1. KIEV: OS DIAS DA INVASÃO
Os céus de Kiev estão carregados de nuvens cinzentas no dia em que faço anos e em que o presidente da Federação Russa, Vladimir Putin, declara unilateralmente a independência das Repúblicas Separatistas de Donetsk e Lugansk, a 21 de fevereiro de 2022. Um arrepio percorre a capital ucraniana que mantém a sua vida normal, tentando ignorar a realidade e a escalada da retórica internacional. Almoçamos a meio da tarde no Il Molino, um restaurante italiano perto da Golden Gate, no centro da cidade. Colegas próximos fazem-me uma surpresa: surgem com um ramo de tulipas brancas e um presente de bordado tradicional ucraniano. Brindamos num momento descontraído, animado e acolhedor. À porta do restaurante, dois acordeonistas alegram a rua. A centenas de metros, junto ao hotel onde estamos instalados, uma rapariga solta melodias no seu violino, como costuma fazer quase todos os dias. No centro de Kiev continuam a vender-se flores na rua, os restaurantes e cafés permanecem cheios de gente, os transportes cumprem os seus horários regulares.
O discurso de Putin causa calafrios aos ucranianos, ao invocar que a Ucrânia é família, que se trata de uma parte da história da Rússia desintegrada desde esse momento mau que prosperou: o desmembramento da URSS. Putin não perdoa a viragem de Kiev ao Ocidente e à NATO, que encara como uma ameaça a Moscovo, por isso sublinha a necessidade de declarar a independência de Donetsk e Lugansk, no Donbass. Ao mesmo tempo, está em marcha a deslocação de populações dessas regiões para o interior das fronteiras da Federação Russa.
As palavras do líder russo são seguidas atentamente em Kiev. Ninguém quer encarar um conflito de larga escala. No dia seguinte, a 22 de fevereiro, no jardim junto à Universidade Nacional de Kiev Taras Shevchenko, o bancário Aleksandr, de 34 anos, não tira os olhos do telemóvel. Está sentado num banco do jardim onde anseia pelo anúncio de novas sanções à Rússia, em linha com o que o Ocidente prometera para travar Putin. A deterioração da economia ucraniana acabou com o emprego que Aleksandr tinha num banco. Está desempregado e preocupado. “Tudo isto é muito complicado de entender, parece que a guerra está a instalar-se outra vez, como há oito anos, mas agora com algo de novo.”
Os contactos entre Moscovo e as capitais ocidentais têm sido regulares, intensos mas sem consequência. Em Kiev, há quem entenda que Vladimir Putin está a jogar no seu campeonato preferido ao dominar todas as atenções do mundo. E delicia-se nas suas manobras sinuosas. Porquê parar se todos os olhos estão voltados para si? Porque não aproveitar a degradação da economia ucraniana e a incapacidade da Europa demonstrada ao longo dos últimos meses? Porque não prolongar o braço de ferro com o seu adversário preferido, os Estados Unidos?
Apesar do clima de alta tensão, ainda há quem queira acreditar na via negocial. Os estudantes da Universidade Nacional de Kiev caminham dispersos em pequenos grupos pelo jardim, com um chocolate quente na mão, na esperança de haver disponibilidade internacional para conversações urgentes. Querem acreditar na força da palavra, pela razão que a produtora de cinema Elena evoca junto à estátua do maior poeta ucraniano, Taras Shevchenko. “Não há necessidade de ninguém ser ferido, não há necessidade de matar pessoas em 2022.”
Porém, na noite de 22 de fevereiro, a ameaça aumenta, as tropas russas já estão a ultrapassar as fronteiras que delimitaram a Ucrânia como nação independente em 1991. Este movimento é feito para sublinhar a alegada proteção das Repúblicas Separatistas unilateralmente declaradas independentes no leste do país. Desde 2014 que se mantém o conflito de baixa intensidade entre as autoproclamadas repúblicas pró-russas de Donetsk e Lugansk e as regiões dessas províncias sob administração ucraniana.
O movimento de militares de Moscovo dentro da Ucrânia é considerado uma violação do direito internacional, uma ameaça à integridade territorial e à soberania do país. O presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, impacienta-se, pergunta ao Ocidente por que espera para impor sanções à Rússia. Ao longo das últimas semanas, os Estados Unidos anunciaram por várias vezes a iminência de um conflito de larga escala. Nos últimos meses, a Rússia foi aumentando a presença de soldados até chegar aos 190 mil ao longo da fronteira com a Ucrânia. Sempre com o argumento de estar a desenvolver exercícios militares e com a cumplicidade da Bielorrússia. A NATO reforçou os seus contingentes de tropas no leste da Europa para a eventual defesa dos países bálticos.
