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27 de dezembro de 2019
Como todas as histórias de terror em transportes suburbanos, a minha começa à luz ténue do início da manhã, ou, pelo menos, oficialmente.
Kit não está quando chego ao cais de St Mary’s e apanho o barco das 7h20 para Waterloo, mas isso não é invulgar; teve uma considerável porção de dias de baixa autoprovocada nesta época natalícia. Uma viagem de barco de manhã cedo exige um estômago forte na melhor das alturas, mas para uma ressaca grave é tortura da água (acreditem, eu sei). Em todo o caso, ele chega sempre depois de mim. Embora moremos a apenas cinco minutos de distância e ele passe por Prospect Square a caminho do cais, desistimos de ir juntos logo na primeira semana, quando a sua observância espetacularmente má das horas combinadas e a minha pontualidade neurótica se tornaram evidentes.
Não, Kit prefere chegar no momento de fecharem a prancha de embarque, a erguer a mão numa saudação, confiante de que reservei os nossos lugares preferidos, o conjunto de quatro, a bombordo, junto ao bar. Em St Mary’s, o embarque faz-se pela parte da frente do barco e, por isso, observá-lo-ei a descer o corredor, as mãos a raspar nos postes de metal, tanto por uma questão de estilo como de equilíbrio, antes de deslizar para o meu lado com um sorriso agradável. Mesmo que tenha estado acordado até tarde, na farra, cheira sempre bem, como um pão artesanal com nozes e figos («Kit cheira tanto a millennial», disse certa vez Clare, o que constituiu quase de certeza uma crítica, a mim e ao meu cheiro geração X a, não sei, biscoitos de cão rançosos).
Olha para nós, dirá, a examinar distraído os outros passageiros, bem instalados nos assentos de pele creme. É um dos seus chavões: Olha para nós. Pobres dos idiotas apinhados no comboio de superfície ou a sufocar no metro, nós fazemos a viagem de catamarã. Ali fora há gaivotas.
E esgotos também, retorquirei, porque andamos sempre na galhofa sardónica, Kit e eu.
Bem, costumávamos andar.
Desfaço o nó na garganta no instante em que o barco emite um ribombar repentino de diesel, como se as duas ações estivessem ligadas. No momento da partida, a informação flui com rapidez nos ecrãs — Paragem em Woolwich, North Greenwich, Greenwich, Surrey Quays —, embora, por esta altura, a rota esteja tão gravada na minha mente que presto pouca atenção. Passamos pelas velas prateadas da barreira do Tamisa e pelos antigos agregados de construção civil e armazéns industriais do trecho inicial; logo, estamos no iate clube e seguimos para o primeiro meandro repleto de pequenos barcos, as torres residenciais da península à nossa esquerda, enquanto nos dirigimos para a imensa cabeça branca da Arena O2. Esticado bem alto por cima do rio está o teleférico que liga a península às Royal Docks, mas não vou pensar na única viagem naquilo até à data. No que foi feito naquela noite. No que foi dito.
Bem, talvez só um pouco.
Viro o rosto para o assento vazio ao meu lado, como se, afinal, Kit lá estivesse, a ler-me a mente com os seus pensamentos secretos e impuros.
«Lá volto outra vez na sexta», resmungou ele na segunda-feira à noite, lamentando a insistência da empresa num horário normal de trabalho para esse dia de semana órfão, entre o dia 26 e o fim de semana. «Malditos forretas.» Em geral, quando ele perde o barco, mando-lhe uma pequena mensagem de solidariedade: Noite intensa? Talvez uns emojis de cerveja ou, se tiver participado na sessão de copos, um rosto nauseado. Mas não o faço hoje. Mal tenho usado o telemóvel desde antes do Natal e admito que apreciei a pausa. Aquela velha sensação anos noventa de estar incomunicável.
