Em 2007, no pico da euforia pré-crise, os bancos portugueses concederam 30 mil milhões de euros em novos empréstimos a clientes particulares e 64 mil milhões a empresas. No início de 2008, o Banco de Portugal registava um total de 321 mil milhões de euros em dívidas bancárias. Dez anos depois, 80 mil milhões tinham pura e simplesmente desaparecido dos balanços dos bancos: foram registados como perdas, ou «imparidades». De onde veio todo esse dinheiro? E para onde foi? Ao contrário do que se possa pensar, esse crédito não veio dos depósitos ou, como ouvimos frequentemente, das «poupanças». Seria, aliás, impossível: em 2008 o total dos depósitos de clientes nos bancos portugueses era de 195 mil milhões, muito abaixo do crédito concedido.
De onde vem então o dinheiro que é entregue aos clientes dos bancos através do crédito? A resposta certa é: de lugar nenhum. Cada euro é criado no momento em que o funcionário insere no computador de um banco os dígitos do crédito que o cliente verá surgirem na sua conta à ordem. Esse dinheiro pode depois ser convertido em notas, ou transferido para outra conta bancária. Servirá para comprar uma casa, equipamento para uma empresa ou ações na bolsa. A banca chegou a emprestar mil milhões de euros a Joe Berardo para a compra de ações do Banco Comercial Português (BCP) quando estas valiam quase três euros. Pouco tempo depois, a crise e a guerra de sucessão do banco fizeram o preço das ações descer até aos cinco cêntimos. Berardo poderia vender todas as suas ações e não pagaria 10% da dívida. O dinheiro eclipsou-se com a mesma rapidez com que foi criado.
Há algo de alquímico neste processo de criação, reprodução e destruição de dinheiro. O que representa afinal a nota de 20 euros que retiramos de uma máquina multibanco? O papel e a tinta de que é feita não têm qualquer valor especial. O que vale mesmo é a confiança que temos no facto de aquele pedaço de papel vir a ser aceite universalmente como forma de saldar uma dívida, de pagar um imposto ou adquirir um bem. É frequente haver quem pense que, no passado, no tempo do dinheiro «real», todas as notas emitidas tinham o seu valor em ouro guardado num cofre. Assim, ao total de papel-moeda em circulação na economia corresponderia um stock de metais preciosos mantido, por conveniência, numa casa-forte. As notas seriam, elas mesmas, o título de uma dívida, uma promessa de pagamento futuro em ouro.
É verdade que, em certos momentos e lugares da história, assim foi. Mas, na sua essência, o dinheiro é, desde sempre, a materialização de uma relação de confiança, o símbolo de uma promessa de pagamento, que poderá ser liquidada em ouro ou não. Se a nota que representa a promessa do pagamento futuro de uma libra de ouro, ou de dois cavalos, ou de um saco de cereais, for merecedora de confiança generalizada, ela poderá liquidar qualquer outra dívida e tornar-se-á, ela própria, dinheiro. Neste sentido, toda a moeda é dívida.
Joseph Schumpeter, um dos mais importantes economistas da primeira metade do século XX, traduziu esta ideia abstrata e misteriosa numa inspirada nota de rodapé de difícil tradução:
Não existe outro caso em que uma dívida sobre uma coisa possa, dentro de certos limites, servir o mesmo propósito que a própria coisa: embora um crédito sobre um cavalo não possa ser montado, posso, sob certas condições, fazer com crédito sobre dinheiro exatamente o mesmo que faço com o próprio dinheiro. Nomeadamente, comprar.*
Então, se a promessa de entregar moeda no futuro é, em si, moeda, como distinguir o que é dinheiro do que não é? Como estabelecer a fronteira entre o verdadeiro e o falso? Onde começa e onde acaba a fraude na alquimia financeira?
