“A todos os homens, a todos os rapazes; por uma vez na vida, sou eu que vos vou dizer o que fazer: ao meu sinal vocês gritam ‘pussy’”, comandou Marisa Dabice, carinhosamente conhecida na cena punk rock por "Missy", antes do tema “Loud Bark”. Não foi um pedido, foi uma ordem. Durante 50 minutos, os Mannequin Pussy fizeram o que quiseram do palco Porto e deram — possivelmente — o concerto desta edição do Primavera Sound Porto. 

Antes de mais nada, faça-se a admissão: não, “pussy” não quer dizer vagina, a sua tradução é demasiado obscena para figurar nestas linhas. Mas o vocábulo não só integra o nome desta banda de Filadélfia como foi repetido várias vezes — até mesmo pelo público já depois do concerto acabar — como reclamação, para despojar o seu sentido pejorativo ou lascivo em prol de uma sensação de poder. No fundo, algo que faz todo sentido quando as suas letras falam de relacionamentos, toxicidade relacional, sexismo e outras discriminações, assim como um rol de problemáticas que infelizmente continuam a fazer sentido em 2024.

O que os Mannequin Pussy tocam é punk rock, mas não são apenas isso: misturam ritmos hardcore furiosos com melodias fuzz do rock dos anos 90, vozes doces e quase segredadas com urros primais, libertação em estado puro. Na sua estreia em Portugal — era suposto terem tocado em Lisboa no final de 2023 mas cancelaram —, mostraram porque é que são uma das bandas alternativas mais entusiasmantes do momento e porque é que o seu encanto já ultrapassou a barreira da música mais pesada ou agressiva, com “I Got Heaven” a ser unanimemente celebrado pela imprensa.

O Palco Porto não estava à pinha para ver Mannequin Pussy — até porque chovia ainda quando iniciaram a sua atuação —, mas quem teve esse privilégio foi atraído pela candura das primeiras canções até ficar preso e já não conseguir sair — como um inseto que cai na armadilha da planta carnívora. Depois, seguiu-se a fase mais dura do concerto, músicas metralhadas com o acinte de uma Fúria do Tártaro. Se em “Sometimes” e “Nothing Like”, Missy foi pavoneando-se pelo palco, cantando de forma tão afetada que até Camilla Cabello acharia um exagero, com “Of Her” e “Aching” transformou-se num espírito vingativo, acompanhada pela vozeria igualmente potente do baixista Colins "Bear" Regisford. Este, de resto, também teve oportunidade de brilhar sozinho, quando cuspiu “Pigs is Pigs”, canção anti-violência e racismo policial.

Podemos explicar a atitude de Missy com um curto exemplo: antes de “Perfect”, começou a rir-se de propósito como se fosse uma tontinha, sequenciando-o com um ladrar violento. Tirado do contexto, parece apenas alguém a precisar de ajuda clínica, mas dada a filosofia de Mannequin Pussy, o seu sentido torna-se cristalino: “achas que por ser mulher, sou frágil? Espera aí, que já te mostro”. Noutros momentos, a mensagem foi passada sem quaisquer contemplações. “Que se lixem os EUA pelas atrocidades cometidas contra o povo palestiniano”, proferiu a dado momento. Noutro, que colheu os maiores aplausos, lançou uma invectiva contra “os pais que temem Deus” e que projetam nos filhos a sua própria culpa, não deixando-os viver a sua vida como querem. Recordando que a Bíblia foi escrita por homens de carne e osso, afirmou não respeitar “qualquer religião que não deixe as pessoas viver à sua maneira”, antes de lançar-se em “I Got Heaven”.

Perante o espetáculo dos norte-americanos, foi possível ver que a maioria das pessoas em frente ao palco eram jovens — sinal de que o punk está vivo e recomenda-se —, mas também alguns espectadores mais maduros. Estes mantiveram-se afastados do mosh e dos saltos, mas a cara de regozijo foi a mesma. Obrigado pela catarse, Mannequin Pussy, voltem sempre (de preferência numa sala pequena).

E porque este dia fez-se de (mais) punk no feminino, os Gel — banda de hardcore bastante mais agressivo — tiveram a ingrata tarefa de abrir o palco Vodafone (que entretanto voltou ao ativo) quando a chuva caía violentamente. 25 minutos bastaram para a sessão de expiação, temas curtos e intensos uns atrás dos outros, convidando ao circle pit. Os Mandy, Indiana, por sua vez, fecharam o palco Plenitude num misto de batidas rave com descargas espinhosas de guitarra, enquanto a vocalista Valentine Caulfield berrava em francês. Um fim de noite bem passado, portanto.

Pulp, de comuns mortais a deuses da britpop

Não tivessem as Mannequin Pussy sequestrado este derradeiro dia do Primavera Sound Porto, e este teria pertencido sem sombra de dúvida aos Pulp. Apesar de estarem a dar o seu 546.º concerto — foi o que revelaram nos ecrãs —, foi apenas o terceiro em Portugal, depois da longínqua estreia em 1998 no defunto festival Imperial ao Vivo (edição que também contou com Nick Cave e Moby, entre outros) e do espetáculo da primeira digressão de reunião em Paredes de Coura, corria o ano de 2011.

É verdade que o vocalista e cara dos Pulp, Jarvis Cocker, não esteve assim há tanto tempo longe de nós, já que veio com a banda Jarv Is a este mesmo festival em 2019. Mas Pulp é Pulp — a banda que penou durante os anos 80 para revelar-se como a campeã do rock elegante nos anos 90, cujas letras impiedosamente certeiras sobre a sociedade britânica colocaram o “brit” na “britpop”.