Passamos agora pelas torres de vidro de Canary Warf em direção a Greenwich, a única aproximação que ainda tem o poder de despertar o meu orgulho londrino: aquelas cúpulas gémeas do Old Royal Naval College, com o parque esmeralda em pano de fundo. Vejo os funcionários do bar servir bolachinhas em forma de floco de neve com cobertura glacé a acompanhar os chás e cafés; o número de pessoas que querem comer estas coisas logo pela manhã é surpreendente, sobretudo da minha faixa etária, nem demasiado jovens para se preocuparem com a silhueta (um tipo de palavra muito Melia), nem demasiado perto do fim para se ralarem com os avisos sobre a sua saúde. Cafeína e açúcar, cafeína e açúcar: lá continua até à hora da primeira bebida, e depois, bem, somos todos marinheiros neste país, não somos? Somos todos copofones.
Só quando atracamos em frente do Cutty Sark pego no telemóvel, volto a familiarizar-me com as comunicações da noite de segunda-feira e do rescaldo das bebidas natalícias das ratazanas de água. Procuro o nome do Kit na caixa de entrada. A última mensagem para ele foi impulsiva e reveladoramente livre de emojis:
Espera tu.
Enviada às 23h38 de segunda-feira, está marcada como lida, mas sem resposta. Houve, no entanto, cinco chamadas não atendidas de Melia, bem como três mensagens de voz. Devia ouvi-las. Porém, escuto a voz da Clare ontem de manhã, a conversa «séria» que tivemos sob um céu metalizado no Norte, a seiscentos quilómetros daqui:
Tens de cortar relações.
Não só com ele, Jamie. Com ela também.
Alguma coisa não bate certo com esses dois.
Agora é que ela me diz. E volto a enfiar o telemóvel no bolso, ganhando mais alguns minutos de inocência.
◊◊◊
Em Surrey Quays, entra a Gretchen. A única ratazana de água feminina, vem muito formal no seu casaco justo de lã azul-petróleo, trazendo uma dessas chávenas de bambu para o café expresso com pouco leite. Embora eu esteja no meu lugar habitual, instala-se na secção central, várias filas à minha frente. Esquisito. Avanço pelo corredor e deixo-me cair no assento ao lado dela. Em geral, não conseguimos escolher um lugar assim com tanta facilidade no das 7h20, mas o barco está meio vazio; dispensando os sacanas felizardos que não têm de regressar ao trabalho senão no Ano Novo, tenho de admitir que o rio não é lugar para se estar com estas temperaturas. É um dos dias mais frios do ano, o bafo visível a sair da boca das pessoas no cais e dos sistemas de aquecimento dos edifícios.
— Olá, Jamie — diz, sem se virar, sem sorrir. As suas pestanas são pernas de aranha azul-marinho e há um esbatimento rosado no branco dos seus olhos.
— Pensei que me estavas a ignorar — replico, alegre. — Bom Natal com a família? — Esteve num sítio qualquer tipo Norwich, se bem me recordo. Há pais saudáveis e pouco complicados, um irmão e uma irmã, um par de sobrinhas e sobrinhos.
Ela encolhe os ombros, beberrica o café.
— Tem tudo que ver com as crianças, não é? E eu não tenho filhos.
Não há necessidade de explicar isto: estamos ligados, o nosso pequeno grupo, pela falta de filhos, a liberdade de pensarmos em nós antes de em qualquer outra pessoa. De satisfazermos os nossos desejos, de corrermos riscos. Nenhum progenitor faria o que eu fiz neste último ano, ou pelo menos não com tanta prontidão, com tanta imprudência.
— E então ontem? Foste aos saldos?
Gretchen pestaneja, surpreendida, como se eu tivesse sugerido que ela cavalgasse um unicórnio, nua, no meio de Regent Street. Tem a pele clara, é delicadamente feminina, embora, em temperamento, uma mulher que gosta de ser um dos rapazes, que lamenta as complexidades do seu próprio género e considera os homens aliados mais simples (uma generalização perigosa, na minha opinião).
— Estás bem, Gretch?
