Devolve-me ao meu lar, ó senhor
O meu dono, o Buana, e a família foram para as festas das gentes ricas da vizinhança, vão beber rum com cola e abanar os rabos gordos até se cansarem, mas eu tenho de ficar no escritório dele a pôr em dia os livros-mestres. Em tempos ainda tive esperança de não trabalhar na Festa do Vudu, achei que dariam aos escravos pelo menos um dia de folga em todo o ano — mas não, para nós é mais um dia como os outros.
Pela janela vejo as palmeiras ao longo das avenidas; estão decoradas com fitas prateadas e douradas. São umas árvores altas e esbeltas, cuja postura altiva lembra os que se habituam desde pequenos a trazer à cabeça o precioso leite de coco; e das suas grandes e lustrosas folhas verdes pendem candeeiros a petróleo dentro de cabaças de mandioca pintadas de vermelho.
As ruas estão limpas (ontem houve tempestade de areia, mas entretanto os empedrados foram varridos) e os vendedores que vendem comida na rua foram mandados embora.
A noite encheu-se com o coaxar das rãs e o cantar dos grilos, parecem um coro de beberrões, e carruagens puxadas por camelos vêm deixar convidados janotas às propriedades nossas vizinhas. Os homens vestem cafetãs vistosos e, tentando suplantar-se umas às outras, as suas mulheres glamorosamente gordas exibem-se com os seus turbantes de estampado de pavão atados das maneiras mais espalhafatosas, próprias de miúdas.
As casas foram caiadas de propósito para a ocasião e os vitrais nas janelas mostram os deuses: Oxum, Xangira e Iemanjá, entre outros. Veem-se esfinges de guarda nos pórticos das casas dos senhores e nas entradas, sobre bases de mármore, os archotes são irrequietos dedos azuis a tentar agarrar o abafado ar noturno.
Nos andares de cima ouve-se aquela música eletrónica frenética de que a moçada gosta e que põe sempre a tocar aos berros, mas dos salões nos rés do chão chega uma música mais suave de marimbas, à mistura com risos e conversas de gente a quem não faltam motivos para celebrar e dar graças, porque são homens e mulheres livres e estão no lugar mais caro do mundo conhecido: Mayfah.
Quando falo no Buana, refiro-me ao Chefe Kaga Konata Katamba I, que fez fortuna a comprar e a vender escravos na infame rota transatlântica e que depois se instalou na alta sociedade como respeitado rei do açúcar (embora mal ponha os pés na plantação), um homem decente, marido em part-time e pai freelancer, que agora quer gozar a reforma, e, escusado será dizer, um homem sem alma.
Além disso, o meu dono é também um antiabolicionista ferrenho; tem um boletim que distribui gratuitamente por toda a região — A Chama, é esse o nome —, no qual divulga a sua retórica balofa em defesa da escravatura.
Não resisti a dar uma olhadela ao número mais recente, uma coisa medonha de dar volta ao estômago e de se nos fechar a garganta, e, estava eu ocupada com isso, uma mão entrou pela janela do escritório, largou um bilhete e tornou a sumir-se antes que eu pudesse ver quem era a pessoa.
Desdobrei o papel, li as palavras mágicas e de repente pareceu que se me afogava a cabeça.
Sentia as ondas rebentar contra as paredes do meu crânio. Em pensamento, deixei sair um brado de rasgar a garganta.
Depois desmaiei.
Não sei quanto tempo estive assim, até podem ter sido apenas alguns minutos, mas, quando voltei a mim, estava meio desfalecida na cadeira, com a cabeça tombada para diante e ainda a segurar o bilhete.
Reli-o por entre as lágrimas que corriam em catadupa.
Era verdadeiro e o que dizia era a sério — estava a ser-me oferecida uma oportunidade de fugir.
Ó Senhor.
Depois de tantos anos em lista de espera, tinha agora na mão o que sempre mais desejara. Mas estava a ser tudo demasiado rápido. Ali fiquei, incapaz de agir, com mil «e ses» a cruzarem-me o pensamento. Ao devolver a minha vida ao seu legítimo dono — eu mesma —, iria estar também a pô-la em risco. Bastava um descuido ou um azar e acabaria amarrada ao poste na praça pública para ser açoitada, ou pior, no cepo.
E então o meu instinto de sobrevivência acordou. Desanuviou-se-me o pensamento.
Senti-me de novo em mim. Rasguei o bilhete em tirinhas.
Pus-me de pé, e à minha frente, na parede, estava a máscara de madeira com a cara do Buana.
Ergui a mão direita e fiz-lhe a devida saudação com o dedo do meio.
O bilhete dizia que a «estrada subterrânea» encontrava-se de novo ativa depois de o serviço ter estado interrompido uns tempos por causa de um descarrilamento. Tais paragens eram frequentes, ora porque não conseguiam desviar eletricidade da central que alimenta a cidade, ora porque a composição avariara por ir demasiado carregada com escravos fugidos, que tinham implorado que lhes arranjassem lugar porque aquela era a sua única maneira segura de deixar a cidade e encetar a longa viagem de volta à terra-mãe.
Pela minha parte, só esperava que a mensagem fosse fiável, porque acontecia muitas vezes haver infiltrados na Resistência, à espera do momento certo para eliminar um foco de rebeldes inteiro.
No fundo, eu sabia que os comerciantes de escravos jamais renunciariam à sua galinha dos ovos de ouro, ou não estivéssemos a falar de um dos negócios mundiais mais lucrativos de sempre, que envolve o transporte em massa de brancos; somos enviados aos milhões do continente da Europa para os Japões Ocidentais, arquipélago assim batizado por causa do «grande» explorador e aventureiro Chinua Chikwuemeka, que, ao tentar descobrir um novo caminho marítimo para a Ásia, confundiu essas ilhas com as lendárias ilhas do Japão, acabando o nome por pegar.
Portanto, aqui estou eu no Reino Unido da Grande Ambossa (podemos abreviar chamando-lhe UK ou GA), que pertence ao continente da Áphrika. A Áphrika Continental é já aqui perto, basta atravessar o canal de Ambossa, e também lhe chamam o Continente Soalheiro, porque, como é sabido, nesta zona do mundo faz um calor desgraçado. Concretamente, a Grande Ambossa é uma ilha muito pequena cuja população não pára de crescer, daí que, para alimentar toda essa gente, vá estendendo os seus dedos gananciosos a todo o mundo, roubando nações e levando pessoas.
E eu fui uma delas. Uma das Capturadas. Daí estar agora onde estava.
O bilhete informava que eu tinha apenas uma hora para chegar à estação de Paddinto, que estava desativada, e explicava como localizar o poço de visita escondido atrás de uns arbustos por onde desceria à plataforma do metro, onde estaria à minha espera um elemento da Resistência que me levaria pelos túneis húmidos e frios. Ou, pelo menos, assim me era prometido. Não correspondendo isso à prática, seria o meu fim.
A escravatura ensinou-me que nenhuma promessa é garantida, e que é má ideia contactar o serviço de apoio ao cliente, porque eles denunciam-nos a quem de direito e então é que vemos como elas mordem.
Mas, acima de tudo, eu acredito na esperança. Ainda estou viva, não é verdade?
Oficialmente, o metro de Londôlo deixou de operar há muitos anos, quando os túneis começaram a abater sob o peso dos edifícios à superfície. Nessa altura, a cidade readotou os transportes mais lentos, mas mais fiáveis: carruagens, cavalos, charretes, camelos, elefantes, diligências e, no caso dos fanáticos do exercício físico, os velocípedes. Para nós, escravos, o transporte era só um: as nossas pernas.
Ora, a dada altura a Resistência teve a ideia luminosa de usar o metro desativado como rota de fuga e de lá para cá já foram muitos os que conseguiram evadir-se de Londôlo, não obstante a cidade ser patrulhada sem descanso, e alcançar o porto, onde embarcaram para a longa e arriscada viagem de regresso à Europa.
Pela primeira vez desde que fui levada, pude colocar-me seriamente a hipótese de que talvez voltasse para casa. Seria possível? As recordações mantinham-se vívidas, os meus pais, as minhas três irmãs, a nossa casinha de pedra na grande propriedade senhorial e o Rory, o meu cocker-spaniel, que eu adorava. Naquela altura talvez não restasse ninguém da minha família, isto se tinham sequer sobrevivido ao ataque surpresa do bando das Terras da Fronteira que me levara. Os ambossanos chamavam-nos tribos, mas éramos várias nações, cada qual com a sua língua e os seus usos tradicionais, alguns muito cómicos, por exemplo, os homens das Terras da Fronteira usavam saias de xadrez sem cuecas por baixo.
Os ambossanos chamavam à Europa o Continente Cinza, porque lá o céu está sempre encoberto.
Mas eu morria de saudades desses céus nublados e cinzentos.
E da chuvinha incessante, e do vento áspero a fustigar-me as orelhas.
E das camisolas de lã com que me agasalhava no inverno, e do barulho das socas.
E das sanduíches de banha aquecida que a minha mãe nos fazia, e da sopa de abóbora, espessa e deliciosa.
E da lareira a crepitar, e nós à volta, a cantar.
E de toda aquela região mais a norte, de onde fui levada. E da Inglaterra.
