Há nomes feéricos, nomes que as proezas de um indivíduo mitificam, elevam. Nomes que outrora comuns se transformam em significantes, que quase inquestionavelmente representam uma identidade única, própria. Escutamo-lo e de imediato o reconhecemos: aquele nome não pode senão pertencer àquela pessoa, como se mais ninguém no mundo o guardasse na sua certidão de nascimento.
Esta é uma ideia transversal a praticamente todas as linguagens e culturas. Um britânico olhará para “Winston” e de imediato lhe vem à cabeça Churchill, charuto na boca e chapéu no coco. Um argentino ouvirá “Diego” e toda uma religião desaba sobre o seu espírito, tendo por base uma mão que nem Deus ousaria domar. E um português lerá “Amália”, e não lhe ocorrerá que esse nome possa adornar raparigas de todas as idades e feitios. “Amália” é a “Rodrigues”. Juntos, estes dois nomes formam algo mais que a sua soma: são uma voz, um canto, uma canção, um símbolo, e não uma simples identidade.
“Amália”, o nome, tem a sua origem na palavra germânica amal, que significa “trabalho”. Amália, a Rodrigues, guarda então dentro do nome que lhe impuseram um sentido talvez irónico. Não que Amália temesse o trabalho ou vice-versa, mas porque aquilo que alcançou – e que foi mais do que uma Amália dita “normal” conseguiu ou conseguirá ao longo do tempo – foi sobretudo fruto não do labor, mas de um qualquer desígnio divino.
Foi Deus que me pôs no peito
Um rosário de penas que vou desfiando e choro a cantar
Um dom divino
É claro que Amália, a menina Rodrigues, não nasceu imediatamente Amália, a Nação que chora cantando. Até porque o seu nascimento não foi, palavras da própria, um motivo para grandes celebrações, dentro da família numerosa que lhe fez o sangue. Na biografia que escreveu com a preciosa ajuda de Vítor Pavão dos Santos (1), Amália Rodrigues admitiu que nem sequer conhece o dia exato em que veio ao mundo. «Uns diziam que nasci no dia 1 de julho, outros no dia 12, outros a 4 ou 14. Quando tive de tirar papéis para fazer exame, vinha 23 de julho».
É possível que um astrólogo se mostre mais interessado em saber, ao detalhe, a data e hora do nascimento de Amália Rodrigues. Mas o povo, o mesmo que fez do seu nome uma lenda, pouco se importará com o mapa astral daquela que é commumente considerada como uma das maiores cantoras do século XX – ou até mesmo a maior, dependendo da pessoa a quem se pergunte tal coisa. Nem os astros, em toda a sua magnificência, poderão rivalizar com a garganta que fez do fado património imaterial da humanidade. Nenhum sol cegou mais que 'Foi Deus', 'Vou Dar de Beber à Dor' ou 'Estranha Forma de Vida'.
A palavra certa é “cegar” porque existe ali qualquer coisa que nos tolda a visão, que nos abate e nos atira para o abismo de uma saudade imaginária. É um desespero por osmose. A tristeza que Amália Rodrigues cantou como ninguém é a nossa tristeza coletiva. Escutamo-la para fazer suar as emoções; ela é o empurrão que às vezes precisamos para deixar tudo fluir, para que as amarras da vergonha, do medo ou de um qualquer outro bloqueio mental se soltem. Nesse sentido, Amália não foi “apenas” a maior das cantoras, mas também a maior das psicólogas. Quantos teriam permitido ao seu âmago abrir-se antes de a ouvir? E quantos não o farão por (ainda) não a terem ouvido?
Ainda assim há quem prefira permanecer fechado, como a sua avó, com quem viveu até a adolescência, o era. A infância foi rígida, mas permitiu o germinar de uma voz que não deixou, nem continua a deixar, espaço à indiferença. Por volta dos três, quatro anos, Amália divertia-se a cantar os poucos temas que conhecia, e com essa idade vieram também os seus primeiros fãs: vizinhos e conhecidos que lhe ofereciam rebuçados e moedas, em troca de um ou dois minutos de candura.
Acontecendo isto numa idade tão tenra, sem qualquer tipo de educação formal, só pode mesmo ser encarado como um dom divino. O mesmo que fazia transeuntes pararem nas ruas, conforme relatou na supracitada biografia: «O meu avô sentava-se à janela, de costas viradas para mim, e eu dentro de casa, a cantar os tangos do Carlos Gardel e todas essas coisas que ouvia e aprendia logo. As pessoas que iam a passar na rua ficavam paradas para ver de onde é que vinha aquela voz».