— Sim, só um pouco cansada.
— Não sei onde anda o Kit esta manhã. Tenho a certeza de que ia trabalhar hoje. Disse-te alguma coisa?
— Não.
Há uma veemência na voz que reconheço, um tom de ressentimento peculiarmente feminino. Já perguntei a mim mesmo, de vez em quando, se poderia haver alguma coisa entre o Kit e ela. Talvez tenha havido alguma indiscrição na noite de segunda-feira, talvez ela esteja preocupada com o que vi. Será que disse alguma coisa que não devia? Meu Deus, os «não devia» estão a crescer: não devia ter ficado tão bêbedo, não devia tê-lo deixado provocar-me.
Não devia ter-lhe enviado aquela última mensagem.
— O que te aconteceu aí? — pergunta, reparando na minha mão direita enfaixada.
— Oh, nada de grave. Queimei o polegar no trabalho. Não te mostrei na segunda-feira?
— Julgo que não. — Reparando na música que silva do altifalante, a lengalenga de melodias natalícias a que temos estado sujeitos desde o princípio de dezembro, a Gretchen geme. — Não aguento mais esta treta das «boas-festas», é tão falso. Sabes que mais? Acho que vou reservar uma viagem para algum sítio com sol. Meto baixa durante uns dias e saio daqui.
— Pode ser caro no Ano Novo.
— Não se eu for para algum sítio que o Ministério dos Negócios Estrangeiros diga que apresenta risco de terrorismo.
Ergo uma sobrancelha.
— De qualquer forma — acrescenta —, o que são mais mil ou duas mil libras quando já estamos no vermelho?
— Verdade.
Mas não quero falar de dinheiro. Nos últimos tempos, é a única coisa que ouço. Passamos pela sede da polícia em Wapping, perto da mudança de zona onde se exige que os barcos rumo a oeste reduzam a velocidade, quando a impaciência dos passageiros começa a aumentar. Estamos a entrar na Londres que o mundo reconhece, a Tower Bridge, a Torre de Londres, o Shard, e, à medida que os pontos de referência sobrevêm, Gretchen e Kit e os seus problemas desaparecem enjoadamente.
— Diverte-te no Afeganistão, se fores — digo quando ela se prepara para desembarcar em Blackfriars, a fim de ir para o escritório perto de St Paul.
Ela sorri.
— Estava a pensar mais em Marrocos.
— Muito melhor. Depois diz-nos qualquer coisa.
O meu sorriso gracejador retrai-se mal as portas se fecham atrás dela, apoio a face no encosto da cabeça e olho através da janela. Sete e cinquenta da manhã e já estou de rastos. A água está agitada quando navegamos em direção a Waterloo, chupando os muros com as suas gengivas sujas castanhas, e o deslumbramento de luzes junto ao rio que cintila de forma tão mágica ao anoitecer revela ser o que é, uma teia fraudulenta de cabos. É tão rápido sair em Westminter Pier e atravessar a ponte como é esperar que o barco faça um U e atraque no Eye, mas escolho ficar sentado. Mal registo a oscilação e o rolar que outrora me deixavam alarmado ou, aliás, a própria grande roda, a sua física outrora aparentemente milagrosa. Desembarco, ignoro as pessoas que esperam de bilhete na mão e caminho devagar, a sentir uma tristeza súbita pela rapidez com que o cérebro transforma o maravilhoso em rotina: trabalho, amor, amizade, ir para o trabalho de catamarã. Ou serei só eu?
É precisamente nesse momento, com aquele pensamento, ao ritmo da minha passada, que um homem avança e me mostra algum tipo de cartão de identificação.
— James Buckby?
— Sim. — Paro e olho para ele. Alto, vinte e muitos anos, mestiço. Traje executivo informal, pele delicada, olhos límpidos.
— Agente detetive Ian Parry, Polícia Metropolitana. — Aproxima a identificação do meu rosto, para poder ver a faixa azul característica, as letras brancas, e logo o meu coração lateja com uma sucção horrível, como se fosse feito de tentáculos, não cavidades.
