Filho de mãe islandesa e pai português, o jornalista Henrique Garcia, Pedro Gunnlaugur Garcia nasceu em Lisboa, mas viveu a maior parte da sua vida na Islândia, sendo essa a língua que domina e na qual escreve.
Escrito originalmente em islandês e traduzido para português por Ivan Figueiras, editado pela Guerra e Paz, “Pulmões” é uma epopeia familiar multigeracional em que se misturam a complexidade das relações humanas e dinâmicas narrativas dramáticas com laivos de magia e humor, que se estende amplamente pelo século XX e avança para um futuro distante.
O romance abre com Jóhanna, que decide ler a saga épica que o seu distante pai escreveu sobre a origem e a história da família, que começa na Toscana no início da Primeira Guerra Mundial, onde o jovem Enzo se livra do serviço militar devido ao consumo excessivo de azeitonas, passa pelos bairros de imigrantes de Toronto, onde uma adolescente se apaixona por um misterioso vagabundo, pelo vale de Hörgárdalur, onde um gigantesco galo reina, e termina em Reiquiavique no ano de 2089.
Em entrevista à agência Lusa, Pedro Gunnlaugur Garcia explicou que o seu romance “Pulmões” nasceu do desejo de explorar as complexidades das relações familiares, inspirando-se em clássicos que marcaram a sua trajetória, como “Os Buddenbrook”, de Thomas Mann, “A Casa dos Espíritos”, de Isabel Allende, ou “O Som e a Fúria”, de William Faulkner.
“Após o meu primeiro romance, senti que era necessário afastar-me do estilo grotesco e surreal que caracterizava essa obra e tentar contar uma história multigeracional. A visão do mundo, na minha estreia [literária] foi tremendamente sombria e lidou com a dor e o sofrimento humanos de uma forma niilista, o que foi divertido de escrever, mas fez-me questionar se é realmente assim que eu vejo a humanidade”, contou.
Então, propôs-se tratar os laços familiares, as dificuldades de comunicação e as relações desfeitas, mas de forma mais sensível e ressonante, usando como ponto de partida uma visão que teve, com o nascimento do seu filho, que apresentava sinais de deficiência auditiva.
A partir de uma imagem fictícia que lhe assolou a mente, de uma criança surda a ser repreendida por um adulto e a olhar para cima assustada, Pedro começou a desenvolver personagens e relacionamentos, contou.
O autor descreveu o processo criativo de “Pulmões” como um “exercício de transformação pessoal e artístico”, num período particularmente difícil da sua vida: separou-se da mulher, não tinha onde morar, não tinha dinheiro, dececionou-se com a receção que teve o anterior romance e, para agravar tudo isso, surgiu a pandemia de covid-19.
“Eu queria usar a arte como uma espécie de alquimia, para fazer algo tangível e positivo a partir da dor. Não tenho certeza de que essa transformação seja possível, mas acredito que, no mínimo, escrever cria uma maneira de lidar com as ansiedades. Além disso, é mais barato do que fazer terapia”.
Nesse período de isolamento, começou a escrever e, embora tenha começado com um tom pesado e sombrio, percebeu que queria expressar as suas experiências e reflexões de uma forma mais “envolvente e convincente”.
A inspiração definitiva veio de uma história contada pelo seu avô português sobre o bisavô, que, para evitar ser enviado para a linha da frente da Primeira Guerra Mundial, fingiu uma doença grave após engolir “um punhado de azeitonas com caroços”, o que lhe valeu o diagnóstico de cancro de intestino terminal, após um raio-x.
Este episódio despertou no autor uma nova abordagem, “uma mistura de brincadeira e tragédia, vida e morte, e azeitonas”, constatando que estava perante “uma espécie de realismo mágico”.
Influenciado por autores como Kundera e Allende, Pedro Gunnlaugur Garcia começou a desenvolver histórias em que o fantástico se misturava com o psicológico, sabendo desde o início que queria terminar “com uma espécie de catarse gloriosa e trágica”.
Este final, que o escritor imaginou como o eixo central do romance, foi precisamente a parte mais desafiante do processo, criticado por leitores que lhe eram próximos, que lhe sugeriram que o reformulasse.
“Como poderia deitá-lo fora e trair a minha visão? Em vez disso, reescrevi todo o restante livro, mudei tudo o que precisava mudar, apenas para fazer com que aquele final funcionasse. Só no quinto rascunho, mais ou menos, depois de ter deitado fora e reescrito 30.000 palavras, é que finalmente consegui”, relatou.