Importante salientar este aspeto: qualquer coisa que Amália cante obriga-nos a parar. Seja fado, tango, flamenco ou algo sacado à chanson française, o dote de Amália Rodrigues era tal que tudo parece ficar bem na sua voz. A cantora – que afirmou que o rótulo de “fadista” lhe foi colado «pelas pessoas» – nunca disse não aos mais variados géneros. Aquilo de que gostava, cantava. E esta universalidade tornou-a, ironicamente ou talvez não, universal.
Dos públicos aleatórios aos públicos específicos, muitos anos tiveram ainda que passar. Mas a tristeza, a depressão que a animava (parafraseando João Aguardela) e que posteriormente nos animaria a nós (será isto masoquismo, ou crueldade?...), viveu-a desde cedo. A morte de uma de suas irmãs, Aninhas, que à altura tinha apenas 16 anos, constituiu a sua primeira consciência desse destino, ou fado, que espera todos aqueles que respiram.
Antes da consciência existia, no entanto, um certo fascínio – o mesmo que muitos adolescentes sentem – pela morte. «A ideia da morte acompanhou-me dos treze aos dezoito anos. Ouvia as pessoas ralhar comigo e achava que não tinham razão. Andava sempre a querer matar-me», confessou [1]. Essa melancolia, transformá-la-ia Amália em saudade, em dor, em tudo o que faz do género fado o sofrimento auditivo que muitos dele exigem. Encarnou o fatalismo para que o pudéssemos compreender melhor, para que o pudéssemos também admitir.
Do estar ao ser
Certo é que a voz poderia ter permanecido confinada ao bairro onde cresceu, caso não tivesse tomado lugar na Marcha Popular de Alcântara, em 1936. Foi o seu primeiro contacto com um público numeroso, e o número não voltaria a descer, nem Amália precisaria de voltar a cantar em casa, com o seu avô de costas voltadas. Aliás, Amália nem precisaria sequer de parar de cantar; estava encontrada a sua vocação, confirmada mais tarde com a sua ida (às escondidas da mãe) num concurso de talentos, o Concurso da Primavera.
Não ganhou o cobiçado prémio de “Rainha do Fado” (curioso epíteto que Amália, sem sombra de dúvida, ostenta ainda hoje), e não chegou sequer a concorrer (as outras candidatas não quiseram competir com ela), mas foi escutada pelas pessoas certas, que a levaram ao Retiro da Severa, casa de fados dirigida por Jorge Soriano.
Uma noite bastou para ser preenchida com aplausos e elogios, mas as suas potenciais pretensões esbarravam ainda na falta de vontade da família em vê-la em tais ambientes. Até porque, naquela altura e contrariamente ao mundo de hoje, o fado era visto como um «fator de degenerescência para a juventude portuguesa», conforme escreve Vasco Graça Moura (2), referindo-se a um livro de Luís Moita de 1937, “O Fado, Canção de Vencidos”.
Mas tal como Hollywood encontrava as suas estrelas em diners ou em passeios californianos, também Amália Rodrigues precisou de ser encontrada. Ou, melhor, retirada, às garras de um lugar menor, o do anonimato. Soriano conseguiu convencer os pais de Amália de que o futuro dela estava na sua voz, e porventura será a ele que meia humanidade terá que agradecer sempre que escutar um disco da cantora. A estrela nunca poderia ter brilhado se não fosse a insistência de quem a vislumbrou num noturno céu lisboeta.
A história não acaba aí, evidentemente. Amália não se tornou Amália apenas por terem acreditado nela. O Retiro da Severa foi, isso sim, o primeiro local onde Amália teve a oportunidade de ser a figura que é hoje. De bate-boca em bate-boca, o público que a queria escutar começou aí a formar-se e a crescer. Dessa casa chegou à Emissora Nacional e, mais importante ainda, ao teatro de revista onde se tornou importante atração. «Quem me fez artista foi Nosso Senhor e a minha mãe ajudou um bocado», disse (1). O seu sucesso foi só uma questão de nos sintonizarmos às suas ondas.