E do meu lar.
*
Orgulho-me de vir de uma longa e distinta linhagem de plantadores de couves.
Cresci entre gente honesta, agricultores que viviam do que a terra dá e que nunca roubaram, nem das vezes em que nevou no verão ou choveu durante todo o inverno, o que estraga as colheitas, porque se espapaça tudo sem chegar a crescer.
Não éramos donos de terras, não senhor, éramos servos, o elo mais raso na cadeia agrícola, mas um elo figurado, porque não estávamos realmente acorrentados ao chão que pisávamos. Tal como não se podia dizer que fôssemos propriedade de alguém, apenas estávamos profundamente enraizados ali, porque quando as terras mudavam de mãos por morte, matrimónio ou guerra, o mesmo acontecia connosco, e assim nos mantínhamos agarrados àquele solo geração após geração.
O acordo era este: o nosso amo, Lorde Perceval Montague (pelas costas chamávamos-lhe Percy), o enésimo filho mais velho da família com quem a minha família tinha uma ligação umbilical, arrendava-nos terras e, em troca, todos os servos masculinos ficavam obrigados a servir-lhe de infantaria de cada vez que ele se envolvia numa batalha, e acreditem: naquela sociedade vigorava a lei do mais forte. Nesse tempo, a ponta norte da Inglaterra era uma autêntica selva. Se alguém se lembrava de saquear uma propriedade ou de roubar animais, usava a força bruta, e o remédio do grande senhor em questão era ter pólvora para se defender ou poder juntar um pequeno exército, nem que fosse um mal-amanhado grupo de ajudantes.
Portanto, era disso que vivíamos. Amanhávamos as nossas terras, e as do Percy.
Fosse a colheita generosa ou não, tínhamos sempre de lhe dar metade.
Ele devia dispensar-nos dessa obrigação, ou pelo menos aliviá-la, por sermos pobres, mas era coisa que raramente fazia.
E ainda nos cobrava os extras, como usarmos a carroça dele para irmos ao mercado, ou o moinho ou o forno do pão, o que, no caso de termos uma má colheita, se traduzia numa dívida que se arrastaria por anos.
O Solar Montague era uma imponência de granito, lembrava pedras tumulares recortadas sobre um céu diariamente agitado por uma chuvada de norte tão escura e pesada que parecia que as alturas tinham vestido uma cota de malha.
Toda a criançada sentia um fascínio irresistível por aquele casarão, mas, no meu caso e das minhas irmãs, fui a única com coragem para arriscar ceder à tentação de lá entrar.
De uma vez em que tinham todos saído para a feira de verão que acontecia todos os anos ali na herdade, as minhas irmãs cobardolas ficaram a assistir escondidas atrás de uns arbustos enquanto eu avancei até à imponente porta principal e me esgueirei para o cavernoso Salão de Banquetes. Bem tentei não fazer barulho, mas o claque-claque das socas ecoava pelo teto alto.
Nas paredes havia tapeçarias de lindas donzelas a fazer festinhas a unicórnios, chifres de renas que lembravam ramos de árvores e, inclusivamente, uma enorme cabeça de urso de presas a salivar, que era a primeira coisa que víamos mal passávamos a porta. Aqueles olhos brilhantes foram seguindo cada passo que eu dava.
E então ouvi uns gemidos que pareciam vir de baixo do chão, fiquei aflita com medo, rodei nos calcanhares e corri dali para fora, chocando contra um lobo empalhado junto à porta principal que parecia a postos para atacar e arrancar-me um naco. Quase de certeza que os gemidos tinham vindo das lendárias masmorras do Percy, onde ele mandava fechar os larápios e os prisioneiros de guerra de cada vez que havia mais uma escaramuça na Fronteira. Depois eram enviados para o longo trilho através da floresta rumo ao navio de partida para o Novo Mundo — ou, pelo menos, assim ouvíamos contar.
Para nós, camponeses, o Novo Mundo era uma terra distante do outro lado do mar, um lugar do qual nada sabíamos, exceto que ninguém queria ir para lá, porque quem ia não voltava.
A minha era a Casa da Macieira. Ficava na orla da propriedade e era uma coisa muito tosca, feita de madeira e com paredes de taipa. O sussurrar dos insetos era constante, estavam por toda a parte e havia-os de toda a espécie — das vespas, que faziam os ninhos no telhado de colmo, às pulgas, que queriam saltar para nós, porque o nosso sangue é o seu elixir vital. Entrava-se diretamente para uma minúscula sala de estar com chão de terra e um fogão de carvão. Havia duas áreas para dormir, fechadas por grossos cortinados verdes de lã, de um lado e do outro do corredor, que fazia as vezes de cozinha. Pôr vidros nas janelas implicava pagar um imposto e não tínhamos esse dinheiro, por isso, embora mantivéssemos as portadas fechadas, era sempre inverno em nossa casa.
Eu, a Madge, a Sharon e a Alice partilhávamos um colchão de palha. Tapávamo-nos com uma colcha de mil cores feita de retalhos cosidos por duas tias-avós que tinham morrido antes de nascermos. Tendo eu conseguido apossar-me do lugar do meio, as minhas irmãs aqueciam-me nas noites geladas em que soprava vento de nordeste.
E tínhamos o nosso cão, o Rory, que andava sempre aos saltos e se fartava de mandar coisas ao chão, embora já não fosse um cachorrinho, como a nossa mãe gritava sempre antes de lhe dar uma sapatada que o lançava num longo voo improvisado que terminava com uma aterragem de patas esparramadas e um ganido. Era tão cómico!
Os nossos pais eram Mr. Jack Scagglethorpe e sua esposa, Eliza.
O meu pai era todo músculos fibrosos e tendões, de resto mal tinha carne que lhe enchesse os ossos. Usava uma barba grossa mal-cuidada, porque, dizia ele, «queria lá saber disso», e andava sempre de faces esfoladas pelo vento frio e áspero. Nunca endireitava completamente as costas, era como uma árvore de tronco estreito que um vendaval deixara inclinada, porque desde pequenino a sua vida era plantar e apanhar couves.
Tinha o cabelo ruivo-escuro das gentes das Terras da Fronteira. Quando ia trabalhar no campo punha um chapéu de aba larga, sob a qual os caracóis espiralados lhe roçavam os ombros.
Quando eu era ainda tão pequena que não sabia nada de nada, ele arregaçava uma manga, pedia-me que lhe sentisse as veias do braço e dizia que aquele latejar era por causa das centopeias que ali viviam. Eu fugia a gritar esganiçada e ele vinha a correr atrás de mim, e no meio da brincadeira íamos contra tudo e mais alguma coisa — bancos, baldes e até as minhas irmãs.
O meu pai adorava as suas couves, dizia que havia que tratá-las com amor, como se faz com as crianças. Fiquei a saber tudo quanto havia para saber a respeito das malditas couves! A couve-de-janeiro era «rija e saborosa», a couve-do-outono era verde-escura e a couve-de-saboia às vezes era «geniosa». Também fiquei a conhecer em detalhe toda a história das Guerras das Couves, quando, ao serviço dos Montague, os Scagglethorpe derrotaram os Paldergrave.
Antes da escravatura (a. E.), eu detestava comer couve. O que eu não daria agora por um prato da dita.
Jamais o meu pai abriu a boca para se queixar de não ter um filho varão, mas nós bem sabíamos o que lhe ia no pensamento, porque havia alturas em que olhava para nós e não conseguia disfarçar a deceção.
Quem iria seguir na tradição couveira dos Scagglethorpe? Ele encolhia os ombros como se não tivesse importância.
— Ora bem: digam‑me que tenho direito a um desejo — propôs-nos certa vez.
— Qual desejo?
— Não sejam tão lerdinhas, vá. Digam‑me que tenho direito a um desejo. E que podem conceder-mo.
— Mas nós não temos poderes, não somos fadas‑madrinhas.
— É um jogo, minhas patetas, concedam‑me um desejo antes que levem com uma couve nessas cabeças duras.
— Está bem, pai, tem direito a um desejo.
— Muito bem, então vejamos… que poderia eu querer? Ah! Já sei! — anunciou, a coçar o queixo como se a ideia acabasse de lhe ocorrer. — Quero ver as minhas quatro meninas a usarem aquelas crinolinas caras de osso de baleia, como usam as senhoras da alta sociedade, e de caras pintadas e com pérolas nesses pescoços de cisnes; quero ver‑vos nos bailes a rodopiar nos braços de cavalheiros de bem, felizes e risonhas e com sapatinhos de cristal nos pés.
— Aaargh, pai, que meloso! — protestei, mas de seguida fui buscar o espelho para ver se tinha mesmo um «pescoço de cisne».
Nessa noite, sonhei que usava um vestido amarelo rendado com crinolina e de mangas em balão. Era tão refinado, e os meus sapatinhos de cristal tão delicados, que quando corri pelos prados de cabelos soltos ao vento toda a gente ficou boquiaberta por eu me ter tornado numa jovem tão elegante.
Mas depois estraguei tudo porque fiquei com joanetes por os sapatos me estarem apertados e ainda por cima um deles partiu-se e um caco cravou-se no meu pé e doeu tanto que acordei.