A par com o nervosismo, há uma convicção generalizada em Kiev de que o conflito se vai agudizar no leste, na região do Donbass, mas que não se alastrará a toda a Ucrânia. Moscovo tenderá a fortalecer posições de combate em Donetsk e Lugansk, forçando eventualmente as autoridades de Kiev a prescindirem desses territórios para chegar a um domínio semelhante ao que tem na Crimeia: a anexação. Contudo, as autoridades ucranianas repetem que a integridade territorial e a soberania do país são linhas vermelhas intransponíveis.
Kiev mantém o seu ritmo vibrante de capital europeia: os habitantes prosseguem o seu dia a dia entre o emprego e a casa, as crianças a saírem das escolas, as mães a levarem os miúdos mais pequenos aos baloiços e aos escorregas dos parques que existem nos bairros, os fiéis a entrarem e a saírem das igrejas, carros de alta cilindrada nas ruas, restaurantes sofisticados com todas as reservas preenchidas. Música na rua que não dá espaço ao medo.
Na véspera da invasão, a 23 de fevereiro, é declarado o estado de emergência. A Ucrânia está a enfrentar um intenso conflito híbrido com sucessivos ataques cibernéticos aos serviços públicos, nomeadamente aos websites governamentais, do Conselho de Ministros, do Ministério dos Negócios Estrangeiros, do Parlamento, dos Serviços de Segurança. As autoridades pretendem aumentar a vigilância e a proteção dos edifícios públicos, prevenir eventuais atos de sabotagem junto de infraestruturas fundamentais ao país. Os receios de que estejam a entrar elementos infiltrados que visem a desestabilização vai permitir às autoridades uma verificação mais rigorosa da identidade das pessoas. Mas quanto à situação no Donbass, não é revelada qualquer intenção de intensificar manobras na região ou de forçar um avanço pelas autoproclamadas Repúblicas Separatistas reconhecidas por Moscovo.
Visitar o foco da tensão, o Donbass, passou a ser a nossa prioridade no dia 23 de fevereiro. Preparar um avanço para o leste para tentar verificar o que está a acontecer na região mais sensível. Seguimos de manhã para uma reunião no sindicato de jornalistas da Ucrânia, onde estão também elementos do Ministério da Defesa. Há pedidos de credenciais feitos há vários dias por diversos jornalistas para aceder às áreas mais complexas, mas a resposta tarda. Indicam-nos que há cerca de mil jornalistas internacionais na Ucrânia, que o processo de verificação pode demorar, mas prometem agilizá-lo. Nessa esperança, voltamos a deixar os nomes numa lista de reforço de pedidos.
Decidimos comprar bilhetes de comboio para a capital ucraniana da província de Donetsk, a cidade de Kramatorsk, no Donbass. O plano é partir na madrugada do dia seguinte, 24 de fevereiro, no comboio das 6h10 da manhã. Fazemos a reserva de hotel em Kramatorsk.
Por precaução, achamos que será melhor tentar encontrar coletes antibala e capacetes antes de seguir para o Donbass. Peço ajuda ao nosso tradutor, Ilya. Ele lamenta-se, que não conseguirá seguir connosco nessa procura de vestuário de proteção pelas lojas de Kiev, mas promete que vai ajudar. Faz uma primeira pesquisa e conclui que os coletes antibala e os capacetes para jornalistas estão praticamente esgotados em Kiev, mas mesmo assim indica-nos um local onde poderemos tentar a nossa sorte.
Metemo-nos num Uber e avançamos para a morada um pouco afastada do centro de Kiev. Chegamos a um local discreto, no meio de um bairro residencial, que se revela um armazém de material militar em segunda mão. Nos arredores da cidade, têm decorrido treinos para defesa territorial de civis que acorrem a estas lojas para a compra do material. O gerente afirma que já não tem nada do que procuramos, que já vendeu todos os coletes “Press”. Depois de alguma negociação, convencemo-lo a vender-nos o que resta, coletes maiores do que o habitual, capacetes já usados mas que poderão ser úteis em caso de necessidade.