À conquista do mundo
Em 1944, e já depois de um divórcio (do guitarrista Francisco da Cruz, com o qual esteve casada três anos), Amália Rodrigues consegue um papel proeminente na opereta “Rosa Cantadeira”, ao lado de Hermínia Silva. Nesse mesmo ano, tem início a sua expansão internacional: Amália desloca-se ao Rio de Janeiro, para atuar no Casino de Copacabana. «Um sucesso tão grande», contou, «que nunca mais deixei de lá voltar» (1). O contrato que tinha era de apenas quatro semanas; Amália conseguiu transformá-lo em quatro meses.
O Brasil, terra de samba e pandeiro, acabou por ceder à magnitude emocional do fado. A cantora recebeu inúmeros convites, para atuações e publicidades diversas, e ali mesmo assistiu à composição – por parte de Frederico Valério, que a acompanharia – de 'Ai, Mouraria', um dos seus mais famosos fados. E foi também ali que gravou os seus primeiros discos, lançados pela editora Continental: 'Mouraria / Carmencita', 'Perseguição / As Penas', 'Fado do Ciúme / Olhos Verdes'. Discos que o tempo pode ter esquecido, mas que foram o primeiro passo para algo vital: poder ser escutada em qualquer lugar, por qualquer pessoa.
É claro que um gira-discos era algo raro (e caro) numa casa, à época, pelo que a fama de Amália Rodrigues teve que começar por ser construída de uma outra forma: o cinema. “Capas Negras”, estreado em 1947, foi o salto rumo ao estatuto de ícone de que Amália precisava. Bateu todos os recordes de exibição aquando do seu lançamento, estando em cartaz durante 22 semanas, e inscreveu o nome Amália na história da sétima arte. Bizarra, só a confissão da cantora na sua biografia: nunca viu o filme. No mesmo ano, Amália destacar-se-ia ainda mais com “Fado, História de Uma Cantadeira”, de Perdigão Queiroga.
Até então “restrita” às casas de fado, que a disputavam como rivais futebolísticos disputam um craque, Amália passa a ser um nome familiar dos portugueses, mesmo que seja além-fronteiras que obtém um maior reconhecimento. 1950 é o ano em que soma mais uns carimbos ao seu passaporte, sobretudo na Europa. Outros grandes intérpretes tomam nota da portuguesa e das suas canções: 'Coimbra' deixa de pertencer apenas ao cânone do fado para também entrar no da chanson, pela mão de Yvette Giraud, que a populariza com o título 'Avril Au Portugal'.
Quando um cantor ou cantora obtém o reconhecimento dos seus pares – sendo que esse reconhecimento não passa por imitação, mas sim por influência –, isso é meio caminho para a obtenção de um estatuto que não está ao alcance de todos. Um estatuto universal, mágico. É quando o nome “Amália” passa a descrever, apenas e só, a bela cantora portuguesa que traz a sua tristeza aos palcos de todo o mundo, a todas as latitudes e longitudes. De Paris a Nova Iorque, de Beirute a Tóquio. Algo que a sua pátria apressou-se a perceber, tornando-a num símbolo seu, tal como com Eusébio (outro nome que representa exclusivamente um indivíduo preciso, no caso o expoente máximo do futebol luso).
Amália Rodrigues sabia-o: «a única artista portuguesa conhecida no estrangeiro sou eu», afirmou [1], sem dar azo a falsas modéstias. E também sabia que na sua voz o público reconhecia algo de Portugal, nela parecia ouvir toda a história de uma das nações mais antigas do mundo: «Tenho qualquer coisa em mim de Portugal, que as pessoas sentem. Como se eu fosse uma erva, um cheirinho» (1). Mas também há quem vá mais longe e afirme – sem que nessa frase haja algo de assaz incorreto – que Amália Rodrigues era maior que a pátria onde nasceu, como Fernando Dacosta: «Amália desfrutava, a nível mundial, de maior visibilidade do que Portugal», escreveu [3].
Ingratidão não tem lugar
Se tivermos de apontar o período específico onde Amália se tornou Amália, na impossibilidade de escolher qualquer outro por força de um qualquer triste fado, poderemos enunciar as décadas de 50 e 60, onde o sucesso da cantora se revelou estrondoso – não só em Portugal como “lá fora”. Mas dizê-lo assim a seco talvez seja um erro. É possível que Amália não se tenha tornado Amália de um dia, de uma semana, de um mês ou um ano para o outro. Não: como os gigantes entre os gigantes, a cantora vai-se tornando à medida que o tempo passa, vai-se tornando enquanto houver gente que a cante, que a louve, que a conheça.