O meu pai levantava-se antes de a luz do dia expulsar a noite do céu. Voltava para casa quando já escurecera outra vez e só lhe passava a rabugice depois de comer.
Às sextas à noite depois do jantar gostava de ir até ao celeiro do Johnny Johnson na Quinta Fora de Mão, para, dizia ele, «ficar um bocado à conversa com a malta» — um bando de velhos já quase nos 40. Jurava a pés juntos que bebia uma única cerveja, mas voltava para casa com um bafo que tresandava a cevada e ervas, e a cantarolar uma cantiga asneirenta que começávamos a ouvir ainda ele vinha a milhas; depois recuperava o fôlego encostado à ombreira da porta aberta, a sala varrida por uma rajada gelada, fazia um ar muito sério e então punha-se a discursar que «a vez da classe trabalhadora haveria de chegar», depois entrava aos caídos, com as botas todas emporcalhadas de esterco, e desfalecia na cadeira de braços, de pernas abertas, cabeça tombada para trás e maçã de adão a ondular, ainda mais saliente do que o normal e eriçada, quase parecia, por causa dos pelos da barba.
— Que tal a malta?! Estava boa?! — perguntava a nossa mãe alto e bom som quando ele já estava a ressonar, sem tirar os olhos do croché e a esgrimir as agulhas como se fossem espadas em combate.
Nunca me hei de esquecer da primeira vez que me tocou levar eu ao nosso pai um naco de pão quente e banha para molhar.
O céu estava tão carregado e escuro que levei uma eternidade para conseguir avistá-lo, até que por fim lá estava ele. Apoiado na forquilha, parecia uma miragem no nevoeiro, e quem o visse dizia que era um espantalho. Naquele momento vi claramente como os anos de trabalho duro o tinham desgastado.
Estava a cantar, mas não uma daquelas suas canções desbragadas que me faziam rir, e às minhas irmãs, e que punham a nossa mãe carrancuda. Nada disso. Desta vez, parecia um daqueles meninos no coro da igreja, quando a voz ainda não engrossou, nem se encheu de lama e de raiva ao fim de anos e anos a golpear a terra gelada com a pá, a limpar bosta de burro e a cortar lenha durante horas em pleno gelo do inverno tendo por único agasalho serapilheira áspera e sem mais que calçar do que umas socas.
Aquela era a voz do menino que vivia dentro do homem. Era a voz da criança que o meu pai ainda guardava em si.
Parecia que o coração lhe transbordava num anseio, não sei se por alguma coisa que tinha perdido, se por alguma coisa que queria ter.
Quando o ouvi, foi como se o meu coração me caísse aos pés.
Romeiro, romeiro, diz-me, vais à feira?
Salsa, salva, tomilho e alecrim.
Hás de ver uma loirinha à tua beira,
É ela o meu amor, fala-lhe de mim.
Quando fiz 10 anos, foi a minha vez de sair para os campos de olhos vendados para apanhar a primeira couve da época. Com essa idade já tínhamos sobrevivido à varíola, à doença do suor e a tudo o mais que levava as crianças logo cedo, e era mais provável chegarmos a adultos. Se a couve viesse com muita terra agarrada, seríamos ricos; caso contrário, íamos ser pobres.
Era uma madrugada de primavera e fomos pisando as ervas húmidas por entre as árvores, e já se viam as primeiras flores a desabrochar, as minúsculas pétalas lilases a abrir.
Eu já resolvera o que ia ser quando crescesse: mercadora de seda. Eram raras as mulheres que se dedicavam a essa profissão e uma delas era a Margaret Roper, que deixara a sua aldeia em Duddingley ainda muito nova. Partira à boleia numa carroça, mas voltou numa carruagem sua. O meu plano era fazer exatamente como ela: ser aprendiza durante sete anos, depois estabelecer-me. Mas para isso teria de convencer o meu pai a convencer o Percy a deixar-me ir. E eu já sabia que o meu pai iria zombar da ideia de uma das suas filhas patetinhas poder vir a tornar-se uma mulher de negócios a sério.
O que não me desencorajou.
Levaria anos a pagar a dívida, mas contava vir a ser suficientemente rica para pagá-la eu mesma.
Já tinha tudo muito bem pensado. Como é normal aos 10 anos.
A couve saiu com um grande torrão de ervas agarrado. De tão contente, fiz uma roda e depois pus-me a cantar:
— Uma menina e um menino, um gato a tocar violino, uma vaquinha saltou daqui à Lua!
Como se vê, a estúpida profecia concretizou-se, certo?
Não seriam as recordações a fazer-me chegar a tempo à estação.
Veloz como um leopardo que comeu nozes-de-cola, saí a correr do escritório do Buana e atravessei a propriedade, que era a maior de Londôlo. O relvado fora regado havia pouco e sentíamo-lo molhado, fofo e viçoso debaixo dos pés. Passei pelo jardim de rochas e catos; pelos ananaseiros, que parecem palmeiras baixinhas e de ancas largas; pelo parque infantil, cheio de escorregas e carrosséis cor de laranja e cor-de-rosa; pelo pomar dos mangostões, das papaieiras e das baunilheiras, que enchiam o ar com os seus aromas adocicados; pela piscina descoberta, infestada de mosquitos a zunir rente à água parada; e pelas estrebarias dos camelos, até que por fim cheguei a uma zona por trás de tudo isso: as acomodações dos escravos, escondidas da vista de tudo e todos, e, para dar o toque final, construídas ao lado da fossa e das pocilgas.
Entrei na barraca atravancada que partilhava com a Yomisi e a Sitembile.
Tal como eu, também a Yomisi estava na casa dos 30, mas nascera na Baviera, numa quinta onde se cultivava trigo. O seu nome de batismo era Gertraude Shultz. Aos 18 anos, numa manhã de domingo em que fazia um frio de gelar os ossos, vinha ela da missa, teve a lembrança idiota de encurtar caminho pelo cemitério e foi raptada por caçadores de escravos. Depois de muitas voltas, acabou em Londôlo, a dormir ao lado desta vossa servidora. Não combinávamos de todo: eu era a otimista, ela, a pessimista. Se eu passava os dias a sonhar com a fuga, com o bilhete de regresso agarrado contra o peito, a Yomisi esquecera toda a esperança da primeira vez que fora violada pelos três que a tinham raptado, o que aconteceu pouco depois da captura.
Desde então não pensava noutra coisa senão em vingar-se.
A Yomisi era a cozinheira do Buana. Era magra como um espeto, mas rija, e tinha olhos verdes e umas pálpebras pesadas e tristes. Quando ia trabalhar, punham-lhe um açaime de ferro para ela não comer nada. O dito açaime consistia numas peças de metal que fixavam uma chapa com furinhos por cima da boca. Fechava-se na nuca e só se abria com uma chave.
Deixava-lhe os lábios rachados, a boca desidratada, a língua inchada e as gengivas em sangue.
À noite, já sem o açaime, continuava a falar com os dentes cerrados.
De vez em quando, o Buana passava a noite inteira a vomitar ou então era um dos filhos que se enchia de febre. As diarreias eram comuns, tal como era habitual o Buana ter umas alucinações de louco, e amiúde a família inteira enchia-se de uma urticária tão assanhada que era vê-los a arrancar a pele de tanto se coçarem num frenesim coletivo.
E diziam que fora feitiço dos rivais do Buana. Ninguém se lembrava de apontar o dedo à cozinheira apática e magra que nem um espeto.
Vidro moído.
Carne estragada, com especiarias e ervas de aromas fortes a disfarçarem-lhe o sabor.
Cogumelos venenosos. Plantas — ela não dizia quais. Só isto lhe dava prazer.
A outra com quem dividia a barraca era a sempre sorridente Sitembile, que não teria mais de 20 e poucos. Adorava lembrar-nos a nós, reles mortais, que nascera num palácio no antigo Principado do Mónaco como Princesa Olivia de Champfleur-Saxe-Coburg-Grimaldi-Bourbon-Orleães-Habsburgo. Fora feita refém numa guerra com a França e acabou vendida porque o rei seu pai recusou pagar o resgate. Ela era rapariga e ele já contava com cinco filhos varões na linha de sucessão ao trono.
À Sitembile tocara a honrosa tarefa de limpar as casas de banho; todas as manhãs esvaziava aproximadamente 50 bacios, depois passava o resto do dia a tirar a merda dos buracos e a lavá-los com cal diluída para não se encherem de moscas e de bicharada.
Se lhe sobrava algum tempo, e isso raramente acontecia, sentava-se à porta da nossa barraca e punha-se a tagarelar, entretida com uma conversa a acontecer dentro da sua cabeça e na qual nós, ouvintes, entrávamos a meio, depois surpreendia-se quando lhe dizíamos não ter a mais pequena ideia do que ela estava para ali a dizer.
Fazia trancinhas que depois endurecia com argila e esfregava ocre na pele para a escurecer, na esperança de que algum sócio do Buana, que teria de ser dos mais simpáticos, jovens e bonitos, reparasse nela e a levasse dali para lhe dar uma nova vida como sua amante dileta. Ora, a Sitembile tinha umas curvas substanciais e uma cintura que se mantinha delgada, portanto era bem possível que tal acontecesse.