Saímos do armazém com os pesados coletes e procuramos de novo um Uber para regressarmos ao hotel. O trânsito está caótico, cheio de filas de carros por todo o lado, como se fosse o prenúncio de um fim de semana, mas é apenas quarta-feira. Ao mesmo tempo, a atmosfera é tensa e eletrizante. Seguimos em movimento lento e já cai a noite quando cruzamos a Praça da Independência, a Praça Maidan. Ficamos num demorado para-arranca numa rotunda junto a um círculo de altas bandeiras da Ucrânia e da União Europeia que se movem ao vento. Por momentos, cruza-me um pensamento, se voltarei a ver aquelas bandeiras ali, aquele símbolo de uma vontade de um país.
Chegamos ao hotel, onde preparamos a mala para seguir viagem na madrugada seguinte para o Donbass. Avisamos alguns dos colegas próximos do nosso plano de viagem e juntos trocamos impressões no bar do hotel. Todos temos mais dúvidas do que certezas sobre a situação no momento, sobre o que poderá acontecer nos dias seguintes, nas semanas seguintes. Os anúncios ocidentais de invasão iminente já aconteceram por diversas vezes. Moscovo negou sempre essa intenção. A ténue linha diplomática internacional entre o Ocidente e a Federação Russa tem estado aberta, mas sem grandes avanços ou sucessos.
Já noite adentro, começo a receber telefonemas de fontes diplomáticas. Os conselhos que me dão vão no sentido de preparar uma retirada de Kiev e da Ucrânia. Advertem-me para arrepiar caminho, abortar o plano que tínhamos traçado. “Não vá para o Donbass, não se meta no comboio. Não vá!” Insisto em saber a razão de um conselho tão perentório, argumento que em caso de algo se precipitar, certamente o comboio não sairá da estação de Kiev. A única resposta que obtenho é um determinado “Não vá!”. Os telefonemas surgem de várias fontes, todos com a mesma mensagem incisiva mas sem explicações. Começo a pensar que algo maior, mais grave, irá suceder. Mas ficamos no impasse, com os bilhetes comprados para o comboio das 6h10 da manhã para Kramatorsk e a ideia de que temos de nos levantar bastante cedo para tomar uma decisão. Subimos aos quartos do hotel, tarde na noite, para tentar dormir, num turbilhão de incertezas, sem saber o que vai acontecer.
Poucas horas depois, pelas 5 da manhã em Kiev, acordo com um telefonema: a invasão está em marcha, as tropas russas estão a entrar na Ucrânia. A guerra começou. No sobressalto imediato, levanto-me da cama, abro os cortinados do quarto no 7.º piso do hotel para tentar perceber melhor o que está a acontecer. Surge aquele primeiro som das sirenes na cidade que provoca um arrepio pelo corpo todo e deixa claro que Kiev está a ser atacada. Os bombardeamentos e as explosões que se fazem ouvir confirmam-no. Os receios mais profundos a que os ucranianos não queriam dar espaço nas suas vidas estavam agora na rua, no ar. Dentro do Hotel Radisson Blu, as portas dos quartos começam a abrir-se com gente desgrenhada a correr pelos corredores e a avançar para os elevadores. Na receção do hotel, surgem as indicações de que devemos seguir imediatamente para o bunker no piso -2, que tem servido de parque de estacionamento. Há um único elevador de serviço até lá, mas a maioria das pessoas utilizam as escadas estreitas. Acima do corrimão, acabaram de colar um papel na parede com uma seta que indica: Shelter (“Abrigo”). Avançamos por um labirinto de corredores e portas até àquilo que deverá ser um lugar seguro.
O bunker enche-se rapidamente de gente: hóspedes, jornalistas de vários países, homens de negócios, famílias, empregados do hotel. O desespero está estampado nos rostos de muitos, com soluços e lágrimas a deslizarem nas faces, mas sem ruído ou alvoroço. Mãos nervosas entrelaçadas umas nas outras. Ninguém sabe o que vai acontecer a seguir, todas as hipóteses estão na cabeça de cada um. O que vai ser isto? Será que Kiev vai ser arrasada por ataques aéreos? Será que os carros de combate e os soldados russos vão avançar pelas ruas até ao centro da cidade?
