PRÓLOGO
7 DE ABRIL DE 1944
Depois de vários dias de atraso, semanas de preparação obsessiva, meses de observação das tentativas falhadas de outros e dois anos a ver a que profundezas os seres humanos podiam descer, o momento chegara por fim. Era tempo de fugir.
Os dois outros prisioneiros já lá estavam, no local indicado. Sem uma palavra, um movimento de cabeça: agora. Walter e Fred não hesitaram. Treparam a pilha de madeira, descobriram a abertura e, um a seguir ao outro, deixaram-se cair lá para dentro. Um segundo depois, os camaradas deslocaram as tábuas de madeira acima deles. Um deles sussurrou: «Bon voyage». E depois, escuridão e silêncio.
Sem hesitação, Walter lançou mãos ao trabalho. Sacou do tabaco soviético de qualidade inferior conhecido como machorka de que lhe tinham falado, uma porção preparada segundo as instruções recebidas: embebido em gasolina e secado. Devagar, começou a enfiá-lo nas fendas entre as tábuas de madeira, por vezes soprando com cuidado, para entrar no sítio, esperando que o prisioneiro de guerra soviético que lhe ensinara o truque tivesse razão e que o cheiro fosse repelente para os cães. Mas não confiavam apenas na tarefa de Walter. Já se tinham certificado de que o chão em torno do esconderijo estava generosamente salpicado com o tabaco, de modo que os cães dos SS nunca se aproximassem. Se a confiança do homem do Exército Vermelho tivesse razão de ser, Walter e Fred conseguiriam manter-se agachados neste buraco debaixo da pilha de madeira, em silêncio e sem serem descobertos, exatamente pelo tempo de que precisavam: três dias e três noites.
Walter observava os ponteiros fosforescentes do seu relógio. O tempo avançava a passo de caracol. Queria levantar-se, esticar-se, mas não podia. Os braços e as pernas estavam a ficar com cãibras, mas sabia que teria de aguentar, e de aguentar em silêncio. Falar era demasiado arriscado. A certa altura, Walter sentiu Fred, que era seis anos mais velho, segurar-lhe e apertar-lhe a mão. Walter tinha 19 anos.
Que era aquilo? Passos — passos que se aproximavam. Seria isto o fim para Walter e para Fred, tão perto do início? Como reflexo, cada um pegou na sua lâmina. Este ponto era claro: podiam ser apanhados, mas não seriam interrogados. Poriam fim a tudo neste buraco no chão; transformariam este esconderijo numa fossa funerária.
Não é que os SS os deixassem ali ficar. Arrastariam os corpos sem vida de volta para o campo. Mantê-los-iam de pé encostados a pás ou haviam de os pendurar das forcas, com um letreiro de aviso ao pescoço, o mesmo cenário que se seguira a todas as outras fugas falhadas. Fariam troféus dos seus corpos.
A cada segundo que passava, os nervos de Walter pareciam ficar mais tensos. Este buraco era tão pequeno. Mas depois, os passos, se eram mesmo passos, perderam-se ao longe.
Às seis da tarde dessa sexta-feira, ouviu-se a sirene. Um uivo capaz de fazer vibrar o ar e gelar o sangue nas veias, mil alcateias de lobos uivando em uníssono. Os dois homens tinham já ouvido muitas vezes aquele som, um ruído tão intenso que até os homens da SS punham os dedos nos ouvidos. O som era medonho, mas cada um dos reclusos o recebia de braços abertos: significava que se dera pela falta de pelo menos um homem na chamada do fim da tarde — e que, talvez, um prisioneiro tivesse escapado de Auschwitz.
Para os dois homens, era a sua deixa. Fred e Walter saíram do espaço principal, concebido para albergar quatro pessoas, e contorceram-se para entrar numa ramificação, uma espécie de passagem, onde apenas cabiam duas pessoas. A ideia era servir como uma camada extra de proteção: um esconderijo dentro do esconderijo. Os dois homens enfiaram-se lá dentro e mantiveram-se imóveis, lado a lado. Para Walter, era quase um alívio. Agora, por fim, a espera terminara; juntavam-se à batalha. Cada um dos homens atara uma tira de flanela à boca, para não se denunciar a si mesmo — e ao outro — por causa da tosse. O único movimento provinha dos ponteiros luminosos do relógio.
Não podiam vê-lo, mas sabiam o que a sirene traria consigo.