A Yomisi bem tentava refrear-lhe o entusiasmo proclamando amiúde a sua máxima de que sonhos e deceções andam de mãos dadas.
Já eu acreditava que os sonhos nos dão alento, por isso ajudava a Sitembile esfregando-lhe ocre nas costas macias e ilesas.
Éramos um trio. Sem darmos por isso, tínhamos aprendido a estar juntas e éramos parte da vida umas das outras.
E agora eu ia sair dali pela calada. Sem uma palavra de despedida.
A nossa barraca era feita de chapas caneladas e nas noites de verão cozia-se ali dentro. Para nós não havia bonitas casas de taipa construídas na parte alta da propriedade, arejadas, caiadas, com telhados de colmo e pilares, janelas e varandas a toda a volta feitos de madeira boa. No nosso caso, ora assávamos, ora gelávamos naqueles caixotes de lata imundos, e a vizinhança mais próxima era uma termiteira com quase quatro metros de altura na qual não nos atrevíamos a tocar, porque o mais provável seria as térmitas virem refazer o seu lar dentro da nossa barraca.
Ao entrar, soube de antemão que as minhas duas companheiras de casa estavam ocupadas algures na propriedade, porque, para nós, o trabalho nunca acabava. Mesmo nas alturas em que parecia não haver mais nada para fazer, a Madama Bênção, a arrogante primeira esposa do Buana, arranjava sempre mais coisas para fazermos. Contava-se que em tempos ela fora a mais encantadora jovem donzela da cidade, depois casou com o Buana, os anos sucederam-se, ele acumulou esposas a quem ela podia dar ordens, e por fim o poder subiu-lhe à cabeça e ela transformou-se na gárgula que todos conhecíamos e odiávamos.
Nesse dia a Madama Bênção optara por um grosso colar de ouro que pendia das pregas de gordura do seu pescoço e tinha uma deusa da fertilidade embelezada com rubis e diamantes. Uma escolha ridícula, porque saltava à vista que ela já estava para lá da menopausa. Tinha as unhas pintadas e usava um anel de ouro com uma cabeça de leão a rosnar, ou seja, ainda que ela tentasse ser simpática, ali estava aquilo a lembrar-nos que não o era, de facto. E ainda tinha um bonito osso de marfim envernizado no nariz e, no lábio inferior, um botoque, indicador de que tinha marido (como se fosse preciso recordar isso a alguém).
Nesse grande dia de festa ela acordara na sua mais encantadora disposição matinal e então chamara todos os escravos que não estivessem ocupados para virem esfregar o seu adorado chão de laje bege — com sabão e uma escova das unhas. «Para ficar bem limpo entre as lajes», explicou ela, de olhos a varrerem o enfileiramento de pés descalços da criadagem antes de se afastar pelo corredor como se as ancas e os ombros estivessem a rebocar o resto da sua pessoa, dando-lhe isso a elegância de um hipopótamo cegueta com tonelada e meia e uma pata em falta.
Sendo os olhos a janela da alma, era só ela ter-se dado ao incómodo de olhar para os nossos e teria visto um assassino de machado em riste em cada um deles.
Por sua vez, a Madama Bênção tinha uns olhos grandes e alarmados que lhe dominavam a expressão, e de cada vez que se punham a varrer a área em volta em busca de presa, rezávamos para não sermos os contemplados, porque o prémio era invariavelmente o choque, a indignação perante algum crime pelo qual não podíamos deixar de ser punidos, embora ainda não o tivéssemos cometido. E ela lamentava até mais não a sua pouca sorte, e, nisso, os nossos amos eram todos iguais — as vítimas eram sempre eles, e não nós. Escolhera o seu vestido favorito de tecido adinkra, estampado com o padrão Atamfo Atwameho, ou, traduzindo, «Estou Cercada de Inimigos».
Agarrei numa braçada das minhas roupas e larguei-a numa cesta, depois pus uma capulana pelos ombros para esconder as tatuagens personalizadas que os embelezavam. Tal como era moda nas sociedades esclavagistas, fora-me tatuado o nome da minha primeira dona, a Panyin Ige Ghika. A P.I.G.
Comprara-me para fazer companhia à filha — a Milagrinho. Ai, a Milagrinho — mais à frente falarei dela.
Depois o Buana comprou-me e quis que me fossem tatuadas as suas iniciais — K.K.K.
Conseguem imaginar como é sentir um ferro em brasa na pele? Duas vezes? Primeiro, há o choque, e a reação vem depois, quando a pele chia e deita fumo e as lágrimas de sangue quente correm-nos pelos braços e pelas costas.
Não tinha grande coisa para levar. Não andávamos muito vestidos por causa do calor, a que eu de resto nunca me habituei, tal como nunca me habituei à indumentária tradicional dos ambossanos — as capulanas —, ou a ter de andar descalça, o que era muito desconfortável, sobretudo porque eu sempre adorara andar de socas. Teria dado qualquer coisa para tornar a sentir aquela impressão de frescura quando as enfiamos nos pés; aquele ligeiro solavanco de cada vez que a madeira assenta no chão.
Além de que andar despida da cintura para cima não tem piada nenhuma quando já tivemos três filhos e as nossas mamas têm a firmeza de puré de abóbora aguado. E quanto menos se disser a respeito do penteado que a Madama Bênção fazia questão de que eu usasse enquanto escrava com mais estatuto ali em casa, melhor. Tenho o cabelo louro, liso e comprido, e era obrigada a usá-lo armado com arames para fazer aros de entrançado em toda a cabeça. Eu bem tinha vontade de lhe explicar que nós, os brancos, temos uma ossatura diferente e que essas coisas não nos ficam bem. Mas ela recebia muitos convidados importantes e queria-me com um ar digno; não queria que eu abrisse a porta e que eles vissem uma europeiana miserável de ar tosco. Por norma, os convidados eram membros da Assembleia da Casa dos Governadores, o corpo governativo do Reino Unido, muitos deles também grandes fazendeiros que tinham comprado um lugar na dita.
Iam-me ocorrendo estas coisas enquanto desenterrava um velho odre que escondera debaixo da palete que me servia de cama e no qual guardava 46 libras caurinas. Ao longo dos anos, fora surripiando uma concha aqui, outra ali quando ia fazer as compras para o Buana e a família dele, na esperança de um dia vir a precisar delas.
Fechei a porta sem ruído e assegurei-me de que ninguém me estava a ver. Pus a cesta à cabeça e, pé ante pé, esgueirei-me por uma passagem nos arbustos que ia dar a uma viela escondida. Era por ali que nós, escravos, saíamos e tornávamos a entrar na propriedade ao darmos as nossas escapadelas amorosas, eu incluída, embora tenha sido celibatária durante muito tempo. Era muito monógama e não queria virar costas ao costume «um homem, uma mulher» que vigorava na minha cultura, por muito que os polígamos ambossanos rissem de semelhante coisa e argumentassem tratar-se de um costume antieconómico, egoísta, tipicamente hipócrita e pura e simplesmente retrógrado.
O amor da minha vida foi o Frank. O seu nome de escravo era Ndumbo, mas nunca o chamei assim na nossa intimidade. Era um reputado carpinteiro e nada havia que não fosse capaz de fazer ou consertar.
Dizia que nada o fazia sentir-se tão vivo como ver-se perante uma silenciosa congregação de partes de floresta amputadas e trazidas para a sua casa mortuária — o depósito de madeiras em Golda’s Green. Era lá que ficavam em pousio, expostos aos elementos até estarem no ponto, altura em que o Sumo Sacerdote — o meu Frank — as fazia reencarnar em artefactos utilitários ou decorativos.
O Frank tinha mais de um metro e oitenta, ombros largos e cabelo escuro — era um cavalheiro.
Nunca me falou torto nem tentou mandar em mim, e de cada vez que me sorria, era com tal apreço que levei algum tempo até conseguir aceitá-lo, tão habituada que estava a que não me dessem valor.
Bocadinho livre que tivéssemos, passávamo-lo juntos, e os nossos prazeres eram simples, porque não podíamos ter outros.
Partilhávamos uma fatia de bolo de coco e rum que a Yomisi surripiara da cozinha.
Se era de noite, deitávamo-nos nas ervas e contávamos estrelas no céu.
Ele oferecia-me braceletes e enfeites para os tornozelos, eram de madeira e fazia-os ele, e por dentro gravava os nossos nomes.
Em segredo, ensinei-o a escrever quem era numa ardósia: «Frank Adam Merryweather, filho de Frank William Merryweather, de Hull, na Inglaterra.»
A expressão dele da primeira vez que conseguiu escrever isto sem um único erro. Sorriu de orelha a orelha, parecia um menino.
À noite, as suas hábeis mãos de carpinteiro percorriam com tal perícia o desenho das minhas costas, dos braços e das pernas que o meu corpo quase sem vida se reanimava para as sensações e transformava-se numa obra de arte.
No dia seguinte lá ia eu para o serviço, mas agora de ossos menos doridos, menos tensa, muito leve e com o pensamento longe dali, incapaz de se fixar noutra coisa ou noutro alguém que não ele.