— Há algum problema?
— Pensamos que pode haver, sim. Christopher Roper foi dado como desaparecido. Depreendo que seja um bom amigo seu?
— Christopher? — Levo um instante a ligar o nome ao Kit. — O que quer dizer com desaparecido? — Agora começo a tremer. — Quero dizer, reparei que não estava no barco, mas pensei só que... — Hesito. Na minha mente, vejo o ecrã do telemóvel, alertas para aquelas chamadas não atendidas da Melia. O seu rosto em forma de coração, a sua voz húmida no meu ouvido.
Somos diferentes, Jamie. Somos especiais.
O tipo faz um gesto para a muralha do rio à minha esquerda, onde um colega se destaca dos turistas, a observar-nos. À paisana, o que significa CID, uma investigação criminal. Li algures que a polícia só aparece aos pares se achar que existe risco para a sua segurança; é isso que me consideram?
— A Melia deu-vos o meu nome, suponho?
Sem comentar, o tipo que me montou a emboscada concentra-se em separar-me dos grupos que se juntam e dispersam à entrada do cais, detentores de uma centena de propósitos preferíveis ao meu.
— Então, se pudermos incomodá-lo por um minuto, Senhor Buckby?
— Com certeza.
Enquanto me deixo guiar em direção ao colega, é naquela expressão recatada e antiquada que me fixo. Incomodá-lo por um minuto, como se incomodar fosse a insignificância passageira de uma ideia, uma pequena diversão numa manhã de segunda-feira.
Ora, como se verifica, não é o raio de nenhuma das coisas.
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27 de dezembro de 2019
Bem, pelo menos não me levam para a sua base em Woolwich.
O detetive Parry sugere que vamos para o meu local de trabalho, «se for mais conveniente?» Pretendiam apanhar-me em casa antes de eu sair, acrescenta, mas tinham ficado presos no trânsito e haviam dado meia volta no carro, de facto, perseguido o barco ao longo do Tamisa. Suponho que devia agradecer-lhes por não terem embarcado e me terem prendido em frente dos meus companheiros de viagem.
Acalma-te, Jamie. Ninguém disse nada sobre prisão.
— Então não preciso de um advogado para isto?
— Não, é só uma conversa informal por enquanto — diz o segundo detetive (por enquanto?). De pele clara, é mais baixo e mais esguio do que o colega, um pouco menos educado. Alguns anos mais velho também, tem uns trinta e tal, diria. Enquanto Parry dá a ideia de ter nascido para deter suspeitos, este aproxima-se mais do meu modelo de homem. Menos orientado para os objetivos.
Não sejas idiota. Não estão todos os detetives orientados para os objetivos? Esta questão «informal» será uma ilusão destinada a apanhar o tipo de segredos que se deixam escapar e que não se revelam com tanta facilidade numa sala de interrogatório, com algum advogado desmancha-prazeres à mão para aniquilar qualquer forma de averiguação pouco ortodoxa.
— Para dizer a verdade, preferia não ir para o trabalho. É um pequeno café e não há nenhum sítio onde possamos conversar. — A ideia de me espremer na sala dos funcionários, pouco mais do que um corredor com cacifos, com dois detetives da Polícia Metropolitana de Londres, enquanto a Regan, a gerente e seguidora entusiasta de notícias sobre crimes locais, ronda lá fora a vibrar de curiosidade, é excruciante. — Podemos descobrir algum lugar tranquilo aqui perto? Ficaria muito agradecido. — A implicação é que serei mais cooperante e, para meu alívio, o estratagema funciona.
— Muito bem, não vejo porque precisamos de incomodar os seus clientes — diz o segundo tipo.
Não posso continuar a chamar-lhe isso; portanto, peço-lhe que repita o nome.