E pouco tempo depois, conseguiram ouvi-lo: a caça ao homem começara. O troar de quase dois mil pares de botas calcando o terreno, os oficiais superiores alternando entre impropérios e ordens lançadas numa voz rosnada — aos gritos, porque, dado o que acontecera uns dias antes, outra fuga era uma humilhação —, os cães espumando ao desencantarem qualquer sinal de frágil vida humana a estremecer, duzentos cães, treinados e apurados precisamente para isto. Os SS passariam revista a cada encosta e a cada buraco; passariam a pente fino cada arbusto, examinariam cada vala e apontariam uma luz para dentro de cada trincheira da extensa metrópole de morte que era Auschwitz. A busca começara e não acabaria senão daí a três dias.
Fred e Walter conheciam este grau de precisão porque os nazis seguiam um protocolo de segurança do qual nunca se desviavam. Esta parte exterior do campo, onde os prisioneiros trabalhavam como escravos, era vigiada apenas durante as horas de luz do dia, quando os detidos lá estavam. Não era necessário vigiá-la à noite, quando todos os prisioneiros eram levados de volta para o campo interior, com as suas duplas filas de cerca eletrificada. Havia uma única exceção a esta regra. Se faltava um detido, e se presumisse que tentara escapar, a SS não desmobilizava o anel exterior de postos de vigia armados, estando cada torre de vigia ocupada por um homem de metralhadora.
Esta situação manter-se-ia assim durante setenta e duas horas, enquanto os SS procuravam. Depois disso, concluiriam que o fugitivo, ou fugitivos, tinham escapado: daí em diante, seria responsabilidade da Gestapo vasculhar a região mais vasta em redor e encontrá-los. Os homens que vigiavam o cordão exterior receberiam ordens para regressar, deixando-o desguarnecido. O que queria dizer que havia um buraco nas defesas nazis. Não propriamente um buraco, mas uma falha. Se um prisioneiro conseguisse esconder-se na área exterior durante esses três dias e noites depois de soar o alarme, enquanto os SS e os seus cães se esforçavam por encontrá-lo, estaria no quarto dia num campo exterior que não estava vigiado. Poderia escapar.
Walter ouviu uma voz familiar. Aquele bêbedo assassino, o UnterschayrührerBuntrock, estava ali perto, dando ordens a uns subalternos desgraçados.
— Vejam atrás dessas tábuas — dizia ele. — Puxem pela cabeça! Fred e Walter prepararam-se. Os SS aproximaram-se. Os dois homens conseguiam agora ouvir as botas trepando para as tábuas lá em cima, polvilhando pó para dentro da cavidade lá em baixo. Os perseguidores estavam tão perto que Walter lhes conseguia ouvir a respiração pesada.
Depois vieram os cães, raspando na madeira, fungando e farejando, passando de uma tábua para a outra, o seu arfar claramente audível através das paredes e do teto de madeira. Será que o prisioneiro soviético estava errado quanto às propriedades deste tipo de tabaco? Ou teria Walter percebido mal as instruções? Porque não foram os animais afugentados pelo cheiro?
Desta vez, Walter pegou na faca e não na lâmina; queria uma arma que pudesse usar contra outros e não contra si mesmo. Sentia o pulsar do coração.
Mas, milagrosamente, o momento passou. Os SS e os seus cães afastaram-se. No interior daquele duplo caixão exíguo que era o seu esconderijo, Fred e Walter permitiram a si mesmos o conforto de um sorriso.
O alívio não durou muito. Toda a tarde e aquela primeira noite, os sons de passos e de cães a ladrar aproximar-se-ia, depois afastar-se-ia; subindo e descendo, mais alto e depois mais baixo, depois de novo mais alto, conforme os homens iam voltando a esta zona do campo. Walter gostava de pensar que pressentia frustração nas vozes dos SS enquanto sondavam o mesmo terreno, uma e outra vez. Ouvia-os a praguejar ao procurarem segunda e terceira vez numa pilha de tábuas ou de telhas, varrendo mais uma vez uma área que já tinham varrido duas vezes.
Ambos os homens desesperavam por poderem fletir os músculos ou esticar-se, mas quase não se atreviam. Walter ansiava poder aquecer as mãos e os pés gelados, mas até o mais ligeiro movimento lhe aprisionava todo o corpo numa cãibra muito dolorosa. Se um dos dois dormitava, o outro permanecia tenso, à escuta de qualquer indício de movimento ali perto. Nem o sono trazia descanso algum, apenas pesadelos de um presente sem fim, aqui presos nesta caixa subterrânea: um inferno debaixo do chão, ainda pior lá em cima.