O Frank era um homem incapaz de praticar o mal, mas a dona dele, a Madama Subria, uma pigmeia de metro e meio, acusou-o de a molestar, fez queixa ao marido e ele então vendeu o Frank, que foi enviado para os Japões Ocidentais, mas não antes de ser atado ao poste de Cumburlasgar, na porta da cidade que ficava ao fundo da estrada, e açoitado 50 vezes com um gato de nove rabos. E todos os escravos das propriedades vizinhas foram obrigados a ver.
Conseguem imaginar como me senti ao assistir a um tal castigo? O meu pobre Frank ficou com as costas em carne viva. Primeiro fechou-se num silêncio obstinado, depois começaram a sair-lhe uns vagidos de dar dó e por fim já eram uns gritos terríveis de rasgar os céus, uma coisa pavorosa.
A ironia é que a Madama Subria passava a vida a tentar seduzi-lo, sempre a fazer beicinho como uma menina petulante, os pernões a querer escapar-se da capulana e ela a saracotear-se e a rebolar o seu enorme traseiro ambossano (as bochechas pareciam independentes uma da outra — o que é obra) de cada vez que ele vinha a segui-la pelo corredor. O Frank ignorava tais avanços, até que um dia ela o mandou arranjar as dobradiças da arca de ouro e marfim que tinha no quarto de casal. De repente, despiu-se toda e ali ficou diante dele tal como viera ao mundo. Há que compreender que, como qualquer senhora de posses, a Madama Subria era uma mimada. Quem tem um exército de escravos às ordens para lhe satisfazer todos os caprichos espera ter o que quer quando quer.
Primeira Lição: os escravos não rejeitam os avanços dos seus amos. O meu homem aprendeu isto da pior maneira.
Ela ficou lívida. E vingou-se.
Nós, escravos, não terminamos os nossos relacionamentos. Essa é uma decisão que cabe a outros. E muitas vezes também não os começamos, porque também isso não nos toca decidir. Somos encorajados a acasalar apenas para aumentar a força laboral.
Os meus três filhos foram vendidos.
De cada uma das vezes, prometeram-me que ficaria com o bebé. Uma mentira descarada que eles usavam, porque, sabendo de antemão que o bebé lhes seria tirado à nascença, algumas mães teriam preferido matar-se.
Quando entrei em trabalho de parto, acocorada num tapete de ráfia a desfiar, Ma Ramla, a parteira (originalmente, Sigfrieda, da Alemanha), foi-me humedecendo a fronte com um pano húmido, queimou paus de incenso de sândalo, amparou-me as costas e foi-me dizendo que fizesse força.
Cada um dos meus bebés ficou à guarda de uma ama de leite até finalmente ser vendido. De novo, estratégia, vim a descobrir. Conheciam-se casos de mães que tinham ficado incontroláveis de tão violentas ao ser-lhes dito que entregassem o bebé depois de o amamentarem durante meses.
Duas meninas e um menino. Nunca mais vi os meus filhos.
Às vezes, levo a mão ao estômago e ainda os sinto espernear.
E lembro-me da sensação de plenitude ao carregar dentro de mim o peso de um bebé.
Cantei-lhes canções quando estavam na minha barriga.
Olha a pastorinha, perdida do rebanho
E ela pergunta: Viste as minhas ovelhinhas?
Descansa, menina, elas vão voltar
As tuas ovelhas são mansinhas.
Lembro-me de que, da primeira vez, o Frank ficou ao meu lado a segurar-me a mão enquanto eu dava à luz.
Depois o silêncio dele arrastou-se durante meses. Nunca falámos da nossa perda.
Da segunda vez, já não assistiu, nem da terceira. Foi melhor assim.
Ainda hoje sonho que os meus filhos hão de vir à minha procura.
Que arranjarão maneira de encontrar a mãe. Ó Deus.
Não há dia em que o Frank não me faça falta.
Enquanto fomos amantes, nunca me senti sozinha.
*
Não havia ninguém na viela. E já escurecera, graças a Deus. Teria de sair para a avenida, depois seguir por uma rua lateral até ao bairro de Edgwa e daí para o de Paddinto. Espreitei e vi lustrosas carruagens cheias de cromados e dourados. Era gente ainda a chegar para a Festa do Vudu, mas, fora isso, a rua estava deserta.
Teria de atravessar o bairro sem pressas e com uma atitude confiante, como se me tivessem dado aquela noite de folga. Se algum vizinho me visse, daria o alarme. Por um lado, sentia a liberdade ao alcance dos dedos. Por outro, parecia que me estavam a dar com um martelo nos joelhos. Só manter-me de pé era uma luta. Se regressasse já à propriedade, ninguém daria por nada.
A Madama Bênção ficaria indignada com a minha fuga, e tendo eu testemunhado as suas reações a crimes imaginados, nem queria pensar em como ela daria largas à sua fúria ao falar em tribunal, acusar-me-ia dos crimes de Ingratidão e de Desonestidade e provaria a minha culpa para lá da Dúvida Razoável ao apresentar a Prova (Apanhada a Fugir) perante um júri constituído pelos seus pares, todos eles ambossanos donos de escravos, tal como ela.
Ao contrário da mulher, o Buana não desperdiçava emoções (se é que as tinha) com os escravos. Quando necessário, aplicava as necessárias medidas disciplinares com o pragmatismo de um homem de negócios para quem um escravo se traduz em lucro ou prejuízo e nada mais. Vejam-se os meus filhos, por exemplo. Se algo havia de que o Buana não precisava de todo, era de mais palradores sem o ADN dele a gatinhar-lhe pela propriedade, portanto, de uma perspetiva comercial, era vantajoso convertê-los em lucro.
Tanto quanto eu pudera perceber, a única chama capaz de o incendiar era nas noites em que se ia meter na cama de alguma mulher e gritava com uma ferocidade tão destemperada que o conseguíamos ouvir nas nossas acomodações e gelava-se-nos o sangue.
O caso é que o Buana e a sua família eram o mundo que eu conhecia e ali estava eu a aventurar-me no perigoso desconhecido. A verdade é que já não era uma escrava como os outros, medíocres e inúteis.
O Buana promovera-me a sua secretária pessoal, porque eu me expressava bem e tinha boa cabeça (sem ser propriamente inteligente, no entendimento deles).
Segundo os termos do meu acordo, era um cargo vitalício. Trabalhava de segunda a domingo, das 00:00 às 23:55, e tinha de estar disponível para fazer horas extraordinárias sempre que necessário. O meu salário anual era nada, mais um bónus de coisa nenhuma por bom comportamento, sendo-me descontados em açoites as insolências, os atrasos e as faltas.
Felizmente, levei um único castigo leve. Aconteceu logo ao princípio, quando ainda estava a fazer a formação e tive esta avaliação: Assiduidade 100%. Pontualidade 100%. Motivação 10%. Podia ser mais trabalhadora e é dada a distrações, isto é, devaneios. Depois deste relatório, fiz por cumprir com distinção todos os parâmetros de desempenho. Também se esperava que estivesse sempre apresentável e aprendi a simular um sorriso simpático, mas que não expressasse de modo algum satisfação pessoal. É por demais desaconselhável que o nosso «contentamento» exceda o deles.
Para um escravo doméstico, tudo isto era da norma e posso dizer que nunca dei ao Buana motivo para se queixar.
Era a perfeita brancumba doméstica.
Escondida atrás de uma majestosa árvore-do-pão carregada de bolbosos frutos verdes que a todo o momento podiam cair em cheio na minha frágil cabeça humana, espalhando os meus miolos a toda a volta, perscrutei o fundo da avenida.
O coração chocalhava-me no peito como ervilhas secas numa cabaça. Mais uma carruagem passou por mim. Lá dentro ia um casal a rir.
A poeira levantada pelas rodas e pelos cascos dos cavalos acertou-me na cara. De fugida, vi a mulher; era a Madama Subria, essa coquete.
Foi de coração afogado que a vi não tirar os olhos do Frank quando o amarraram à árvore e o açoitaram. Esteve sempre a pestanejar muito depressa. Primeiro julguei que aquilo fosse pena dele, mas depois percebi que ela chorava por si mesma. Consigo ver muito bem o que vai na cabeça desta gente. Quando somos invisíveis, é facílimo de se fazer.
E eu via como os ambossanos tinham endurecido os corações para não verem a nossa humanidade. Convenceram-se de que não sentimos como eles, e assim não têm de sentir nada por nós. É conveniente e lucrativo.
Percebi que a Madama Subria acabava de perder a esperança de encontrar alguém especial que a entretivesse quando estava enfastiada. Possivelmente, assistiu ao castigo porque o Mr. Subria a obrigou. Regra geral, as ambossanas eram demasiado «florzinhas de estufa» para verem tais coisas. O Mr. Subria tinha um trabalho importante como gerente sénior no Baringso Bank.
Ali estava ele, alto e tétrico ao lado da sua atraente mulherzinha, e — coisa nada característica do Buana — esboçava um sorriso.
Mal a carruagem passou, deixei a viela a correr.
Senti-me mais segura ao chegar ao bairro de Edgwa. Passei sob a famosa entrada: dois dentes de elefante com as pontas a tocar-se, formando um grande arco a uns monumentais 20 metros do chão.