Com o dia a romper, saímos à rua para ver o que se passa à nossa volta. A rua está vazia. De alguns prédios há gente a sair com pequenas malas a rolarem no passeio, em passo de corrida. Veículos militares ucranianos avistam-se no cruzamento ao fundo da rua. Nada mais na fria madrugada ao alcance dos olhos. Mas há um ruído de aviões militares ao longe. Pelas 6 da manhã, surge Ilya, de 22 anos, que tinha sido nosso tradutor, fixer, ajuda preciosa nas últimas semanas em Kiev. Tem vestido o seu blusão preto e carrega uma pesada mochila de lona camuflada. Ele tinha-me avisado: “Se for necessário, junto-me à defesa do meu país.” Era exatamente isso que estava a fazer naquele momento. Aos primeiros sons de sirene, perante os primeiros bombardeamentos na capital ucraniana, preparou-se para se juntar aos resistentes. Passou pelo hotel de madrugada para se despedir com um abraço, para dizer que não poderíamos contar mais com ele, que iria partir. Sinto o coração apertado, um sufoco, mas ele segue, passo firme e apressado, sem olhar para trás. Fico destroçada, sem saber se o voltarei a ver e qual será o seu destino.
Em Moscovo, sentado a uma secretária de madeira, Vladimir Putin anuncia a invasão da Ucrânia como uma operação militar especial para desmilitarizar e “desnazificar” o país, e para proteger as populações de origem russófona. Na Ucrânia é instaurada a lei marcial, o poder passa a estar dependente dos militares. O espaço aéreo é encerrado. O presidente Volodymyr Zelensky declara que ninguém quer a guerra, mas apela aos cidadãos para permanecerem em casa, pede às lojas de alimentos e de produtos de primeira necessidade que permaneçam abertas. Há uma corrida às padarias, às farmácias, aos supermercados, às estações de combustível. O receio do que possa vir a acontecer em Kiev leva milhares de ucranianos em pânico a tentarem deixar a cidade. Formam-se longas e demoradas filas de carros nas avenidas que dão acesso às saídas de Kiev, vulneráveis aos ataques. Ao mesmo tempo, as pessoas correm para as estações de comboio para tentarem fugir para qualquer destino. É o êxodo de Kiev, uma extensa cidade de três milhões de habitantes que em 24 horas é virada do avesso, com a vida normal que fervilhava na véspera a desmoronar-se vertiginosamente. Fica o vazio.
A invasão inicia-se por três eixos: pelo norte, incluindo da Bielorrússia; pelo leste da Rússia; e pelo sul, via Crimeia. Os bombardeamentos russos procuram atingir a defesa antiaérea ucraniana, as bases militares, os depósitos de munições, as estações de radar, os aeroportos. Há o receio de que um forte ataque súbito possa levar à debandada das autoridades ucranianas, o que daria espaço a Moscovo para colocar no poder uma liderança fiel a Putin. Sabe-se que a capacidade militar da Ucrânia em termos de armas, homens, munições, equipamento militar e comunicações é muito inferior àquela que é uma das maiores potencias militares do mundo. O objetivo de cercar Kiev torna-se evidente.
Ao final do dia, a área da central nuclear de Chernobyl, a cerca de cem quilómetros a norte de Kiev, está tomada pelas forças russas. Helicópteros russos sobrevoaram a área do aeroporto de Hostomel, nos arredores de Kiev, e atacam-no até este ficar destruído. A embaixada de Portugal aconselha todos os portugueses a saírem do país o mais rapidamente possível para países da União Europeia como a Polónia ou a Roménia. Que se abasteçam de água, alimentos, agasalhos e reserva de combustível para a viagem.
Não está nos nossos planos sair. Contudo, no meio do caos instalado, estamos bloqueados, sem carro, sem fixer. Perdemos o tradutor, guia em Kiev, ao início do dia e é difícil encontrar alguém disponível para trabalhar connosco nestas circunstâncias. Ao fim do dia, consigo contactar um realizador de documentários que aceita acompanhar-nos no dia seguinte. São horas de ansiedade, umas atrás das outras. Já passa da meia-noite quando subimos aos quartos para tentar descansar um pouco, quase não dormimos.
Às 2h da madrugada, toca o telefone do quarto. Ligam da receção com indicações para descermos imediatamente para o bunker. As sirenes na cidade voltam a tocar intensamente, e a essas juntam-se as sirenes dentro de todo o hotel. O bunker enche-se de novo. Há crianças muito pequenas, acordadas, mas em silêncio absoluto. Os pais e as mães envolvem-nas no amparo possível, com os rostos trancados de angústia. Ninguém sabe o que está a acontecer lá fora na noite, ninguém imagina o que poderá acontecer no dia seguinte. Impressiona o silêncio de crianças tão pequenas, com 2/3 anos, que não soltam um choro, uma reclamação, que se ajeitam nos colos, de olhos abertos como se compreendessem o que se está a passar. Uma tensão que quase se toca com os dedos.
