Charlie Parker Plays Bossa Nova
«Bird» está de volta.
Que notícia fantástica! Sim, é isso, Bird, aquele Bird que todos vocês conhecem e amam está de volta, agitando as suas poderosas asas. Nos quatro cantos do planeta – de Novosibirsk a Tombuctu –, toda a gente vai andar de olhos postos no céu a vigiar a silhueta desse magnífico pássaro e a aplaudir entusiasticamente. E a ofuscante luz do Sol inundará de novo o mundo!
*
Estamos em 1963. Passaram-se anos desde a última vez que as pessoas ouviram pronunciar o nome de Charlie «Bird» Parker. «Mas onde para Bird e o que anda ele a tramar?», perguntam à boca pequena os amantes do jazz espalhados pelo mundo inteiro. Não é possível que tenha morrido! Afinal, não fomos informados da sua morte. «Mas sabem que mais?», objetará alguém. «A verdade é que ninguém disse que ele estava vivo.»
Rumores postos recentemente a circular referem que a mecenas de Bird, a baronesa Nica, lhe deu guarida na sua mansão, onde o músico lutou contra várias doenças. Os fanáticos de Bird têm perfeita consciência de que ele era um drogado. Viciado em heroína pura, esse letal pó branco. A fazer fé na «cacha», além de toxicodependência batalhava contra uma pneumonia aguda, uma série de maleitas internas, sintomas de diabetes e, em última instância, sinais de distúrbios mentais. Mesmo que tivesse a sorte de sobreviver, era ponto assente que estava condenado a ser um inválido e jamais poderia voltar a pegar num instrumento. E foi assim que Bird deixou de ser visto em público, transformando-se numa lenda do jazz. Corria o ano de 1955.
Avancemos até ao verão de 1963. Charlie Parker voltou a pegar no saxofone alto para gravar, num estúdio nas proximidades de Nova Iorque, um álbum chamado Charlie Parker Plays Bossa Nova!
Dá para acreditar?
É bom que acreditem, porque aconteceu mesmo.
Assim rezava o início do texto que escrevi nos meus tempos de estudante. Era a primeira vez que alguém publicava um artigo assinado por mim e que me pagava alguma coisa, embora não passassem de uns trocos.
Claro que não existe nenhum LP com o título Charlie Parker Plays Bossa Nova. Charlie Parker morreu a 12 de março de 1955, e a bossa nova só veio a tornar-se popular nos Estados Unidos em 1962, graças às atuações de Stan Getz e outros que tais. Imaginando que Bird ainda era vivo nos anos sessenta, e que se interessara pela bossa nova, criei uma pequena ficção. Baseei-me num disco imaginário para escrever a minha crítica.
O editor da revista literária da universidade para o qual redigi o meu parecer musical nunca duvidou por um segundo da existência do álbum e publicou-o como se de uma vulgar recensão se tratasse. O irmão dele, meu amigo, que foi quem lhe vendeu o peixe, jurou a pés juntos que o meu material era de primeira água e convenceu-o a utilizá-lo. (A revista foi à falência ao fim de quatro números. O meu artigo saiu no terceiro.)
A prosa por mim cozinhada baseou-se numa simples premissa: descoberta por mero acaso nos arquivos da editora, uma gravação preciosa de Charlie Parker vira recentemente a luz do dia. Não é para me gabar, mas considero a história plausível. Não só o estilo constituía um violento murro no estômago, como os pormenores eram bastante verosímeis. A ponto de eu próprio ter sido levado a crer na realidade palpável do quarenta e cinco rotações.
A publicação do artigo deu azo a um considerável coro de reações. Estamos a falar de uma pequena revista cultural publicada pela universidade, normalmente ignorada pelo grande público. Todavia, Charlie Parker contava com uma numerosa legião de fãs, e a redação recebeu várias cartas manifestando-se contra a «piada de mau gosto» e a atitude «irreverente e impensada». Faltará sentido de humor às criaturas que por aí pululam? Ou poderá o meu sentido de humor ser considerado retorcido? Um verdadeiro busílis. Algumas pessoas, pelos vistos, levaram as minhas palavras a sério e acorreram às lojas de música para comprar o disco.