Nesta segunda tour de reunião — e lamentavelmente já sem outra das pedras basilares da banda, o baixista Steve Mackey, que morreu em 2023 —, o desígnio dos Pulp é muito simples: fazer de cada espetáculo um encore ao passado. “Um encore acontece quando o público quer mais. Por isso, façam barulho”, pediu o texto nos ecrãs antes da banda entrar com “I Spy”, grandioso arranque de um desfilar de clássicos.

Tal como tinha demonstrado em 2019, Jarvis Cocker é incapaz de dar um mau concerto — mais não seja porque é um mestre de cerimónias tão bom que eleva qualquer momento banal, entusiasma tanto a cantar e a dançar como a falar com o público. A arte do stage banter é extremamente complicada — comunicar de menos pode passar a ideia de que o artista está contrariado ou que não está à vontade; de mais, torna-se maçador e pode também transmitir sobrecompensação. Cocker faz tudo isto parecer fácil, pagar para ouvi-lo falar valeria o preço do bilhete por si só. Menções ao vinho Papa Figos, tentar traduzir macarronicamente “Joyriders” para português, atirar rebuçados ao público e revelar que este foi o seu último concerto como homem solteiro (casa-se muito em breve), foram apenas alguns dos destaques.

No entanto, como é evidente, tratando-se esta de uma digressão estilo “best of”, houve muito mais por onde apreciar para lá dos dotes vocais de Jarvis Cocker — que, diga-se, estiveram aquém nalguns temas, mas também ninguém vem ouvir Pulp pela voz de rouxinol. “O que tentamos fazer nestes concertos é fazer com que estas canções regressem à vida”, afirmou o vocalista antes de “Disco 2000”, que fez do palco Vodafone uma danceteria exaltada. Se “Pink Glove” e “Do You Remember the First Time?” causaram euforia, “Something Changed” puxou pela contemplação e “This is Hardcore” mostrou-se tão impressionante como seria de esperar, luzes vermelhas e sintetizadores magnânimos a edificar este hino aos riscos da fama.

Depois de quase uma hora de revivalismo e de danças idiossincráticas, o vocalista deixou-se ficar dramaticamente em frente aos holofotes a fazer lembrar um sol em “Sunrise”, num dos momentos mais visualmente memoráveis de todo o festival. Seguiu-se o encore do encore. Após “Like a Friend” — em que foi pedido que toda a gente se calasse, apesar de alguns engraçadinhos aparentemente não perceberem inglês — ser iniciada apenas a guitarra e voz de Cocker, juntando-se a banda triunfalmente pouco depois, e de “Underwear”, foi deixada uma última provocação: “Acho que é tudo, já demos 110%. Será que querem ouvir mais alguma coisa?”, perguntou.

Só podia falar um tema — aliás, o tema dos temas, canção sem a qual é possível que o Primavera Sound tivesse degenerado em motim. “Common People”, tão pertinente em 1995 como hoje, quase 30 anos depois, sobre “brincar aos pobrezinhos” e querer ser “gente como a gente” — “toda a gente odeia um turista, especialmente aquele que pensa que é tudo tão divertido” é uma letra que nunca vai perder o lustre. Ao soar as primeiras notas, começaram os copos de cerveja a voar, entregando-se o público numa cantoria desenfreada — Mannequin Pussy deram o concerto do festival, mas Pulp pode orgulhar-se de ter o melhor momento de todos.

O que fazer convosco, The National?

Esta frase podia ser o título de todo um outro texto, um registo de expiação sobre a dificuldade que há em tentar ter uma análise imparcial e ponderada sobre um objeto artístico que não nos faz sentir nada mais do que vazio. É o que acontece neste caso com os The National, uma das mais celebradas bandas de indie rock de sempre e que colhe especial carinho em Portugal — não é por acaso que já cá deram 10 concertos nos últimos 10 anos. Até podia só ser uma banda fetiche dos promotores, mas a verdade é que trazem sempre muito fãs muito dedicados, que têm as letras loquazes de Matt Berninger na ponta da língua.

Estar perante um público tamanhamente enamorado com a banda norte-americana provoca um curioso sentimento de inadequação face à maioria — uma falsa maioria, isto é; a maioria não esteve sequer no Porto para assistir ao concerto. “Serei eu que estou errado? O que é que os outros sabem que eu não sei?” são perguntas que ecoam na cabeça. Um pouco mais de reflexão leva à conclusão de que há bandas, músicos, canções, arte em geral à qual todos nós somos impermeáveis — que tenta arranjar maneira de penetrar o coração mas acaba sempre por passar à tangente.

Durante perto de duas horas, os The National fizeram o que melhor sabem fazer — as vagas de crescendos emocionais, os gritos dilacerados de Berninger a contrastar com o seu registo quase conversacional, as letras que misturam a hiperespecificidade do autor com os sentimentos universais que fazem sentido até para quem mora do outro lado do Atlântico. A situação aqui descrita é tanto mais inusitada quando se afirmou que o melhor concerto do festival foi de um grupo punk — isto porque a banda, não obstante a sua confortável posição no seio de uma classe média bem pensante e sofisticada, tem vários momentos de arrojo. Berninger chega a gritar que nem um louco e atira-se ao público mesmo que o seu fato à medida se rasgue, a banda entra em espirais sónicas que chegam ao ponto de se considerar “música pesada” em temas como “Abel”, “Smoke Detector” ou “Terrible Love”. Porém, o seu impacto em que escreve as linhas é o mesmo de um floco de neve sobre a água.

Para muitos, terá sido o melhor concerto do festival — aliás, como é sempre o caso para muitos fãs da banda. Para outros, é como receber uma massagem sob anestesia: o sentimento pode estar lá todo, a técnica também; nós é que não sentimos nada.