Ouviram o início do turno da manhã, os sons familiares do trabalho forçado. Nesta área construía-se, e em breve começaram a ecoar os sons do martelar da madeira, do retinir do metal, do ladrar dos cães e dos gritos dos SS e dos seus subalternos. Fred e Walter calculavam que o risco de a pilha de madeira ser mexida por trabalhadores escravos era mínimo — estas tábuas não estavam destinadas a ser usadas nos próximos tempos — mas os dois homens dificilmente conseguiam relaxar. Passaram talvez umas dez horas antes de o ruído acalmar e o Kommando ser enviado de volta para os barracões.
Ao longo desse tempo, os dois homens mantiveram-se imóveis, sabendo que, no campo interior, os SS estariam a procurar em cada barraca, em cada loja, em cada sala de lavagem, em cada latrina, em cada oficina, revirando todos os barracões e pondo-os de pernas para o ar. A busca seria sistemática: o método era procurar numa série de círculos cada vez mais pequenos, com os cães pisteiros no centro da matilha, cerrando fileiras em torno da presa. E assim que chegassem ao centro do círculo mais pequeno, começariam tudo de novo.
Os nazis estiveram tão perto, tantas vezes, que Walter considerou surpreendente ele e Fred não terem sido descobertos há horas. Fred via as coisas de maneira diferente. «Os filhos da mãe são burros!», dizia ele quando era seguro quebrar o silêncio. Talvez fosse fanfarronice. Ao fim de vinte e quatro horas, Fred já não conseguia comer ou beber, tal como Walter. Tinham acondicionado algumas provisões na estreita passagem: algum pão, cuidadosamente racionado em porções, um pouco de margarina e uma garrafa com café frio. Mas, com os nervos em franja, nenhum deles tinha estômago para comer.
Fosse lá como fosse, as horas arrastaram-se ao longo de sábado até segunda-feira. Agora, os dois homens decidiram arriscar. Pela primeira vez desde que as sirenes se tinham feito ouvir, emergiram da cavidade secundária para a relativa largueza que havia no bunker. Apesar de Walter ter procurado tapar as frestas na parede e no teto com o tabaco preparado, não tapara tudo: alguma da gelada névoa matinal escorrera para dentro.
Estavam muito rígidos por terem passado tanto tempo imóveis. Fred não conseguia mexer o braço direito e perdera toda a sensação de toque nos dedos. Walter massajou os ombros do companheiro para pôr o sangue a circular. Não se demoraram muito tempo no espaço mais amplo.
Os SS continuavam a busca. Fred e Walter sentiram-se congelar ao ouvirem dois homens, alemães, a poucos metros de distância. Estava-se ao princípio da tarde, e conseguiam ouvir tudo o que os homens diziam.
— Eles não podem ter fugido — dizia um. — Ainda devem estar no campo.
Começaram a especular acerca dos prováveis esconderijos de Fred e de Walter. Percebia-se que um dos homens apontava para alguma coisa:
— E que tal aquela pilha de madeira?
Walter e Fred permaneceram imóveis.
— Achas que podem estar escondidos ali debaixo? — perguntou a segunda voz. — Talvez tenham feito ali um abrigo.
O primeiro homem considerou isso improvável.
— Afinal de contas — refletiu em voz alta, e não sem razão —, os cães já aqui estiveram várias vezes. — A não ser, é claro, que os judeus desaparecidos tivessem arranjado alguma forma engenhosa de despistar o faro dos cães.
Depois, algumas palavras de determinação, uma declaração de que «vale a pena tentar» e o som de dois homens a tentarem aproximar-se. Uma vez mais, Walter pegou na faca. Fred imitou-o.
Os dois alemães treparam até ao cimo da pilha de madeira, que começaram a desfazer, tábua a tábua. Retiraram a primeira camada, depois a segunda, e depois, com algum esforço, a terceira e a quarta.
Se tivesse acontecido dez segundos mais tarde, teria sido tarde demais. Não era a primeira vez, e na verdade talvez fosse a oitava ou a nona vez, que a vida de Walter era salva por um momento fortuito de sorte, neste caso um momento que não poderia ter acontecido em ocasião mais propícia.
Ao longe, rebentou uma confusão qualquer, ouvindo-se vozes distantes mas excitadas. Fred e Walter ouviram os homens acima de si parar, parecendo aguçar o ouvido para perceber o que estava a acontecer. Passou um segundo. Depois outro. Por fim, um dos dois homens disse:
— Apanharam-nos! Vamos... Despacha-te.