Houve no entanto um momento em que a lenda de Amália esteve em risco de se tornar numa outra, a de Ícaro. Não porque a cantora se tenha aproximado demasiado do sol, mas porque quem estava cá em baixo a tentou puxar à força para o solo: o pós-25 de abril, onde Amália foi acusada de pertencer à PIDE e de ter simpatia pelo regime fascista português. Um boato, que como uma bola de neve correu país fora e se transformou em avalanche. Ainda hoje as calúnias de que foi alvo se apresentam como a maior mancha num percurso mais que respeitável, mesmo existindo provas de que a cantora ajudou monetariamente alguns presos políticos e amigos na resistência. «Nunca fui de governo nenhum, nem antes nem depois”, resumiu sucintamente anos mais tarde [1].
O mal estava feito mas depressa cederia perante o talento. Nos anos 80, uma outra figura do universo musical português devolveu-a ao panteão de onde procuraram arrancá-la: António Variações, que resumiu melhor que ninguém a posição de Amália Rodrigues na psique coletiva portuguesa. “Todos nós temos Amália na voz”, cantou, ecoando uma frase de Giorgio Martinelli, escrita no jornal italiano Il Resto del Carlino anos antes: «Amália Rodrigues é muito mais do que uma cantora: é a bandeira, é o hino nacional, é a alma de Portugal».
A meio da década, a consagração que lhe faltava em território nacional: um concerto em nome próprio, no Coliseu dos Recreios, sala onde só os grandes sonham pousar. Outros espetáculos na mesma sala, e com igual sucesso, se seguiriam. Portugal voltava a abraçar a sua diva maior, a sua mãe e rainha. E pedia-lhe desculpas pelos incómodos causados. “Os portugueses têm uma dívida de gratidão para com Amália», afirmou perentoriamente Herman José em 1994, no programa “Parabéns”, da RTP. Ela já o sabia antes: «Quem canta há tantos anos como eu acaba por fazer parte da vida diária de cada um»[1].
Amália, para sempre voz de nós
O problema das lendas é serem inventadas e contadas por humanos. O problema dos mitos, das figuras que encaramos como mitos, é terem corpo, sangue. Por o terem, inevitavelmente morrem. A 6 de outubro de 1999, com 79 anos, Amália falece em sua casa, em Lisboa, poucas horas após ter voltado de umas férias no litoral alentejano. O país trava a sua marcha, incrédulo: os grandes também perecem, pensa. António Guterres, então primeiro-ministro, decreta três dias de luto nacional, e o Panteão começa a reservar e a limpar devidamente um cantinho para os restos mortais da cantora, que ali seriam depositados em 2001.
E no entanto como não ver em Amália imortalidade, como não entender que todas as homenagens que teriam lugar após a morte são o exemplo máximo de que ela continua entre nós? As reedições dos seus discos, os tributos prestados por outros fadistas ao vivo e em estúdio, as dezenas e dezenas de artigos jornalísticos que se têm escrito (principalmente neste que é o ano do centenário do nascimento de Amália) a isso atestam. Repetimo-nos: Amália não se tornou Amália. Amália vai-se tornando mais Amália sempre que alguém tenha a honra, e não duvidemos que é honra mas também bênção, de escutar a sua voz. De contar a sua história, para o bem e para o mal. De a tornar ela mesma em sinónimo de arte, de grandeza.
«Sei que a minha história vai ser aquela que escolherem, aquela que é a mais interessante, aquela que não é a minha», desabafou [1]. Estava errada. A história dela não é a que escolhemos, mas a que ela nos impôs: a história de uma cantora dotada de um sentimento e um instrumento, a garganta, extraordinários. Há Amália depois de Amália. Há Amália hoje, e daqui a outros cem anos continuará a haver Amália. Por obrigação? Não, por respeito. Amália, como o fado, não se explica. Sente-se.
[1] “Amália – Uma Biografia”, Vítor Pavão dos Santos, 1987
[2] “Amália: Dos Poetas Populares aos Poetas Cultivados”, Vasco Graça Moura, 2009
[3] “Amália – A Ressurreição”, Fernando Dacosta, 2017
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