Depois da Revolução de 1776, que garantiu a independência das 13 colónias do que viria a ser os Estados Unidos da América face à Grã-Bretanha, passou a ser possível aos bancos privados obter, junto dos novos Estados, um alvará e, com ele, a autorização para imprimir as suas próprias notas. A cada banco foi assim dada a possibilidade de imprimir pedaços de papel que representariam, em teoria, ouro depositado nos cofres, e que seriam entregues aos clientes a título de um empréstimo, ou na realização de outras transações quotidianas. O número de bancos autorizados ultrapassou os 711 em 1840 e dez anos depois existiam mais de dez mil papéis diferentes em circulação. Esta diversidade contribuiu para que a produção de notas falsas se tornasse tão normal que chegou a atingir cerca de 10% do papel-moeda em circulação. Algumas destas notas pretendiam imitar as verdadeiras, utilizando os mesmos materiais e tecnologias de produção. Outras eram simplesmente emitidas por bancos que se estabeleciam livremente nas zonas mais remotas do país e que não tinham qualquer intenção de manter a conversão do papel em ouro. Mas, numa economia que se expandia muito para além das suas posses de metais preciosos, a procura de moeda era tal, que todos os bancos, «legítimos» ou não, emitiam notas para lá do que guardavam nos cofres. Afinal, para que as notas se tornassem verdadeiras bastaria que as pessoas acreditassem no seu valor.
Quando a Guerra Civil deflagrou, no início da década de 1860, a necessidade de financiar as despesas militares da União contra as forças do sul esclavagista levou o Estado a imprimir a sua própria moeda, pondo fim aos privilégios da «banca livre». Hoje, nos EUA como em Portugal, os bancos continuam a produzir dinheiro através do crédito, mas fazem-no com base na autoridade do Estado, que confere validade à moeda, nas suas diferentes formas, nomeadamente ao aceitá-la como meio de pagamento de impostos. Mas já antes disso havia muito Estado na economia.
Desde os primeiros passos do capitalismo mercantil que a guerra, a fraude e a especulação levaram os Estados, fossem monarquias absolutas ou governos de especuladores e negociantes, a intervir no sistema financeiro. Esta intervenção, ainda que nem sempre tenha correspondido à propriedade pública de instituições financeiras (o próprio conceito só surge muito mais tarde), responde à necessidade de criar instituições que organizem e domestiquem as poderosas forças do crédito.
O primeiro banco público de que há registo na Europa foi criado na Catalunha em 1401. Em Veneza, as autoridades locais foram forçadas a criar um banco para lidar com as corridas aos bancos, que já no século XVI emitiam moeda em excesso face às reservas de metais preciosos. O Banco de Amesterdão, precursor dos bancos centrais, foi um pilar de estabilidade financeira na euforia especulativa dos séculos XVII e XVIII, tendo sido depois criado o Banco de Inglaterra, que existe até hoje.
Encontraremos, em pleno século XXI, bancos privados que sobreviveram à passagem dos tempos — o Monte dei Paschi di Siena, fundado em 1472, detinha o recorde de banco mais resiliente da História, até ter sido resgatado pelo Estado italiano em 2017, depois da condenação de 13 administradores a penas de prisão por ocultação de prejuízos. Mas a finança mudou radicalmente, sobretudo depois das reformas neoliberais dos anos 1970 e 1980. Os bancos cresceram para dimensões nunca vistas e esbateu-se a distinção entre as funções bancárias e não bancárias. Gigantes como o J.P. Morgan Chase ou o Goldman Sachs aceitam depósitos, concedem empréstimos, financiam projetos de investimento, mas fazem muito mais do que isso. Dominam a que veio a ser conhecida como banca-sombra, uma nuvem de práticas e instituições que acrescentam camadas e camadas de complexidade ao sistema, à medida que fornecem novas formas de criar dívida e de a tornar lucrativa. Foi nestas sombras que o banco Lehman Brothers escondeu os riscos do subprime e que o Grupo Espírito Santo criou mecanismos destinados a mascarar a sua situação financeira.
O que nunca foi transparente tornou-se mais obscuro, mais potente e mais instável. A alquimia, no entanto, é a mesma. Criar moeda é, como sempre foi, o poder de gerar grandes riquezas e enormes catástrofes. A quem devemos entregar tal poder? Nesta ciência do oculto, onde acaba o crédito como serviço necessário e começa a fraude?