*
O chefe de redação armou um pé de vento e queixou-se de ter sido ludibriado. Com toda a sinceridade, não lhe passei a perna; limitei-me a omitir informações. Para falar com franqueza, acho que ficou satisfeito com a celeuma (negativa, é certo) provocada pelo artigo. A prová-lo está o facto de me ter confidenciado que gostaria de ler mais trabalhos da minha lavra, quer fossem recensões ou ficção original. (A revista caiu a pique antes de ter tido oportunidade para lhe revelar todo o meu talento.)
O artigo rezava como segue:
(…) Quem teria imaginado uma parceria insólita como esta: Charlie Parker e Antônio Carlos Jobim, juntos e ao vivo? Jimmy Raney na guitarra, Jobim ao piano, Jimmy Garrison no contrabaixo, Roy Haynes na bateria. Querem secção rítmica mais prodigiosa? Ler estes nomes é quanto basta para pôr o nosso coração a bater a mil. E no saxofone alto, naturalmente, Charlie «Bird» Parker.
Aqui ficam as faixas:
Lado A
«Corcovado»
«Once I Loved (O Amor em Paz)»
«Just Friends»
«Bye Bye Blues (Chega de Saudade)»
Lado B
«Out of Nowhere»
«How Insensitive (Insensatez)»
«Once Again (Outra Vez)»
«Dindi»
Tirando «Just Friend» e «Out of Nowhere», estamos a falar de músicas de Tom Jobim bem conhecidas. As duas que não foram compostas por ele são versões populares, pertencentes ao reportório habitual, imortalizadas por Parker em atuações anteriores, recriadas aqui ao ritmo da bossa nova, num estilo radicalmente novo. (Nesses dois temas, não foi Jobim o pianista, mas sim o veterano e versátil Hank Jones.)
Aqui chegados, impõe-se a pergunta: que reação desperta nos apaixonados pelo jazz um título como Charlie Parker Plays Bossa Nova? A uma exclamação inicial de surpresa, imagino, seguem-se sentimentos mistos de curiosidade e alegria gerados pela expectativa. Mas, qual nuvem funesta pairando sobre uma montanha até então iluminada pelo sol, não tarda que se instale uma certa desconfiança.
«Espera aí um minuto…», contesta o leitor. «Charlie Parker a tocar bossa nova? A sério?!», desconfia o leitor. Teria Charlie Parker gosto em dedicar-se a música dessa por sua alta recreação? Ou, por razões comerciais, terá ele sido convencido por uma discográfica a fazê-lo, só porque estava na moda? Vamos partir do princípio de que Bird se interessou genuinamente pela bossa nova. Será que a linguagem daquele sax alto, bebop por excelência, estaria em harmonia com as sonoridades cool da bossa nova, originária da América Latina?
Adiante. Ao fim de oito anos de silêncio, continuaria Parker a ser um mestre na arte de bem dominar o seu instrumento? Conseguiria o músico atingir ainda um altíssimo nível no que toca ao virtuosismo e à criatividade?
Para ser franco, não pude deixar de me sentir desconfiado. Embora estivesse em pulgas para conhecer as canções, temia ficar desiludido. Porém, após ter ouvido o disco repetidas vezes, uma coisa posso afiançar-vos, sem reservas de nenhuma espécie: estou disposto a subir ao topo de um arranha-céus e a proclamar bem alto a evidência. Se gostam de jazz, melhor dizendo, se gostam de música, oiçam sem falta este disco fascinante, fruto de uma alma ardente e de uma mente lúcida.
(…)
O que mais me seduz neste álbum é o fabuloso diálogo musical entre o estilo simples, harmonioso, do piano de Tom Jobim e o fraseado desinibido e eloquente de Bird. Podem objetar e contrapor que a voz de Tom Jobim (aludo aqui à voz do seu instrumento) e a voz de Bird possuem características únicas e irrepetíveis, visando propósitos distintos. Estamos na presença de duas vozes sobremaneira diferentes, de tal modo que se torna difícil descortinar pontos em comum. Acresce que nenhum dos músicos se esforça por recriar o seu estilo tendo em vista imitar o outro. Essa característica – o estar fora dos eixos, a sensação de contraste entre as duas vozes – constitui a força impulsionadora na origem desta sonoridade maravilhosa e singular.