O hotel abriu as portas do abrigo subterrâneo aos moradores do bairro. Na rampa que separa o nível -1 do nível -2 do estacionamento, existe uma extensa e pesada porta de ferro que está quase fechada. Todas as precauções estão a ser tomadas perante uma situação imprevisível. O metro de Kiev parou de circular mas abriu as estações para que as pessoas se possam resguardar. É uma cidade voltada para o fundo do chão.
Na manhã seguinte, a 25 de fevereiro, o realizador ucraniano de documentários, que ficou de vir ter connosco ao hotel, tarda em aparecer. Combináramos às 9h da manhã, mas o tempo passa e ele não atende o telemóvel. Ao fim da manhã, acaba por revelar que não vai conseguir aparecer. Perante os bombardeamentos, as explosões e as sirenes persistentes, precisa de ficar em casa, perto da família, à procura de abrigo.
As forças russas estão a avançar pela capital ucraniana, chegaram ao bairro de Obolon, a cerca de nove quilómetros do parlamento de Kiev. Ouvem-se trocas de tiros, rajadas de armas automáticas no centro da cidade. Estarão a decorrer combates nas áreas próximas da sede do governo ucraniano. E as persistentes explosões mais ao longe. Crescem os rumores de que os aliados chechenos de Putin possam estar a infiltrar-se para desencadearem a guerrilha urbana ou chegar mesmo ao coração do poder para acabar com o presidente Volodymyr Zelensky. Foi decretada a mobilização geral e é feito um apelo aos civis que saibam lidar com armas que se apresentem para se juntarem aos militares. Todos os homens entre os 18 e os 60 anos ficam impedidos de sair do país e devem juntar-se às forças de defesa da Ucrânia. O presidente Zelensky publica um vídeo com um comunicado, tal como irá fazer diariamente ao longo da invasão, para reafirmar que está na cidade, que não vai abandonar os cidadãos e as suas tropas na defesa da independência do país.
No dia 26 fevereiro, antes das 8h da manhã, surge de novo o intenso som das sirenes. Pouco depois, o céu de Kiev é rasgado por dois mísseis russos, um deles atinge um prédio numa zona residencial a cinco quilómetros do centro de Kiev. Entretanto, tínhamos conseguido contactar um ucraniano disponível para trabalhar connosco. Pavel surge no hotel com a sua carrinha comercial da loja de aquários que gere. Tem um lugar à frente, o resto é um espaço fechado para mercadoria. Seguimos assim, na carrinha com publicidade aos aquários nas portas, pelas ruas vazias de Kiev. As medidas de segurança apertaram o controlo a cada carro, a cada pessoa que possa surgir. Não há dúvidas quanto à ameaça sentida. Logo ao virar da primeira esquina e face ao nosso avanço, três elementos das forças de segurança apontam as armas diretamente à carrinha em que circulamos. Paramos atrás de um carro que também tinha sido barrado e cujo condutor está deitado no chão, imobilizado, de cara para o asfalto. Saímos imediatamente da carrinha de mãos no ar, apresentamos os documentos de identificação, que são verificados, explicamos que somos jornalistas e após algum tempo acabam por deixar-nos seguir. Procuram elementos infiltrados que possam ser uma componente da agressão russa.
Avançamos para a área residencial atingida pelo míssil. O escasso trânsito da cidade consiste em carros de polícia em marcha de urgência, camiões militares em alta velocidade, veículos de emergência médica. A maioria dos habitantes dos prédios no bairro atingido já deixou a cidade ou está escondida nos abrigos subterrâneos. Os bombeiros andam num vaivém a tentarem minorar o impacto do míssil que entrou pelos pisos 18.º a 21. º do edifício residencial, destruindo vários apartamentos. Ainda sob o fumo e a poeira da destruição, caem pedaços de betão, há cortinados ao vento nas salas que perderam a fachada. A avenida está repleta de destroços, livros que galgaram pisos das estantes das salas para o meio da rua, vidros partidos povoam o asfalto com ferros retorcidos que já formaram varandas. Os que vivem na zona acreditam que o alvo seria o aeroporto de Zhuliany, que fica na linha da área atingida, e que o avanço está a ser feito do norte, de Chernobyl. Yuri Shevchuk, um empresário que vive no bairro e que foi sobressaltado pelo tremendo impacto do míssil, já levou a família para fora de Kiev, mas vai ficar na cidade. “Todos estamos com medo, não sei se nesta altura há alguém que escape ao medo em Kiev, medo de não conseguirmos permanecer como um país livre.”