Este livro não tem todas as respostas. Mas pretende ser um contributo para uma sociedade mais consciente sobre o funcionamento dos bancos e do sistema financeiro. Afinal, a banca é demasiado importante para ser deixada nas mãos dos banqueiros.
O primeiro capítulo dá o mote, ao descrever a forma como os bancos criam moeda através do crédito. Esse poder é um privilégio e uma maldição. Quando libertas de constrangimentos institucionais que as direcionem para objetivos socialmente desejáveis, as forças do crédito criam o caos na sociedade.
No segundo capítulo discute-se a moeda. Sabe-se para que serve, mas os equívocos sobre a sua natureza, ou seja, sobre o que realmente é, ainda condicionam a forma como as economias se organizam. Tanto as investigações históricas como o bom senso teórico apontam para a ideia de que a moeda é uma complexa construção social assente em relações de dívida. Houve tempos em que essas relações foram condensadas e geridas na forma de metais preciosos, mas essas foram escolhas políticas, e não imposições naturais. Apesar das evidências, o fetiche do ouro impregnou as instituições modernas com a ideia que a moeda é um constrangimento externo ao qual os Estados devem obedecer pela austeridade. Ironicamente, a mesma teoria foi incapaz de identificar e prever os efeitos da acumulação de dívida no sistema financeiro. Depois da crise de 2008, ficou óbvio que as instituições assim construídas falharam os propósitos de estabilidade financeira e prosperidade. Mas a ideologia neo-liberal sobreviveu, e encontrou nos adeptos das criptomoedas os seus mais radicais interlocutores. Aos fetiches e mitos sobre uma moeda naturalmente limitada e, portanto, a salvo dos perigos da gestão pública, soma-se agora a ficção de um sistema monetário descentralizado, que dispensa qualquer forma de intervenção governamental. O que os criptoentusiastas não admitem é que, à semelhança do que se passou no início do século passado, a sua proposta liberal para a moeda serve os propósitos de uma elite que procura a acumulação, mas não os da sociedade.
Para dar forma a ideias abstratas, o capítulo três acompanha a história dos bancos e das instituições financeiras ocidentais ao longo dos tempos. Neste curto resumo histórico são apresentados alguns episódios que mostram a luta das sociedades para compreender e controlar as perigosas forças da moeda e, logo, do crédito. Como hoje, as manias, os pânicos e as crises proliferaram sempre com a especulação, as inovações financeiras e a fraude, e foram temporariamente controladas através de instituições desenhadas para o efeito. A potência e a resiliência dessas instituições refletem a força de determinados grupos de interesse na sociedade. Depois da Grande Depressão de 1933, e da Segunda Guerra Mundial, que se arrastou até 1945, o capitalismo ocidental viveu o seu período de maior estabilidade económica e financeira. A partir da década de 1970, esse quadro institucional foi desmantelado às mãos de uma nova geração de megabanqueiros em ascensão. O economista Hyman Minsky analisou esta grande transformação e, com base nela, criou a teoria que explica como um sistema estável desenvolve, de forma endógena, as condições para a sua própria desestabilização e, eventualmente, provoca uma crise.
Desta necessidade histórica de controlar as perigosas forças do crédito nasceram as primeiras formas de banca central que, não sendo necessariamente propriedade do Estado, serviram para o financiar, ou para organizar o caos monetário medieval. A função de «prestamista de última instância», que Minsky defendia como um instrumento central para a estabilidade financeira, tinha surgido formalmente apenas com o Banco de Inglaterra. Fundado em 1694, este é considerado o primeiro banco central do mundo, ainda que só tenha sido nacionalizado no pós-Segunda Guerra. Mesmo sob a alçada do Estado, o banco central inglês posicionou-se sempre como um intransigente defensor dos interesses financeiros da City de Londres, pelos quais muitas vezes se bateu contra governos e ministros das Finanças. Ainda assim, e mesmo neste caso extremo, a política monetária nunca foi independente do poder político, que chamou a si as grandes decisões sobre a gestão da moeda, para não falar da supervisão dos sistemas financeiros. A «independência» dos bancos centrais é uma convenção recente, que teve no Banco Central Europeu (BCE) o seu mais alto representante. No final do quarto capítulo, dedicado aos bancos centrais, é argumentado que não só a ideia de independência se baseia num mito histórico, como o BCE desrespeitou esse princípio em alguns momentos da sua história.