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Gostaria que começassem por escutar a faixa de abertura do Lado A, «Corcovado». Em bom rigor, só no final Bird dá um ar da sua graça e agarra no fraseado. O conhecido tema começa com Antônio Carlos Jobim a tocar baixinho, sem acompanhamento, o tema que lhe é familiar. A secção rítmica está ausente. A melodia evoca uma rapariga sentada à janela, mergulhada na contemplação de um belo céu noturno. Consegue-o em grande parte mediante uma série de notas isoladas, intervaladas com acordes básicos. Como se ajeitasse ternamente uma almofada fofa atrás das costas da jovem.
Assim que o solo introdutório do piano termina, faz-se ouvir o sax alto de Charlie Parker, suave como uma sombra crepuscular penetrando pelo intervalo entre duas cortinas. Sem darmos por isso, Bird materializa-se. As suas frases, elegantes e destacadas, funcionam como sugestivas recordações sem nome que se confundem com os nossos sonhos. Lembram uma brisa que não queremos que pare de soprar, deixando uma delicada marca nas dunas do nosso coração (…)
*
Poupo-vos à leitura do resto do artigo, uma mera sucessão de descrições com os floreados da ordem. O trecho acima dá uma ideia do género de música a que me refiro. Música que não existe, é bom de ver. Ou, pelo menos, música que não poderia existir.
*
Dou este capítulo por encerrado. Vou falar-vos de um episódio que aconteceu muito mais tarde.
Os anos passaram, e o texto escrito varreu-se-me por completo. Terminados os estudos, a minha existência tornou-se mais frenética e ocupada do que alguma vez imaginei, ao passo que a recensão ao álbum fictício não passava de uma brincadeira inofensiva típica da juventude. Eis senão quando, quinze anos mais tarde, aquela crítica me atingiu em cheio, como um bumerangue que me esquecera de ter arremessado.
Estava em Nova Iorque por motivos profissionais, com tempo para dar e vender. Durante um passeio pelas imediações do hotel, fui parar à East 14th Street e dei de caras com uma lojinha de discos em segunda mão. Na secção destinada a Charlie Parker, pasmem, descobri um single chamado Charlie Parker Plays Bossa Nova. Tinha todo o aspecto de ser uma edição bootleg*, prensada numa sessão privada. No lado da frente da capa branca, desprovida de imagem ou fotografia, lia-se apenas o título em letras pretas e soturnas. Na contracapa vinha o rol das faixas e o elenco dos músicos. Para minha grande surpresa, a lista era, sem tirar nem pôr, a que eu inventara quando andava na universidade. Em dois dos temas, Hank Jones substituía Carlos Jobim ao piano.
Deixei-me estar ali, com o single pirata na mão, sem tugir nem mugir. Parecia que algo no recesso mais profundo do meu ser ficara petrificado. Tornei a olhar em redor. Estaria realmente em Nova Iorque? Sim, sem dúvida que me encontrava no interior de uma lojinha de discos usados, na baixa de Nova Iorque. Não viajara até nenhum universo fantástico, tão-pouco estava a ter um sonho hiper-realista. Tirei o disco de dentro da capa. Tinha um autocolante branco com o título e os nomes das canções. Faltava o logo da discográfica. Ao examinar o disco de vinil, identifiquei quatro faixas de cada lado. Aproximei-me do balcão e perguntei ao jovem de cabelos compridos na caixa se podia ouvi-lo. Não, respondeu ele. O gira-discos não funcionava, para mal dos seus pecados.
