSDAP e proclamou aos estudantes, no seu discurso de reitor em Freiburg nesse mesmo ano: «O próprio Führer, e ele apenas, é a realidade alemã presente e futura e a sua lei.»36 Ainda não ganhara coragem para bater à porta de Ernst Cassirer, que lecionava agora em Yale e que sabia de Arendt por intermédio de amigos comuns.
A RUTURA
Desde a entrada dos EUA na guerra, tornara-se ainda mais difícil obter informações sobre o destino dos conhecidos e familiares que tinham ficado para trás na Europa — e quase impossível ajudá-los a fugir. Arendt sofreu assim um golpe particularmente duro quando, a 18 de dezembro de 1942, leu no jornal de língua alemã Der Aufbau — um periódico direcionado para os exilados no qual ela própria fora colunista durante mais de um ano — um relato sobre o dia da deportação para o campo de internamento de Gurs, no sul de França, seguido por longas listas com os nomes dos deportados.37 Também Arendt aí estivera presa — e reconheceu alguns nomes.
Neste inverno, o artigo do Aufbau era apenas um de muitos que davam conta de uma nova fase na maneira de lidar com os judeus europeus, presos pelos nazis em campos de concentração em números que agora ascendiam aos milhões. Manifestamente, segundo a «solução final da questão judaica» proclamada por Hitler e por Goebbels, passara-se agora a assassinar estas pessoas em moldes industriais, em campos de extermínio expressamente construídos para o efeito — passara-se a gaseá-las. Nem Arendt nem o marido alimentavam então quaisquer dúvidas acerca do antissemitismo incondicional dos nazis — nem acerca da sua irrefreada brutalidade na prossecução dos objetivos anunciados. Mas até para eles foi de início difícil dar crédito a estes relatos. O procedimento descrito parecia demasiado monstruoso, uma medida sem sentido. Desde logo, de um ponto de vista logístico e estratégico. Precisamente agora que o exército de Hitler tinha de aparar golpe após golpe. Só na URSS perdera, ao que se dizia, um milhão de soldados neste inverno.
Não obstante, era verdade, era isso mesmo que se estava a passar. Os relatos eram demasiado numerosos, e as fontes demasiado diversas. Nas semanas que se seguiram, Arendt sentiu como nunca antes a perda do mundo [Weltverlust]. Este sentimento de perda não se reportava a determinados grupos ou comunidades, a um lugar ou tempo concretos, mas à sua existência como pessoa. Fora tomada por um estranhamento metafísico. Como se se tivesse aberto um abismo no centro deste mundo, no centro de si mesma, que nada nem ninguém poderia colmatar.
O que era ao certo isto em que não queriam acreditar? O que era ao certo isto que consideravam impossível? Que um povo inteiro — mesmo que espalhado pelo mundo inteiro — tivesse sido declarado inimigo figadal não tinha em si nada de estranho à humanidade. Como não o tinham esta guerra nem a bestialidade das suas batalhas. A história conhecia outras ocasiões semelhantes, na verdade, compunha-se quase só delas. Mas isto… O sinal mais evidente da impotência de Arendt era ver-se incapaz há já bastante tempo de formular o que acontecia com as suas próprias palavras.38
PRESENTE
O melhor seria simplesmente esquecer o seu antigo eu, agir como se fosse inteiramente livre de decidir quem é e como quer continuar a viver neste mundo: certas pessoas, certos filósofos até, declararam que isso era possível. Mas ela nunca fora jovem o bastante para acreditar nessas ilusões. Na verdade, sabia que «a reaquisição de uma nova personalidade é tão difícil — e tão sem esperança — como uma nova criação do mundo»39. Ninguém começava nunca do zero. Ninguém era assim tão livre ou inconstante. Por mais que alguém o desejasse ou fantasiasse — fosse por megalomania ou por causa do mais fundo desespero.
Pensando bem, esta era uma maneira de esclarecer como se chegara ao espetáculo infernal do presente. Na sua origem estava o desejo megalómano de certos indivíduos de reconfigurar o mundo segundo a sua vontade, de literalmente o recriar: a partir de um molde único e unificado. Era a visão maníaca de um mundo que doravante seria determinado por um único rosto. Um mundo, por outras palavras, que não precisaria de outras pessoas para a sua constante recriação, nem de corpos que resistissem: o pesadelo político do domínio total.