Depois dos requintes afetados de Mayfah, Edgwa foi um assalto aos sentidos. Estava inundado de gente, o burburinho era contínuo e, vindo das tendas de música, o aphrobeat a tocar aos berros sacudia-nos até aos ossos. O bairro de Edgwa era famoso por causa do grande bazar aberto noite e dia e que se estendia por quilómetros ao longo de uma via pública semeada de lixo que continuava até ao vale de m’Aiduru, outro enclave de gente rica, de grandes senhores e suas vastas propriedades. O vale era atravessado por um canal que os residentes tinham aproveitado para um meio de transporte que poupava energia e que era exclusivo da elite: pirogas movidas a escravos. Dessa forma, conseguiam evitar as multidões e o chão de laterite do bazar, que, estando seco, lhes enchia as roupas de uma poeira avermelhada e, estando molhado, ficava reduzido a um lodo imundo no qual os pés se afundavam.
Fui avançando, fingindo-me interessada no que havia à venda nas várias tendas — convinha parecer que viera comprar alguma coisa a mando do meu amo, por isso tratei de manter a cabeça bem erguida e a cesta equilibrada, os braços descidos e as mãos descontraídas. Mas havia que ter cuidado; andar demasiado direita e altiva podia valer-me acusações de ser emproada. Dignidade interior versus instinto de sobrevivência: não era nada fácil encontrar o equilíbrio entre os dois. Mas escusava de me ter preocupado, porque aos negociantes só interessava a probabilidade de lhes comprarmos ou não alguma coisa e, verificando-se a primeira, qual o valor mais exagerado que nos podiam pedir pelo artigo em causa, já a contar que iríamos regatear, iniciando-se uma batalha em que venceria o mais habilidoso e determinado.
Em várias barracas vendiam-se melões em vias de apodrecer; os vendedores abriam-nos, escorria um suco acerejado e o ar enchia-se de um aroma tão doce que agoniava. Lembraram-me as cabeças dos fugitivos que tinham sido apanhados, de olhos pretos como sementes cravados em mim. Arrepiante.
Passei por um armeiro sentado no chão a trabalhar, a bigorna entre as pernas.
Vi membros da Associação dos Produtores de Algodão a vender os seus cestos feitos de algodão cru, tão bonitos que tive de resistir ao impulso de mergulhar as mãos na sua macieza de espuma densa.
Ergui o olhar a tempo de evitar que quatro ratazanas a contorcer-se moribundas me roçassem a cara. Segurava-as um vendedor ambulante que andava a vender saquinhas de veneno de rato.
Um jovem alto, magro e musculoso, que trazia equilibrada na cabeça uma tábua com mais de um metro, avançava na minha direção como quem faz marcha atlética e só não colidimos porque me desviei a tempo.
Fui empurrada por altivas matronas que tinham vindo desmoer o que tinham comido e que de seguida regressariam aos banquetes. Ali andavam elas todas emproadas, de caras pintadas com giz e pó de sândalo e coxas a roçar como lábios carnudos.
Cheia de adrenalina como estava, por aquela altura já tinha esgotado os hidratos de carbono da minha última refeição e a fome era tanta que o aroma dos frangos com especiarias a assar no espeto quase me fez desmaiar.
Os grãos de café formavam pirâmides avermelhadas e havia tigelas com toranjas rosadas, rolos de tecidos de algodão encerado de todas as cores, cabeceiras de cama pintadas e bancos de assento curvo decorados com gravações em baixo-relevo.
Os cachos de banana verde pareciam amontoados de dedos. O sal do deserto lembrava lama seca.
Muitos daqueles negociantes eram imigrantes da Áphrika do Norte e do Reino das Areias Arábicas e alguns tinham tido um papel fundamental no comércio de escravos — ou a Indústria, como lhe chamavam. Chegavam à Central da Escravatura e apresentavam os seus impressionantes curricula vitae detalhando os seus brilhantes dotes equestres e técnica exemplar no saque de aldeias e no rapto de mulheres e crianças europeianas para serem vendidas como escravas. Alguns eram ex-piratas que se tinham dedicado à captura de desditosos pescadores e marinheiros europeianos cujo azar fora andarem em alto-mar na altura errada. Infelizmente, todos esses imigrantes árabes depressa descobriam que as suas aptidões longamente buriladas de nada serviam no Reino Unido, onde a escravatura era sobretudo uma questão administrativa.
Naquela multidão estavam também as massas anónimas da cidade, gente normal e pobre — toda a classe trabalhadora ambossana, que trabalhava quando arranjava trabalho e que vestia roupas de tecidos tão beras que se rasgavam como se fossem teias de aranha. Aquando da minha chegada, surpreendera-me ver tal pobreza. Pretos pobres na Grande Ambossa? Havia-os, de facto, por incrível que parecesse.
E fiquei ainda mais espantada ao descobrir que, em tempos que já lá iam, também houvera ambossanos enviados para as plantações de cana-de-açúcar nas ilhas, onde trabalhavam lado a lado com os brancos. Alguns eram servos contratados, outros tinham sido raptados e eram escravos como nós.
Mas, regra geral, os europeianos eram considerados a mão de obra mais indicada para aquele trabalho.
Sorte a nossa.
Em dias de festa viam-se pelas ruas ambossanos pobres, que não tinham motivos para celebrar ou dar graças, mas que aproveitavam qualquer pretexto para se escaparem por umas horas das suas barracas miseráveis nos bairros de lata de Harlesdene (a norte), Poplarare (a nascente), Pe Khama (a sul) e Goatsherd Bush (a poente).
Os seus filhos adolescentes tinham olhos salientes e esgazeados, rostos ossudos, lábios frouxos, peitos encovados, ancas descarnadas e pernas de grilo.
Nenhum deles me daria problemas. Aliás, não era do conhecimento geral, mas havia ambossanos das classes trabalhadoras que alinhavam por nós no combate à classe dominante e ajudavam a Resistência.
Já outros não eram tão simpáticos e ao verem-nos do outro lado da rua punham-se a gritar: «Volta para a tua terra, brancumba! Só cá andas a roubar-nos o emprego!» Alguns até nos agrediam com pedras.
A estrada estava semeada de cascas de nozes-pecãs, cocos partidos, tirinhas de pele de porco, beatas de cigarro, excrementos de mangustos e de antílopes, preservativos de tripa de porco usados e demais lixo habitual da vida numa grande cidade.
Tentei andar depressa, mas sem dar essa impressão. Já só tinha 20 minutos para chegar à estação de Paddinto e estava tudo a correr bem, até que me cruzei com um grupo de cinco ou seis brancos de barbas malcuidadas e escaras no peito. Se podiam passar o serão entretidos a jogar dominó debaixo de um embondeiro, então eram certamente homens livres, além de ser visível neles aquela atitude de bicho amedrontado típica de quase todos os brancos alforriados, alerta para tudo à sua volta e sempre a postos para se esgueirar por uma passagem escondida ou desaparecer na multidão a fim de evitar algum confronto ou perigo. Tal como eu já suspeitava, todos eles ergueram os olhares. (Os brancos passavam a vida a cruzar olhares na rua, naquela atitude típica das minorias que em momento algum conseguem esquecer que o são.) Tentei não entrar em pânico, mas, de um momento para o outro, todos os parâmetros da minha vida estavam a mudar.
Fugira da escravatura e ia a caminho da liberdade, mas ainda não era livre, portanto na prática estava em terra de ninguém. Mas uma coisa era certa: ao abandonar a propriedade do meu amo, deixara de estar sob a sua proteção, pelo que agora já não podia fingir que não vira aqueles homens, como normalmente teria feito. Aqueles de nós que ainda viviam em escravatura tanto olhavam as pequenas comunidades de brancos alforriados com pena (porque muitos deles se viam obrigados a procurar o que comer no lixo) como com inveja.
Também isto me surpreendera ao chegar à Grande Ambossa. Que, independentemente da razão da sua alforria, os brancos livres pudessem permanecer no país, ainda que muitos ambossanos defendessem a sua expulsão.
Na sua maioria, os brancos alforriados viam-se condenados à miséria e dividiam tenda com outros em guetos degradados nos arredores das grandes cidades, lugares a que, em jeito de troça, os ambossanos ricos chamavam «Subúrbios Baunilha», o oposto das avenidas orladas de coqueiros das suas «Cidades Chocolate».
Ouvíamos dizer que nos subúrbios se vendiam as indumentárias tradicionais de várias nações, coisas como as bolsas de pele que os serranos usavam à frente dos saiotes, calças curtas, justilhos de couro, saias de camponesa, elmos de metal adornados com chifres, cotas de malha, boleros, longos vestidos com gola de pele, corpetes que nos faziam a cintura muito mais estreita e anquinhas que nos aumentavam consideravelmente as ancas, tornando-as robustas e chamativas.
Nos subúrbios havia bares escondidos onde se bebia uísque e grogue, bandas de rapazinhos que cantavam madrigais, recitais de flauta de Bisel e até cantores de protesto que se erguiam em defesa dos direitos civis. E havia os templos clandestinos, onde tanto se tocavam furiosamente pandeiretas como os fiéis possuídos falavam numa algaraviada de línguas, mesclando-se o cristianismo e o vudu.