Ainda que alguns episódios históricos, como a intervenção do Banco de Portugal no tráfico do ouro nazi durante o Holocausto, sejam tratados ao longo do livro, é no capítulo cinco que se concentra a análise sobre o papel dos bancos na economia portuguesa. Com base em importantes contributos historiográficos, é recordado o papel do sistema financeiro na acumulação de poder e fortunas antes da Revolução de Abril. Uma visita aos arquivos históricos do Ministério das Finanças serve para mostrar como a fraude sempre foi um instrumento de acumulação ao serviço desta elite, que, com a ajuda do poder político, soube reorganizar-se sob os auspícios da integração europeia. A centralidade do poder dos bancos em Portugal ajuda a explicar o desenvolvimento de uma estrutura económica desequilibrada, propensa ao sobre-endividamento e às atividades especulativas, como o imobiliário.
A partir do escândalo internacional da Greensill, uma fintech que afinal não o era, o capítulo seis olha para fenómenos financeiros normalmente agregados sob a designação de «banca-sombra». Embora sejam tratadas como novidades, a securitização e as formas não bancárias de criação de dívida estiveram na origem da crise do subprime, que desembocou depois na grande recessão de 2010. O mais curioso é que, apesar do seu papel na crise, estas técnicas e entidades sejam agora promovidas como alternativas à banca tradicional, como bem se vê pelos esforços da Comissão Europeia para constituir uma União dos Mercados de Capitais. Enquanto o cerco regulatório aos bancos tradicionais aperta, a banca-sombra cresce livremente, para se tornar mais opaca e instável, condicionando até a atuação dos bancos centrais.
O sétimo e último capítulo deste livro debruça-se transversalmente sobre algumas questões deixadas em aberto nas secções anteriores. De que forma as transformações da finança se fazem refletir nas estruturas de propriedade e poder que comandam o nosso país e o mundo? Será que a proliferação de produtos financeiros é, como defendem os criptoentusiastas, uma condição de democracia económica? Devemos confiar nos mercados financeiros para organizar a tão necessária transformação ecológica das economias mundiais?
Para responder, é argumentado, com base nas ideias de Marx, Keynes e Minsky, que o sistema bancário-sombra mantém uma relação simbiótica com a concentração de poder e as desigualdades sociais. Ele depende tanto da acumulação de recursos por um pequeno grupo de indivíduos e empresas quanto das oportunidades abertas pela extorsão e dependência financeira da maioria da população. Este processo nada tem a ver com democracia, liberdade ou transformação produtiva, mas sim com o açambarcamento, pelo sistema financeiro, de parcelas cada vez maiores da vida coletiva. O que antes era avaliado pelo seu contributo social ou económico de longo prazo passou a ser valorizado pelos métodos e tempos dos mercados. Se, por meio de uma perigosa alquimia, tudo pode ser transformado num título financeiro e posto em circulação para criar dívida, então tudo está sujeito às mesmas instáveis dinâmicas financeiras de atribuição de valor.
É neste quadro que se deve entender a situação dilemática dos bancos centrais, chamados a injetar quantidades exorbitantes de moeda no sistema financeiro, não porque os bancos enfrentam problemas de liquidez, mas porque a banca-sombra não suportaria uma queda abrupta dos preços dos seus ativos.
Dos escombros da última crise crescem fortes as raízes da instabilidade financeira que, mais tarde ou mais cedo, se transformará em nova crise. No epílogo discute-se essa hipótese, recordando que a sociedade tem ao seu dispor os meios técnicos e teóricos para a evitar. Os economistas clássicos sabiam-no bem: a economia é, sempre foi e sempre será uma ciência de escolhas políticas.
* Schumpeter, J. (1934). The Theory of Economic Development. Cambridge, MA: Harvard University Press, p. 97.
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