— Andy Merchison. — Fala com vivacidade, como se nos encontrássemos numa festa ou num congresso de vendas. Embora o nome pareça escocês, o seu sotaque é daqueles suaves e neutros, impossíveis de determinar. — Que tal ali em cima? — Avistou um canto no terraço superior do Royal Festival Hall, tão isolado como deserto, visto que o sítio ainda não abriu.
Caramba, vieram atrás de ti tão ridiculamente cedo que os espaços públicos ainda estão fechados!
Acalma-te. É apenas rotina.
— Sim, tudo bem — replico.
Um aceno amigável para um segurança que passa e ficamos sozinhos, sentados a uma mesa e abrigados do vento de dezembro que, a uns quinze metros, faz assobiar a água como um aviso. Ninguém nos consegue ouvir aqui.
— Tenho de mandar uma mensagem à gerente a dizer-lhe que vou chegar atrasado.
Puxo do telemóvel, inclino o ecrã para o resguardar da luz. Os meus olhos captam a mensagem mais recente: um alerta para aquelas mensagens de voz da Melia. Melia Roper agora, mas listada pelo seu nome de solteira, ainda Melia Quinn, para mim.
Recordo Clare ontem à noite, a dizer-me que também tinha chamadas perdidas dela, embora sem mensagem de voz. Deveria ligar de volta?, perguntara, a sua relutância evidente.
Deixa estar, disse-lhe.
Pestanejo, ciente do escrutínio dos detetives enquanto vacilo; reparam com certeza na minha ligadura, mudada esta manhã, mas já suja. Seleciono o contacto da Regan, que, por esta altura, já terá tratado das entregas de leite, pães e pastelaria e estará a moer os primeiros pedidos de café. Tem o hábito de chegar meia hora mais cedo, preparar um matcha de qualidade e abrir o café sozinha. O apartamento que partilha parece ter as condições de um hostel, e aqueles trinta minutos antes de eu chegar são os únicos que terá o dia inteiro para estar sozinha numa sala.
Vou chegar atrasado, desculpa. Fito o ecrã como se a resposta fosse surgir de imediato, alguma coisa para me salvar, mas claro que ela não terá tempo de olhar para o telemóvel. Por volta das oito e meia, a fila ultrapassa a porta.
— Tudo resolvido? — pergunta o detetive Parry com alguma irritação, como se eu estivesse a gozar. É óbvio que é menos obsequioso que o colega e, mal pouso o telemóvel, lança mãos à obra. — Então, segundo a Senhora Roper, o marido não chegou a casa na noite de segunda-feira e o senhor foi a última pessoa a vê-lo…
Há uma pausa significativa na qual a expressão com vida deveria entrar.
Respondo com educação.
— Quer dizer no barco para casa? Sendo franco, a Melia não estava connosco para saber quem foi essa pessoa.
Mas esse pedantismo nem lhe faz cócegas.
— Membros da tripulação testemunharam que desembarcaram os dois e também falámos com outro passageiro que vos viu juntos, sozinhos. A Senhora Roper passou os últimos dias a contactar família e amigos e tem a certeza de que mais ninguém o viu depois disso.
— Também tenho umas chamadas não atendidas dela — concedo. — Ainda não tive oportunidade de lhe telefonar.
Penso nesse outro passageiro. É óbvio que não é a Gretchen, visto que acabei de a encontrar e ela não mencionou ter falado com a polícia. Talvez o Steve? A última pessoa, além de Kit, que me lembro de ver, desembarcou em North Greenwich, quinze minutos antes de nós. Está de folga até à semana que vem, mas quase de certeza que me telefonaria ou enviaria uma mensagem se a polícia o tivesse contactado.
Continuo sereno.
— Calculo que já tenham verificado o vídeo de segurança do barco?
— Já, sim. Então, a sua recordação da noite de segunda-feira...? — exorta Parry.
— Apanhámos o último barco para casa juntos, é verdade. Entrámos, com outras pessoas, em Blackfriars, depois de umas bebidas natalícias no Henry’s em Carter Lane.