E havia cabeleireiros brancos que vendiam os pentes de dentes finos ideais para o nosso cabelo, do qual não se conseguia fazer nada por ser quase insubstancial. Nos subúrbios, só muito raramente se via uma branca alforriada com o seu cabelo natural. Quase todas preferiam as permanentes, os puxos e os entrançados das ambossanas, e ainda havia o estilo de eleição: o aphro. De um modo geral, as suburbanizadas punham extensões de cabelo crespo para ficarem iguais às aphrikanas; cortavam muito curto o seu cabelo fino, depois eram-lhes cosidos aqueles tufos riçados, para o tão desejado (e obviamente falso) efeito aphrikano. Todo o processo chegava a levar dez horas e depressa começavam a ver-se as raízes louras, ruivas, castanhas ou lisas, o que, ao que parecia, era considerado «rasca».
Os nossos homens até gozavam, diziam que não podiam mexer no cabelo de uma branca porque o mais certo era trazerem-no agarrado às mãos. Chegavam a ver-se extensões de cabelo riçado pelas ruas, como se tivessem andado a tosquiar ovelhas negras.
Outra moda adotada em larga escala nos subúrbios era a do bronzeado, e também se conseguia achatar o nariz por preços muito razoáveis, dizia-se, embora eu sempre tenha achado que um nariz achatado e de narinas largas num rosto de branco ficava ridículo. De resto, só a ideia de me darem com um macete no nariz deixava-me arrepiada.
Mas, sobretudo, nos subúrbios vendiam-se os exóticos manjares europeianos que não se encontravam em mais nenhum lado, delícias como couves-de-bruxelas, pepino, alface, ervilhas, pudim de tapioca, limonada, pão branco ou mesmo couve.
Dantes pensava em todas essas comidas deliciosas e simples, sem aquelas pimentas e especiarias horríveis, e começava logo a salivar.
Os subúrbios estavam interditos aos da minha categoria, claro, mas eu sonhava que dava passeios pela lendária Brixtane, no sul da cidade, ou por To Ten Ha Ma, situada do lado nascente e originalmente colonizada por marinheiros chineses.
Alguns homens brancos alforriados sobreviviam trabalhando como porteiros ou então como barqueiros no porto, enquanto as mulheres lavavam roupa ou, o que era mais frequente, andavam pelas ruas a vender todo o tipo de artigos.
De um modo geral, os ambossanos não se atreviam a entrar nos Subúrbios Baunilha, com exceção dos temidos xerifes que quase diariamente batiam as dunas em busca de foragidos. Mas claro que os subúrbios eram o último destino que algum escravo fugido escolheria. Recentemente, ouvira comentar que alguns aphrikanos corajosos vindos da Áphrika Continental e que nas férias escolhiam a Grande Ambossa como destino turístico tinham começado a fazer excursões aos subúrbios. Na segurança das suas carruagens e protegidos por uma escolta de guerreiros massai ou zulus, ficavam a olhar esbugalhados para os nativos dos guetos, tomados de um fascínio antropológico.
Os brancos alforriados tratavam de se manter juntos, porque estavam numa cidade onde os xerifes andavam pelas estradas e paravam e revistavam qualquer jovem do sexo masculino ao abrigo da temida Lei da Pessoa Suspeita, a qual ditava que qualquer indivíduo podia ser detido sob a simples desconfiança de que se tratava de um escravo foragido ou de um criminoso do tipo mais corriqueiro. Evidentemente, ter a pele branca já era motivo de sobra para os xerifes abordarem um jovem na rua e o fazerem despir-se à vista de toda a gente para o revistarem. Quase todos os cocheiros eram parados caso andassem na estrada e não levassem passageiros, sobretudo os que eram propriedade daquele tipo de dono rico adepto de toques personalizados como mandar revestir a ouro os raios das rodas das suas carruagens.
Um outro perigo era o dos gangues entusiastas do recrutamento forçado, que faziam incursões pelas ruas mais escondidas, rasgavam as Cartas de Alforria de brancos libertados, tanto homens como mulheres, e levavam-nos nas suas carroças para os irem deixar num navio de escravos atracado na ilha dos Cães Selvagens, onde ficavam os cais de onde se rumava aos Japões Ocidentais.
Rezei para que aqueles homens brancos não viessem atrás de mim. Sendo eu uma branca solteira, tinha muitos pretendentes entre os da minha raça, a quem agradava o meu corpo escanzelado. Clavículas proeminentes, o ondulado do esterno claramente visível, um estômago côncavo e um cabelo louro ralo eram, na Europa, o expoente máximo da beleza, não obstante os ambossanos acharem-me tão feia que metia medo ao susto. E, vivendo eu no seu mundo, não podia senão conviver mal com a minha aparência.
Todas as manhãs repetia um mantra motivador diante do espelho. Tentava não me ver tal como me viam os ambossanos: «Narinas fechadas, tez macilenta, cabelo escorrido e oleoso e olhos mortiços que não inspiram confiança, além de não ter rabo.» Aos olhos deles, tudo isto me inferiorizava. Por isso, dizia para comigo num tom confiante:
— Sim, tenho a pele branca e sou loira. Tenho narinas estreitas e lábios finos. Tenho um cabelo rico em óleos naturais e umas nádegas não gordas. Coro com facilidade, fico rubicunda se apanho sol e tenho uns olhos azuis que, não revelando propriamente o que sentem, denotam perspicácia. Sim, sou uma mulher branca. Sou branca e sou bonita!
Às mulheres como eu, os homens da minha raça chamavam Barbis, numa alusão às populares bonecas de trapos da nossa terra de origem, aquelas figurinhas femininas com dois centímetros de cintura, botões azuis a fazer de olhos e madeixas louras de dez centímetros. Não havia, por lá, menina que as não adorasse.
Mas o mesmo não acontecia na Grande Ambossa. Qualquer menina escrava deste continente teria escolhido uma das Rainhas Aphrikanas, de novo, bonecas de trapos, mas com rabos transbordantes, lábios grossos, cheias de pulseiras e com cabelos lanosos.
Ora, isto arrasava-nos a autoestima.
Não sendo prática assumida, algumas brancas mais voluptuosas eram muito desejadas pelo macho ambossano. E, independentemente de como as coisas acontecessem, na generalidade as brancas tinham o rótulo de serem sexualmente insaciáveis. O que só podia ser uma piada cruel, senão digam-me: como podíamos nós não acatar os avanços deles?
O macho ambossano gostava de mulheres substanciais. Mulher gorda era mulher bem alimentada, pelo que, ao passear-se com ela pela rua, era como se o macho em questão estivesse a esfregar o seu livro de cheques na cara dos demais. Algumas delas tomavam hormonas de galinha para ficarem com os seios maiores e os traseiros mais espetados. O Buana nunca me procurara, e, se a sua mais recente futura esposa não vestisse tamanhos grandes, era prontamente colocada em regime de engorda no rancho em Onga, onde a faziam passar o dia inteiro sentada a comer sonhos de inhame, dónutes, ẹ̀bà, banana-da-terra frita, batatas fritas a escorrer óleo, arroz com a goma, sorgo, fatias de carne de vaca e de borrego, toucinho frito, caju, pãezinhos, queijo, bolo de chocolate, abacate e frangos inteiros ainda com a pele. Atravessei o mercado — para meu alívio, não fora seguida —, dobrei a esquina e segui para Paddinto. Mais uns minutos e estaria na estação. O Sol desaparecera há horas, mas ainda sentia a sua odiosa língua escaldante a esfolar-me o pescoço.
Mal me atrevi a respirar ao passar pelas torres de escritórios na Baixa, vertiginosas construções de taipa que se erguiam por entre incontáveis cafés trendy que iam brotando como cogumelos para responder a duas necessidades que andam de mão dada: beber café e fazer negócios.
Os cafés de Paddinto eram lendários; alguns até tinham um estrado para leilões. Estupidamente, pensara que estariam fechados, visto estar a decorrer a mais sagrada das festas religiosas, mas enfim, suponho que aos seus proprietários importaria mais o lucro do que a fé. Muitos estavam abertos como num dia normal. Raios!
Passei pelo Cocoa Tree, pelo Coasta Coffee, pelo Hut Tropicana, pelo Cafe Shaka, pelo Demerara’s Den, pelo Starbright e, por último, por aquele que ultimamente estava muito em voga, o Shuga — na verdade, uma cadeia de cafés muito trendy com estabelecimentos desde os Japões Ocidentais à Amersha, um posto avançado a noroeste, muito longe de Londôlo.
A especialidade do Shuga era uma novidade que colhera grande entusiasmo: o cappuccino com rum, ou rumpaccino. Além disso, tinham-se lembrado de outra graça que também caíra no goto: as gordas do dia anunciadas por tambor falante, «Sempre à Hora Certa», era esse o lema deles (inspirados num meio que caíra em desuso há que tempos). E ainda havia a tarte de cainito caseira com gelado de amendoim, e finalmente, tal como anunciado a giz num quadro preto,
«Escravos Fresquinhos!»
Os homens que frequentavam o Shuga cheiravam um escravo a dois quilómetros. Eram como perdigueiros. Uma parte vinha ao serviço de fazendeiros amarikanos ou dos Japões Ocidentais e a sua incumbência era comprar europeianos para trabalharem nas plantações, mas outros eram simples chefes de famílias da classe média que precisavam de reforçar o pessoal doméstico.