O título escolhido para a obra carrega um duplo sentido – explica -, por um lado representa o órgão vital, “símbolo do pulsar da vida, mas também da fragilidade humana”, por outro, representa uma visão grandiosa do cosmos, como se o universo respirasse em ciclos infinitos de expansão e contração, sugerindo uma eternidade cíclica, “onde tudo está conectado e separado pelos fios mágicos invisíveis da existência”.
Pedro Gunnlaugur Garcia explica que, ao escrever “Pulmões”, escolheu ambientes históricos e culturais diversos para criar um distanciamento entre a narrativa e suas próprias vivências familiares.
Originalmente, a história passava-se em Portugal, mas o autor transferiu-a para Itália como forma de se distanciar e ficcionar a informação pessoal, ao mesmo temo que explorou personagens de outras origens, para retratar a diversidade crescente na Islândia.
“Eu sentiria que era desonesto se os meus personagens e situações não refletissem essa realidade multicultural. Reflete também os meus próprios problemas de identidade. Acho que muitos islandeses, especialmente da geração mais velha, não me veem como um ‘verdadeiro islandês’. Tenho um nome estrangeiro, não pareço um típico nórdico. Mas, em Portugal, também não sou português”.
Escrever sobre o passado e o futuro foi uma maneira de explorar a inovação dentro do realismo mágico, já que o autor diz que vê o passado com um caráter mitológico e mágico, como a história das azeitonas do bisavô, e o futuro como a promessa de algo extraordinário.
“Aproximar cronologicamente uma narrativa da magia dos nossos dias parece cada vez mais deslocada. Pago uma quantia assustadora dos meus parcos rendimentos a impostos. Vou a reuniões de pais e professores. Vivo numa sociedade capitalista que assiste impotente à escalada da crise climática e à permissão de genocídios. Onde está a magia em tudo isto? A magia está no futuro, ou melhor, a maravilha do que poderia ser”.
“Pulmões" é o seu segundo romance e venceu o Prémio de Literatura da Islândia 2022, uma notícia que recebeu com muita felicidade e que lhe valeu o reconhecimento público na Islândia, convites para festivais e a venda de direitos para vários países.
“O meu dia-a-dia é o mesmo, ainda vivo no pequeno apartamento miserável em Norðurmýri e faço compras na mercearia mais barata onde as frutas quase não têm sabor, mas o meu senso de autoestima mudou. É uma combinação estranha de autoconfiança e sentimento de impostor completo”.
A opção de escrever originalmente em islandês prende-se com o insuficiente domínio do português para escrever nessa língua, mas há dois anos traduziu “Jerusalém” de Gonçalo M. Tavares para islandês, livro que foi “muito bem recebido naquele país”, e está a candidatar-se a bolsas para poder traduzir um livro de poemas de Francesca Cricelli, uma autora brasileiro-italiana que mora na Islândia.
Admitindo o parco conhecimento que tem de escritores portugueses, para além de Fernando Pessoa, José Saramago e António Lobo Antunes, são várias as referências e influências literárias internacionais.
“Quando jovem, fiquei fascinado por Kafka, o que provavelmente teve um impacto negativo na minha saúde mental. Eu era miserável e queria ser poeta, li Rimbaud, Plath. Depois queimei todos os meus poemas num tambor de óleo Mobil. Devorei romances de todos os grandes óbvios: Grass, Rushdie, Atwood, Allende, Zola, Dostoiévski, Nabokov, McCarthy, Pynchon, Morrison, Burroughs, Bernhard, Mishima, Süskind, mas as únicas obras que me fizeram querer escrever a sério quando adulto foram 'Steps', de Jerzy Kosinski, não uma das suas obras mais conhecidas, mas tão mórbido e pervertido, e o outro foi 'O Som e a Fúria', de Faulkner. Ler esse romance rebentou uma bomba dentro do meu peito e reacendeu o meu interesse pela literatura”.
Pedro Gunnlaugur Garcia nasceu em Lisboa, em 1983, mas cresceu na Islândia, devido a uma série de encontros fortuitos que começam com a história da sua mãe, islandesa, que escolheu Portugal ao acaso para umas férias.
Em Lisboa, perdida nas ruas labirínticas e sob o calor incomum para uma islandesa, pediu ajuda a um desconhecido, Henrique Garcia, que mais tarde se tornaria o pai de Pedro e do seu irmão mais novo.
Casaram-se e ficaram juntos durante cerca de uma década, separando-se quando Pedro tinha quatro anos, após o que se mudaram para a Islândia.
*Por Ana Leiria, da agência Lusa
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