Porém, mesmo nestes tempos sombrios permanecia claro que um pesadelo é qualquer coisa de que se pode despertar. Bastava encontrar-se a coragem interior de abrir os olhos — de os manter abertos — para se tomar consciência, de espírito alerta, dos abismos do presente. Para «dizer a verdade, mesmo até ao nível da “indecência”».40 Para assim dar testemunho das profundezas de que eles tinham nascido até entrarem no mundo. Ou seja, para não se ser vítima nem do passado nem do futuro. Para não se seguir cegamente nem o próprio juízo nem o de terceiros. Para se encontrar a coragem de recorrer à própria razão. De se orientar livremente no pensamento.
Precisamente agora, talvez tivesse chegado o momento — Arendt reunia novas forças — de «ser inteiramente presente»410. Por outras palavras: de fazer filosofia.
Notas:
- Drei Essays, p. 195. Todas as citações desta secção são retiradas do ensaio de Beauvoir Pyrrhus und Cineas. [Aqui e adiante traduzido do original em francês, Pyrrhus et Cinéas. (N. da T.)]
- Ibid.
- Ibid.
- Cf. BJ, p. 167. [Aqui e adiante seguiu-se a tradução de Maria Auta Monteiro Costa in Beauvoir, Simone de, A Força da Idade, Lisboa, Livraria Bertrand, 1976, p. 461. (N. da T.)]
- L’invitée. [A Convidada. (N. da T.)]
- Le sang des autres. [O Sangue dos Outros. (N. da T.)]
- Levada à cena pela primeira vez em Paris no outono de 1945 com o título Les bouches inutiles.
- Drei Essays, p. 207. [Aqui e adiante traduzido do original em francês, Pyrrhus et Cinéas. (N. da T.)]
- Cf. a este respeito Kirkpatrick, K. (2019), p. 182.
- Drei Essays, p. 222. [Traduzido do original em francês, Pyrrhus et Cinéas. (N. da T.)]
- Ibid.
- Ibid.
- Ibid.
- Cahiers 4, p. 324.
- Sobre os pormenores biográficos desta fase da vida de Simone Weil, cf. Pétrement, S. (1973), pp. 643–673.
- KuG, pp. 199 sqq.
- Pétrement, S. (1973), p. 667. [Aqui e adiante traduzido do original em francês. (N. da T.)]
- = Verwurzelung.
- Cf. «Dieser Krieg ist ein Krieg der Religionen» in: KuG, pp. 205–214.
- KuG, p. 212 sqq.
- Verwurzelung, p. 173.
- Ibid., p. 43 sqq. [Aqui e adiante seguiu-se a tradução de Júlia Ferreira e José Cláudio in Weil, Simone, Enraizamento, Lisboa, Relógio D’Água, 2014, pp. 45–46. (N. da T.)]
- Cahiers 4, p. 204.
- Letters, pp. 67 sqq.
- Ibid., p. 69.
- Entretanto, estima-se que em todo o mundo tenham sido vendidos mais de oito milhões de exemplares deste título (até à data de hoje, em 2020). Já os romances filosóficos no seu conjunto ascendem atualmente a mais de 20 milhões de exemplares.
- Cf. Heller, A. C. (2009), p. 117.
- Ursprung, pp. 988 sqq. [Aqui e adiante traduzido do original em inglês, The Fountainhead. (N. da T.)]
- Para os pormenores biográficos dos anos de juventude de Rand, cf. Heller, A. C. (2009), pp. 22–52.
- Adamowitsch, A. e Granin, D. (2018) oferecem impressionantes testemunhos oculares dos habitantes da cidade.
- Journals, p. 347. [Aqui e adiante traduzido do original em inglês. (N. da T.)]
- Ibid., p. 350.
- Flüchtlinge, p. 26. [Aqui e adiante seguiu-se a tradução de José Miranda Justo in Arendt, Hannah, Nós, Refugiados, Antígona, Lisboa, 2021, p. 36. (N. da T.)]
- Ibid., p. 10 e p. 21. [Ibid., pp. 16–17, 28. (N. da T.)]
- Ibid., p. 33. [Ibid., p. 43. (N. da T.)]
- Heidegger, M. (2000), p. 184.
- Cf. Young-Bruehl, E. (2018/1982), p. 261.
- Cf. Entrevista de Arendt com Günter Gaus: https://www.youtube.com/watch?v=dVSRJC4KAiE&ab.
- Flüchtlinge, p. 23. [Nós, Refugiados, pp. 37–38. (N. da T.)]
- Ibid., p. 35. [Ibid., p. 46. (N. da T.)]
- Cf. a este propósito a epígrafe do livro posterior de Arendt Elemente und Ursprünge totaler Herrschaft (= EuU) [As Origens do Totalitarismo]. Trata-se de uma citação de Karl Jaspers: «Não ser presa nem do passado nem do futuro. Há que ser inteiramente presente.»
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