Sempre tentara consolar-me pensando que, ao destruírem-nos, eles estavam também a destruir-se. O açúcar era um produto muito procurado, mas a gulodice pagava-se cara, com os dentes. Outro produto muito procurado era o café, mas também a cafeína trazia uma fatura associada: era viciante e causava palpitações, osteoporose e, de um modo geral, irritabilidade. O rum pagava-se com doença crónica do fígado, alcoolismo e perda de memória permanente. O tabaco pagava-se com cancro, manchas nos dentes e enfisema pulmonar.
Sem dar por isso, parara à porta do Shuga enquanto o meu cérebro se lançava noutra das suas digressões de moto próprio. Agora que a liberdade estava tão perto, começavam a vir à tona os anos de raiva contida. Acabava de fazer precisamente o que não devia ter feito: espreitara para o interior do estabelecimento, uma imitação do antigo estilo rústico e simples, não faltando o obrigatório retrato do presidente vitalício Sanni Abasta pendurado no lugar de honra: por cima do balcão.
E então vi uma figura masculina no estrado.
O ar estava denso, do fumo do tabaco, e pairava o aroma intenso e penetrante do café acabado de fazer.
Estava em curso um leilão.
O rapaz em exibição no estrado teria uns 15 anos. Uma peça de caça de gabarito, portanto. Estava de costas para mim, mas não queria ver os homens que o disputavam, por isso voltara para a porta o rosto cheio de borbulhas e magoado dos murros.
Estava corado de vergonha, como seria de esperar de um adolescente. Fosse ele um homem feito, ter-lhe-ia antes visto os dentes a ranger de raiva.
Estava nu e, ao ver-lhe as costas e as nádegas, julguei que tinha baratas a andarem-lhe pelo corpo, mas não, era sangue seco a formar crostas.
Talvez tivesse tentado fugir ou falado na língua materna ou cometido algum outro crime do género.
Fui examinando os homens ali reunidos. Estavam entusiasmados e de rostos transpirados. Vestiam túnicas estampadas à mão, que usavam a cobrir-lhes um ombro ou com um nó à cintura. Fumavam cachimbo e estavam sentados de pernas afastadas, cada um a ocupar o dobro da sua largura. Tinham vozes grossas e retumbantes, típicas de ambossanos, e iam licitando à desgarrada. Fixei-me num que era particularmente jovem. Estava sentado um tanto à margem e parecia enfastiado. Inclinara a cabeça e ia coçando um ouvido com uma pena de pombo. E, cortando a direito pelo nevoeiro de fumo e pelo estrépito de vozes, o seu olhar acabava de se fixar no meu com o que começou por ser surpresa, mas que depressa se tornou reconhecimento.
Porque ele me conhecia. Era o Bamwoze.
O segundo filho do Buana, mas o predileto.
De tantos que me poderiam ter apanhado em flagrante. O Bamwoze.
Fora ama de leite do sacaninha. Limpara-lhe o rabo malcheiroso e embalara-o até ele adormecer. Amamentara-o quando o meu primeiro bebé me fora tirado e os meus seios estavam cheios de leite.
E fizera tudo isso a chorar a minha perda.
Dera ao Bamwoze todo o amor que teria dado ao meu bebé.
Chegara a iludir-me um par de vezes dizendo para comigo que ele era meu.
Porque a verdade é que o Bamwoze se afeiçoou a mim e não me largava, parecia uma carraça.
Depois cresceu e mandaram-no para a floresta — o ritual iniciático para se tornar um homem. Ao regressar, depois de dias a fio enterrado até à cabeça para provar a sua resiliência e de ter matado um crocodilo com as próprias mãos para mostrar que era forte, passou a andar todo empertigado pela propriedade armado em minibuana e foi como se eu deixasse de existir para ele, eu, de cujos seios saíra o leite que lhe nutrira os ossos, o cérebro, a pele e os músculos.
A ama morrera. Tornara-se invisível.
Algum tempo depois, o Buana descobriu que o Bamwoze tinha engravidado uma jovem escrava de um vizinho, outro rito de passagem obrigatório para qualquer filho de um grande fazendeiro, com a diferença de que, neste caso, o filho tentou fugir com a escrava, e para a Europa, ainda por cima. Isso já era gozar com a cara do pai! Qual seria a ideia deles? Queriam fazer uma Grande Excursão?
O Buana deserdou o Bamwoze e correu com ele de casa. Não sei o que foi feito da rapariga — suponho que a mataram, ou então enviaram-na para o Novo Mundo. O certo é que nos enchemos todos de um novo respeito pelo Bamwoze ao sabermos que ele abdicara da fortuna por amor a uma mulata. Mais tarde, soubemos que ele próprio se estabelecera como comerciante de escravos, porque só assim conseguia assegurar a vida confortável a que se habituara desde o berço. Ou seja, o caso com a jovem escrava fora um desvio de trajetória, compreendemos; para ele, a mulata bonitinha não passara de um troféu, ou então tratara-se de um acesso de rebeldia adolescente contra o seu pai, o Buana. De uma coisa eu tinha a certeza: ele estava-se nas tintas para nós, escravos. E ali estava ele agora, passados tantos anos, de olhos cravados em mim e perfeitamente ciente de que eu não devia estar ali e de que a explicação para isso só podia ser uma. Fora um rapaz corpulento e tornara-se um homem corpulento, um típico ambossano. Reconheci a expressão familiar de autocomiseração que lhe vira no rosto gorducho de criança antes de ele se tornar num homem, antes de a ossatura surgir sob as bochechas e de lhe moldar as feições, fazendo-lhe do rosto uma máscara arrogante e feroz.
Ali estava o menino mimado que conseguia tudo quanto queria — outro hambúrguer de girafa, mais gomas de baunilha, outro camelo bebé para ele andar pela propriedade. Em criança, nada jamais lhe fora negado, por isso, como sempre acontece com os privilegiados deste mundo, nada o satisfazia.
O infeliz continuava cheio de pena de si.
Não fiz um único movimento, e ele tão-pouco. Vi-lhe a hesitação no olhar, estava a ponderar as opções, a tentar decidir qual lhe seria mais conveniente. Fazendo eu o mais pequeno movimento, decidiria por ele e fá-lo-ia dar o alarme. Os segundos foram passando. A sobrecarga sensorial do fumo, dos odores, das licitações aos berros desapareceu. Eu sabia que súplicas com o olhar eram uma má ideia; ele sentir-se-ia manipulado e resistir-lhes-ia. Por outro lado, mostrando-me assustada, acordaria o seu desprezo. Assim sendo, mantive-me neutra — que era a postura por defeito de qualquer escravo. E então intuí a ideia que se começava a formar na cabeça dele. Deixar-me ir seria uma maneira de se vingar do pai.
Ambos sabíamos que eu acabava de lhe ler o pensamento.
Ele sorriu para consigo e, com um magnânimo revirar de olhos, ergueu a mão num gesto displicente. Vai lá. Era livre de seguir o meu caminho.
Passados segundos, já eu corria.
Não queria saber. O meu tempo esgotara-se. Se alguém me mandasse parar, tanto pior.
Encontrei os arbustos sujos de terra sem grande dificuldade e, chamando a mim todas as minhas forças, levantei a tampa de ferro do poço de visita. Desci ao interior e então senti umas mãos fortes segurarem-me as ancas estreitas com um tal calor humano e uma tal firmeza que voltei à infância, quando o meu pai me lançava ao ar e depois me apanhava. Mas seriam estas mãos igualmente seguras? Voltei-me e deparei com um ambossano idoso. Segurava uma candeia de barro que fedia a querosene. A sua careca áspera e irregular como uma cabaça tinha a marca de uma fiada de dentes de antílope. Ele abriu um amistoso sorriso de esguelha, como que para me assegurar que aquilo não era uma cilada.
— A Resistência dá-te as boas-vindas, Omorenomwara. Sou o teu Guia. Alegra-nos que tenhas conseguido chegar aqui.
Omorenomwara era o nome de escrava que a P.I.G, a mãe da Milagrinho, me pôs quando me comprou. Significa: «Esta criança não sofrerá.»
*
Detive-me.
Por fim, podia dizer a um ambossano o meu nome de batismo.
Senti-me a reaver a minha identidade. Até tremi.
— Chama-me Doris, por favor — gaguejei. — Sou a Doris. O meu nome é Doris.
Ele arreganhou um sorriso e tentou repetir a minha verdadeira apelação, devagar e com um ar um tanto embaraçado, dividindo-a em três sílabas alongadas, a língua a atrapalhar-se ao experimentar aquela fonética estranha. Por fim, conseguiu pronunciar o meu nome e mostrou-se radiante com a proeza.
Até fiquei enternecida, juro.
— Dooó‑riii‑chhh — foi como lhe saiu. Credo.
Mas pronto, sorri-lhe como se ele se tivesse saído lindamente.
Pelo menos tentou.
— Temos de ir depressa — disse‑-me então. — Vou levar‐te até à linha Bakalo. Tens lá um comboio à espera.
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