Toda a zona do edifício está vedada e há grupos de polícias fortemente armados a correrem para as traseiras do prédio. Receberam a indicação de que eventuais pessoas suspeitas poderão estar escondidas no local. Seguem em perseguição no meio de um mar de dúvidas e inquietações partilhadas pela população de Kiev. Onde será o próximo ataque? Que configuração poderá ter? Pouco antes do ataque, a Federação Russa anunciara ter disparado mísseis de cruzeiro. O receio de que a capital ucraniana seja tomada infiltra-se em vários setores. Somam-se as dezenas de explosões em vários pontos da extensa cidade, há tentativas de cortar o abastecimento de energia elétrica, as forças russas tentam atacar uma base do exército ucraniano no centro da cidade, há combates em vários locais de Kiev. Os russos andam dentro da cidade.
Regressamos ao hotel, onde o ambiente está mais pesado. Por dentro da fachada de vidro da entrada hotel foram colocadas placas de madeira para aumentar a proteção. Do lado de fora da porta há agora um aviso a indicar que o hotel está fechado e que a caixa multibanco está fora de serviço. Avisos que não visam os hóspedes, mas que refletem o aumento dos níveis de preocupação da gerência do hotel. Junto à receção, aglomeram-se pequenas filas para levantar dinheiro, embora apenas se consiga retirar o equivalente a 30 euros por dia. Há a recomendação para manter os cortinados dos quartos fechados dia e noite. O restaurante e o bar do hotel encerraram, não há qualquer tipo de abastecimento. No bunker é improvisado um serviço de refeições com sopa instantânea, sumos de fruta, água e biscoitos. A cidade está paralisada, as empregadas partilham o bunker com os hóspedes. Oksana, que faz a limpeza dos quartos, está em pânico, tem um filho no exército e não sabe nada dele, onde está, em que condições. O agravar da situação leva a que no fim da tarde do dia 26 de fevereiro seja decretado o primeiro recolher obrigatório extremo de 38 horas, até à manhã do dia 28. Kiev ficará totalmente por conta dos militares. Qualquer civil que sair à rua é considerado suspeito com eventuais ligações a grupos de sabotagem, por isso poderá ser detido. As autoridades querem passar a cidade a pente fino.
Os moradores do bairro aglomeram-se no bunker, que terá agora mais de cem pessoas. Espalham-se sobre as cadeiras ou pelo chão, famílias com crianças que trouxeram os seus cães que se aninham onde é possível sem que se note a presença dos animais. Perante a impossibilidade de saírem à rua, os adolescentes procuram matar o tempo com jogos de cartas ou com livros. Um deles dedica-se à leitura da biografia de Lady Di, Princesa Diana de Gales. As conversas decorrem quase em murmúrio, como se o silêncio tivesse sido imposto. Mas ninguém tem ânimo. Apenas a invasão de um receio maior.
Face ao aumento do nível de ameaça, passamos a noite no bunker a tentar dormir, vestidos e com as botas ao lado, prontas a calçar. Colchões, edredons, almofadas dos quartos, passaram a ser usados no abrigo num ambiente tenso mas relativamente calmo. Até que surge um sobressalto. Nas condutas que cruzam o chão do piso-2 da cave, ouve-se correr água no meio de um silêncio profundo. O som do líquido em movimento leva a que uma pessoa entre em pânico, aos gritos, imaginando que um produto tóxico possa estar a ser vertido para atingir os que ali procuraram refúgio. É o alvoroço total numa precipitada tentativa de fuga para alcançar as escadas e sair para fora do bunker. Os funcionários do hotel apressam-se a tentar acalmar as pessoas, esclarecem que se trata apenas de uma rotineira descarga de água, nada mais. Mas os nervos estão à flor da pele, cada pequeno incidente é rastilho de pânico face ao nível de ansiedade.
Durante o dia de recolher obrigatório, avistam-se grupos de militares a forçarem portas e a avançarem pelas casas. No hotel está hospedado um contingente de cerca de 30 membros do Comité Internacional da Cruz Vermelha, que fazem as suas reuniões no bunker. Nada deixam transparecer dos seus planos, a não ser a garantia de que vão ficar.