— E quem são essas pessoas?
— Gretchen Miles e Steve Callister. Conhecemo-nos no barco nas viagens entre casa e emprego, tomámos uns copos algumas vezes. Sentamo-nos sempre juntos.
Os nomes não parecem constituir novidade para eles, embora Merchison rabisque um apontamento que não consigo decifrar. Ambos os detetives têm grandes blocos A4 à frente, mas só ele puxou de uma caneta.
— Mas não era assim tão tarde quando chegámos a St Mary’s, o último barco atraca às onze e meia. Com certeza que mais alguém deve ter visto o Kit depois disso?
— É o que tentamos descobrir — diz Parry, franzindo o sobrolho. Percebo que me está a achar inusitadamente otimista em relação a um amigo dado como desaparecido. — O senhor e o Senhor Roper passaram por alguém na rua quando subiram do cais?
— Ninguém de que me lembre. Na realidade, não viemos juntos, portanto, ele pode ter passado por alguém.
O olhar dele aguça-se.
— Não vieram juntos, apesar de viverem a algumas ruas um do outro?
— Não. Em geral fazemos isso, mas... Ora, é óbvio que viram no vídeo que tivemos uma pequena discussão no barco? Eu pirei-me dali. Não queria passar nem mais um minuto com ele. — A declaração paira entre nós, quase consigo ouvi-la a rodopiar numa sala de tribunal forrada de madeira — não queria passar nem mais um minuto com ele — e não fico surpreendido com o olhar de dúvida que eles trocam.
— E essa discussão foi sobre o quê? — pergunta Merchison. Suspiro. Sinto a garganta dorida e áspera.
— Nada de especial. Estávamos os dois a cair de bêbedos. Mas eu não queria ficar ali a discutir. Ia levantar-me muito cedo na manhã seguinte para apanhar o comboio em King’s Cross, e, como disse, presumi que ele me tivesse seguido.
— O senhor e o Senhor Roper têm o hábito de discutir? — questiona Parry. Ao contrário do colega, que se remexe constantemente na cadeira, tem a imobilidade e o olhar penetrante de uma coruja.
— Não, de forma alguma. Somos amigos. Estávamos bêbedos, só isso. — Sem pensar, levo a mão enfaixada ao rosto e, claro, ele faz a associação que eu preferia que não fizesse.
— Magoou-se nessa briga com o seu amigo, foi?
— Não. É uma queimadura da máquina de café do trabalho. Por falar nisso, há alguma hipótese de arranjarmos um café? — O efeito do primeiro, um expresso duplo em casa, já passou. Em geral, a esta hora já estou no trabalho e a preparar o segundo ou, se tiver sorte, a Regan oferece-me um à chegada. — Escutem, deve haver câmaras de segurança entre o cais e a rua principal, portanto, porque não as verificam e veem que aconteceu como vos estou a contar?
Sei que o trajeto para Prospect Square me fez passar pelo menos por outra câmara de vigilância.
— Talvez possam perguntar no bar no Royal Way? Chama-se Mariners, na esquina da Artillery Passage, a menos de dois minutos de onde o barco atraca. Vamos ali com frequência quando desembarcamos tarde. Talvez ele tenha lá ido sozinho desta vez. — Faço uma pausa, a convencer-me. — Sim, aposto que entrou para tomar uma bebida, encontrou alguém e, sabem, continuou a sua noite.
A caneta de Merchison arranha o papel durante todo este discurso e, quando levanta a cabeça, vejo um clarão de interesse nos seus olhos.
— Está a dizer que pensa que ele passou a noite com outra mulher que não a sua?
— Se calhar. Se não foi para casa, então diria que é uma possibilidade.
— Várias noites é uma possibilidade? Todos os feriados do Natal?
O ceticismo de ambos os detetives é fácil de constatar. Encolho os ombros.