E, lá em baixo, Fred e Walter ouviram os homens que estavam prestes a descobri-los afastar-se.
A noite de domingo transformou-se na manhã de segunda-feira. Agora, era a contagem decrescente, enquanto Walter seguia os ponteiros do seu relógio, sabendo que, se conseguissem aguentar um pouco mais...
O turno da manhã regressou, trazendo consigo o mesmo bulício, as mesmas vozes, humanas e animais, durante mais dez horas, cada minuto transcorrendo no ritmo mais agonizante possível.
Por fim, o Kommando regressou aos barracões. Os três dias estavam quase no fim.
As seis e meia da tarde, Walter e Fred ouviram por fim o som por que ansiavam. Fazendo-se ouvir bem alto, anunciava: «Postenkette abiehen! Postenkette akieheni» Era a ordem para desmobilizar a grasse Postenkette, a linha exterior de sentinelas, ordem gritada de uma torre para a seguinte e para a seguinte, em torno de todo o perímetro, cada vez mais alto ao aproximar-se, e baixando de intensidade ao afastar-se, até cumprir por fim todo o percurso. Para Fred e para Walter, aquelas palavras, gritadas pelos homens que os tinham escravizado, e assassinado centenas de milhares de pessoas do seu povo, soava à mais doce das músicas. Era uma admissão de derrota pela SS, o reconhecimento de que não tinham conseguido recapturar os dois prisioneiros perdidos.
De acordo com o protocolo da SS, o anel exterior de torres de vigia foi esvaziado, o cordão de vigilância encolheu para conter apenas o campo interior. Walter conseguia ouvir os guardas da SS que regressavam ao círculo mais pequeno de torres de vigia. Era esta a grande falha no sistema de Auschwitz, o buraco pelo qual ele e Fred tinham há muito planeado fugir.
Sentiam-se muito tentados a apressar-se, mas contiveram-se. Primeiro, tinham de sair da cavidade lateral. Para Walter, cada centímetro em frente enviava-lhe uma dor aguda ao longo dos braços, das pernas, do tronco e do pescoço. Tinha os músculos rígidos e frios, e os seus primeiros movimentos foram incertos e hesitantes, como se o corpo tivesse de reaprender funções motoras básicas. Demoraram ambos algum tempo, mas por fim encontravam-se na fossa principal. Agacharam-se e esticaram-se, rodando os pulsos e os pés; abraçaram-se mutuamente na escuridão.
Depois, respiraram fundo e empurraram as palmas das mãos contra o teto, tentando dar um empurrão à tábua do fundo. Mas esta não se mexia. Tentaram noutro ponto do teto. Nada. Seria esta a falha fatal no seu plano? Ter-se-iam acidentalmente encerrado no seu próprio túmulo? Era a única coisa que não tinham praticado, em que nem sequer tinham pensado. Partiram do princípio de que, se se conseguia empilhar uma tábua, também se conseguia tirá-la. Mas levantar tábuas é fácil feito de cima, quando se pode tirar uma de cada vez. De baixo, não é assim, quando o peso de toda a pilha faz pressão para baixo.
Fazendo força ao mesmo tempo, gemendo de dor, conseguiram levantar uma das tábuas do fundo, não mais do que uns centímetros. Mas foi o suficiente para conseguirem um ponto de apoio. Agora, conseguiam agarrá-la, apenas o suficiente para a deslocar para o lado. Fred virou-se para Walter com um sorriso.
— Graças a Deus pelos alemães que quase nos encontraram —sussurrou. — Se não tivessem deslocado aquelas tábuas, estaríamos encurralados.
Levou mais tempo do que qualquer um dos homens imaginara, mas por fim havia uma abertura no que era o teto da sua casa desde sexta-feira. Vislumbrava-se o céu iluminado pelo luar.
Voltaram a reunir forças, deslocando e empurrando as tábuas até conseguirem, com um esforço imenso, içar-se e sair dali. Por fim, tinham conseguido. Estavam fora daquele buraco no chão.
Mas ainda não estavam fora do campo. Havia ainda muito terreno para percorrer, para se tornarem, que se saiba, os primeiros judeus a conseguir escapar de Auschwitz sem serem apanhados. Ainda assim, para o adolescente Walter Rosenberg, era um sentimento emocionante — mas não um sentimento completamente novo. Porque esta não era a sua primeira fuga. E não seria a última.
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