O hall do hotel tornou-se sombrio e silencioso. Cruzam-se conversas estranhas. Um funcionário de uma empresa italiana lamenta a sorte de ter escolhido esta altura para vir a Kiev, de onde não sabe como sair. Um empresário iraniano desfia as mais diversas teorias sobre a evolução do conflito. Numa pequena mesa junto aos cadeirões, alguém deixou um capacete e um copo de plástico. Junto à porta do hotel, sentado a uma pequena mesa, um americano de barriga proeminente mantém-se no posto onde tem feito vigia a quem entre e a quem sai. Parece sempre bem disposto, mesmo durante este longo recolher obrigatório. Anima-se a ver vídeos absurdos no telemóvel e evita qualquer conversa que vá para além do que se passa naquele átrio de hotel. A proteção das portas foi reforçada com cadeiras empilhadas. A penumbra é constante, sem luzes acesas. O gerente do hotel não esconde a sua apreensão.
Com o levantar do recolher obrigatório na manhã de 28 de fevereiro, aqueles que podem começam a sair do hotel e a deixar a cidade. Jornalistas nórdicos pegam nas malas e fazem-se à estrada. As sirenes de aviso de possível ataque aéreo ouvem-se várias vezes. Fontes diplomáticas voltam a contactar-nos com a recomendação de que abandonemos Kiev imediatamente. Pouco depois, os carros do Comité Internacional da Cruz Vermelha recolhem todos os seus elementos para deixarem imediatamente a cidade. Percebe-se que a situação está a piorar. Há uma coluna de forças russas a caminho de Kiev com centenas de carros de combate, soldados e equipamento de apoio que se estende ao longo de dezenas de quilómetros.
Procuramos saber as opções para deixar a cidade e a única forma imediata será o comboio. Avançamos para a estação central de Kiev, onde nos deparamos com um caos absoluto. Milhares de pessoas em largas filas compactas a tentarem chegar às plataformas no meio de total desespero. A intensificação dos bombardeamentos sobre Kiev fez da fuga o objetivo urgente para uma multidão aflita. Inga, uma advogada, passou os últimos três dias em claro. “Não sei o que é dormir! A cada meia hora ouvia uma explosão, caía uma bomba perto da minha casa. Não aguento mais este stress permanente.”
Tentar alcançar um comboio é tarefa impossível, que abandonamos. Acabamos por voltar ao hotel para tentarmos sair no dia seguinte. Tudo está a acontecer muito rapidamente. A maioria dos hóspedes do hotel desapareceu. O americano dos vídeos absurdos já lá não está. Não há rasto dos empresários. Quase todos os jornalistas internacionais saíram. A gerência do hotel foi-se embora. As empregadas que restam começam a trancar os quartos. As chaves já não funcionam. Nos corredores, os respiradores de teto foram cobertos com fita adesiva para tentar conter qualquer espécie de contaminação. À noite, o bunker arrepia, deserto, com os seus múltiplos colchões vazios. Somos muito poucos a passar a noite na cave. Um jornalista italiano abre uma cerveja e partilha. Falamos sobre as possíveis razões para a debandada do hotel. Para além de toda a situação que a invasão implica, estamos numa zona sensível. O hotel fica num quarteirão que está na lista dos principais alvos: a dois passos da sede dos Serviços de Segurança e não muito longe do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Na manhã seguinte, procuro um local para tomar um duche depois de mais uma noite no bunker e numa altura em que já não se consegue entrar nos quartos. Corre a indicação de que há um quarto no quinto andar, o 529, que as empregadas não conseguiram encerrar, uma vez que terá um problema na fechadura. Vou até lá tentar a minha sorte. Entro devagar e apenas restam sinais de ter sido abandonado às pressas. Tomo um duche rápido e volto a sair para o corredor vazio e silencioso. O Radisson Blu é agora um hotel fantasma, sem ninguém, entre o som das sirenes e dos bombardeamentos. No hall de entrada, as proteções da zona da porta de vidro foram reforçadas com mesas de pernas para o ar. Na receção, está um “porteiro” ucraniano com um crachá do Comité Internacional da Cruz Vermelha pendurado ao peito. Dou-lhe um abraço e agradeço a hospitalidade. Nas costas dele, sob o casaco, sinto uma arma enfiada no cinto das calças.
Neva em Kiev quando a carrinha onde iremos atravessar a Ucrânia chega à porta do hotel. Os contactos informais e oficiais convergiram para organizar a viagem, que inclui todos os jornalistas portugueses na capital ucraniana: o Pedro Caldeira Rodrigues da agência Lusa; a Iryna Shev e o Rui do Ó e a Ana Peneda Moreira e o Fernando da Silva da SIC; o Pedro Mourinho e o Nuno Quá da TVI/CNN; eu e o David Araújo da RTP. Vamos ser conduzidos por um motorista ucraniano que conhece os percursos entre Kiev e os países da União Europeia. A carrinha tem uma pequena bandeira portuguesa colada no para-brisas por dentro, e um colete antibala “Press” no tablier, para que a nossa identificação seja mais imediata.