— Bem, não estou a dizer que ele fugiu com uma amante, só que pode ter continuado a festejar, envolvendo-se em alguma coisa, e agora está a curar a bebedeira. Quero dizer, deve ter estado em algum lugar nos últimos dias, não é? Ele não é um solitário, é um animal muito social.
Uma vez, no verão, algumas semanas antes do casamento, eu e o Kit ficámos fora a noite toda. Foi numa sexta-feira e saímos do barco em North Greenwich, descobrimos um clube perto do O2 que permanecia aberto até ao amanhecer. Lembro-me que havia uma marcha com fins beneficentes que começava à meia-noite e foi surreal ver milhares de mulheres de leggings a passar, todas de olhos brilhantes, e depois a voltar a coxear decorridas seis horas, num miasma de exaustão. Melia, que estava em casa de uma amiga do outro lado da cidade, não se encontrava por perto para desaprovar, mas Clare cuspia sangue quando apareci em casa às oito da manhã. «Ele é jovem, Jamie, aguenta fisicamente, mas tu podes ter uma trombose!» E, durante o resto do dia, a minha caixa de entrada silvou com links para artigos sobre homens de meia-idade que caíam mortos depois de uma orgia de bebida.
Não digo nada disto à polícia. Em vez disso, olho de um detetive para o outro, espalhando a minha integridade de forma equilibrada entre eles.
— A sério, ele vai aparecer a qualquer minuto, com toda a probabilidade, nem sequer arrependido por vos ter feito perder tempo. Por conseguinte, eu devia ir trabalhar, a minha colega deve ter dificuldades sozinha. Além disso, não é o tipo de trabalho em que nos pagam se não estivermos lá, sabem?
Segue-se um momento breve e doce, em que penso que os convenci e que eles vão dizer: Está bem, vá lá então, as nossas desculpas pela reação excessiva. Mas não. Talvez estejam a recordar-se do rosto da Melia, perturbado com a ideia do seu marido ferido ou raptado ou pior. Ela é tão insinuante, mesmo numa aflição, de olhos vermelhos e nariz a pingar; tão persuasiva.
É óbvio que ela te persuadiu, Jamie, disse a Clare, não há muito tempo.
— Se não se importar de esclarecer mais algumas lacunas — sugere Merchison. — Ajudaria se falássemos ao telefone com a sua gerente?
— Ou talvez seja melhor afinal irmos à esquadra — diz Parry.
Lança um olhar consternado a Merchison e percebo que estão a contornar as regras ao falar comigo assim de forma não oficial. Com toda a probabilidade, nem sequer é legal. Mas a última coisa que quero é que as minhas palavras sejam gravadas e passadas nalgum sistema de deteção de mentiras (isso existe mesmo?). Ou que um exame médico revele as nódoas negras feias na minha clavícula, escondidas em segurança pela gola alta da camisola, prova da verdadeira violência daquela rixa com o Kit.
— Não, por favor. — Aninho-me dentro do casaco, dobro os dedos dentro dos punhos para me aquecer. — O que precisarem. Tenho só de informar o meu local de trabalho.
— Obrigado, James — diz Merchison —, agradecemos a sua colaboração.
— Jamie. Ninguém me chama James.
E ninguém chama Christopher ao Kit. A utilização pela polícia dos nomes completos realça apenas o facto de eles não saberem nada sobre nós, sobre isto.
— Jamie. Então, que tal tornarmos isto mais fácil e começarmos do princípio? Diga-nos tudo o que há a saber sobre o Senhor Roper.
Caramba. Eles, mais do que ninguém, devem saber que «tudo o que há a saber» nunca é tão simples como parece. Enquanto uma gaivota grasna por cima de nós, aceno com a cabeça em anuência.
— Há quanto tempo se conhecem?
— Há quase um ano — respondo. — Desde o fim de janeiro.
— Janeiro deste ano? — Erguem ambos a cabeça, surpreendidos. — Não há muito tempo então.
— Não. — E é verdade, não é tempo nenhum.
Por outro lado, parece o ano mais longo da minha vida.
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