Estava marcado trinta e cinco dólares. Hesitei. Acabei por abandonar a loja sem aquele EP. O mais provável era alguém ter tido a ideia peregrina de me pregar uma partida, pensei. Saí de lá com outro quarenta e cinco rotações que tinha à mesma quatro faixas de cada lado. Quando cheguei a casa, retirei a etiqueta com água e colei uma feita por mim. Na minha modesta opinião, era um perfeito absurdo desembolsar trinta e cinco dólares por um disco fictício!
Jantei sozinho num restaurante espanhol ao virar da esquina e bebi uma cerveja. A seguir, enquanto deambulava sem rumo pelas ruas da cidade, apoderou-se de mim um sentimento de arrependimento por não ter adquirido o disco. Mesmo farto de saber que era apócrifo e excessivamente caro. Quem me dera tê-lo comprado, quando mais não fosse como recordação do meu tortuoso percurso de vida. Fui direito à 14th Street, mas bati com o nariz na porta. Num cartaz afixado na montra, lia-se que a loja estava aberta nos dias de semana das 11h30 às 19h30.
Na manhã seguinte, um bocado antes do meio-dia, meti pés ao caminho. No balcão de atendimento deparei-me com um homem magro de meia-idade – a ameaçar calvície, vestindo um pulôver amarrotado de gola rente ao pescoço –, a beber café e a ler a página desportiva do jornal. Um aroma suave e agradável espalhava-se pela loja, prenúncio de que o café tinha sido acabado de moer. Era o único cliente. No teto, uma coluna de pequeno porte difundia um tema antigo do saxofonista americano Pharoah Sanders. Tudo indicava que estava na presença do proprietário. Vasculhei o escaparate contendo a discografia de Charlie Parker, mas não desencantei o tão almejado disco. Provavelmente, arrumara-o no sítio errado. Resultado: não tive outro remédio senão passar a pente fino a secção reservada ao jazz. Por mais que procurasse, nicles. Dar-se-ia a coincidência de ter sido comprado desde que eu visitara a loja pela primeira vez? Dirigi-me à caixa.
– Ando à procura de um disco de jazz que vi aqui ontem — expliquei ao sujeito de meia-idade.
— Qual? – perguntou ele, sem tirar os olhos do New York Times.
— Charlie Parker Plays Bossa Nova – respondi.
Pousando o jornal, o indivíduo tirou os óculos com as finas armações metálicas, virou-se devagar e encarou-me.
— Desculpe, importa-se de repetir?
Repeti. O homem bebeu um gole de café e permaneceu mudo e quedo. A seguir, franziu ligeiramente a testa.
— Não há nenhum disco com esse título – resmoneou.
— Mas…
— Se estiver interessado em comprar o Perry Como Sings Jimi Hendrix, existe em stock.
— Perry Como Sings… – tartamudeei, antes de perceber que, apesar de se manter sério, o homem estava a mangar comigo. – Mas olhe que o vi com estes que a terra há de comer – voltei eu à carga.
— Viu esse disco aqui?
— Ontem à tarde. Nesta loja. – Descrevi o disco, a capa e enunciei as canções. Referi que a etiqueta marcava trinta e cinco dólares.
— Deve haver aí um equívoco. Nunca tivemos esse disco de jazz. Sou eu que me ocupo das encomendas e que defino os preços, e de certeza que me lembraria se o título em questão me tivesse passado pelas mãos.
Abanando a cabeça, tornou a pôr os óculos e continuou a ler as notícias de desporto. Depois, como que assaltado pela incerteza, tirou os óculos, sorriu e encarou-me.
— Olhe, se por acaso arranjar esse álbum, gostaria de o ouvir. Combinado?
*
Mas a história não acaba aqui.
*O termo bootleg tem a sua origem na famosa obra da literatura inglesa As Viagens de Gulliver, escrita em 1726 por Jonathan Swift, onde no mundo smuggling os smugglers (leia-se, contrabandistas) escondiam o contrabando dentro de baús, botes e canos de botas (boots) para não serem presos. Com o passar do tempo, o termo passou a ser usado para descrever artigos de origem duvidosa, acabando por se aplicar às mil maravilhas a gravações feitas por editoras independentes. (N. das T.)
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