Não é fácil tomar a opção de sair num momento de tanta incerteza. Não se deixa Kiev por vontade própria, antes pelo degradar das condições da nossa própria segurança. Partimos sem saber se a cidade vai resistir ou não, se voltaremos a vê-la na configuração que testemunhamos agora. Passamos pelo jardim da Universidade Nacional de Kiev Taras Shevchenko, intacto e vazio. Vamos cruzando alguns checkpoints dentro de uma cidade sem movimento, polvilhada de militares. O cerco que as tropas russas tentaram montar a Kiev está longe de ser efetivo. Os acessos para as vias que levam ao oeste e ao sul do país estão abertos, cruzamos a cidade sem incidentes.
Deixamos Kiev, o berço eslavo, a mãe das cidades russas, o embrião do estado russo há mais de mil anos. Uma cidade que se esvazia a cada hora face à ofensiva dos que chegam de Moscovo. Pela frente temos uma longa viagem de cerca de 20 horas, entre Kiev e a Roménia, passando pela Moldávia. Avançamos no desconhecido, sem saber o que poderemos enfrentar. Ao percorrermos as estradas, vemos um movimento mais demorado em sentido inverso. Os militares ucranianos passam revista a todos os carros, camiões ou autocarros que se dirigem para Kiev. Muitas estradas secundárias estão fechadas com cruzetas de ferro ou troncos de árvores. Sob uma neve fina que continua a cair, avistam-se soldados a cavarem trincheiras no meio dos campos. À nossa frente, com cerca de uma hora de avanço, seguem de carro jornalistas canadianos com quem vamos mantendo contacto. A surpresa, por enquanto para todos, é a relativa facilidade com que se progride no asfalto. É verdade que somos obrigados a parar com frequência para mostrar a identificação aos militares que vigiam as estradas. Acontece nalguns trajetos formarem-se longas filas que o motorista ucraniano sabe contornar por caminhos secundários. Fazemos a primeira paragem em Bila Tserkva, numa estação de serviço, para abastecermos a carrinha, tomarmos um café e tentarmos perceber a situação no local. Tudo parece relativamente normal. Os homens foram recolher armas que as autoridades ucranianas colocaram ao dispor de quem queira participar na defesa comum, em Bila Tserkva como em qualquer outra localidade do país. Além disso, foi sugerido aos civis que se defendam com cocktails molotov. Seguimos para Vinnytsia, uma zona mais sensível no cruzamento de várias rotas rodoviárias onde encontramos mais militares visíveis e nervosos. Os céus são cruzados pelos caças que progridem para as suas missões de ataque. Seguimos lentamente por estradas sinuosas. À entrada das localidades foram erguidas barreiras de pedra, algumas forradas a rede de camuflado com ícones religiosos e homens a fazerem o controle do movimento. Há a convicção entre os ucranianos de que só podem contar com eles próprios nas trincheiras, no manuseamento das armas, na defesa do território, daí que estejam a postos por todo o país.
Ao longo da viagem, somos monitorizados à distância por elementos do Ministério da Defesa português que também agilizaram as passagens de fronteira na Moldávia e no país de destino, a Roménia. Antes de sairmos da Ucrânia, já de noite, pedem-nos para recolher uma mulher e uma criança com documentos portugueses, numa localidade que não fica longe da nossa rota. Fazemos o pequeno desvio e entramos numa vila onde não há qualquer luz acesa, está mergulhada em escuridão total. Estabelecemos o contacto com Tetiana, que está a reunir meia dúzia de coisas para abandonar subitamente o país. Minutos depois, no local do encontro surge a família: Tetiana, uma menina de 2 anos e o pai da menina. Ele não pode seguir viagem. Despedem-se junto à carrinha em abraços longos, sem saberem se irão voltar a ver-se, qual será o destino de cada um. Tetiana e a menina entram na carrinha, que retoma a marcha. No meio do silêncio da noite escura, a bebé volta-se para a janela e suplica a plenos pulmões: “Papá! Papá!” O eco daquela separação forçada corta o coração. É a situação enfrentada por milhares de famílias no leste da Europa em 2022.
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