1. A ideia da morte
Não há quem não diga que o fascínio que sentimos, ao escutar Amália Rodrigues, vem do sofrimento. Pois que ela o cantava como ninguém, elevava-nos – e continua a elevar – aos píncaros através da dor que impunha às suas interpretações, aos seus fados. Uma dor que terá raízes bem mais profundas, psicológicas. A sua biografia, escrita em colaboração com Vítor Pavão dos Santos, abre com uma frase marcante que indica isso mesmo: «Desde que existe morte, imediatamente a vida é absurda. Sempre pensei assim».
Tal niilismo deixaria marcas, abriria feridas ao longo da sua existência. Dizia Amália que «a ideia da morte» a acompanhou desde muito cedo, que já na adolescência «andava sempre a querer matar-me». Por diversas vezes, tentou-o, despejando cabeças de fósforos na água que bebia ou ingerindo petróleo. Após um desgosto amoroso, que envolveu Francisco da Cruz, com quem viria a casar e mais tarde divorciar-se, tomou raticida; ficou três dias enferma. Muito mais tarde, em 1984, pensou novamente em matar-se, ao lhe ter sido diagnosticado um tumor. Rumou a Nova Iorque, «convencida que me ia matar lá», mas uma maratona de filmes de Fred Astaire, no seu quarto de hotel, adiou o “projeto”. Acabaria por se submeter a uma cirurgia para retirar o tumor. «Acabou por acontecer o melhor», desabafou.
2. O encontro com Ernest Hemingway
Ao longo de uma carreira recheada de êxitos e de sucesso internacional, Amália Rodrigues teve a oportunidade de privar com gente do mundo das artes, da política, do espetáculo. Cruzou-se com personalidades como Anthony Quinn, Juliette Gréco, Frank Sinatra, Ava Gardner ou Cantinflas, com o rei Humberto II de Itália, com Chico Buarque ou Roberto Carlos. E com uma das grandes figuras da literatura do século XX: Ernest Hemingway.
Os dois conheceram-se após uma visita de Amália Rodrigues a Madrid, onde atuou por diversas vezes. Porém, pouco se sabe sobre o encontro entre o autor de “O Velho e o Mar” e a cantora de “Gaivota”. Até porque a própria não colocava qualquer tipo de relevância nesse assunto. «Para que é que me serve ter conhecido o Hemingway? Não era amiga dele, não sou prima, nem irmã», explicou, na sua biografia.
3. O Belenenses e o futebol
O Estado Novo ficou conhecido, no pós-25 de abril, como estando assente em três pilares: Fado, Futebol e Fátima. Amália Rodrigues, expoente máxima do primeiro, nunca deixou de agradecer a Deus e a Nossa Senhora pelo que teve. E também não disse não ao desporto-rei. Sabe-se que era adepta do Belenenses (e há fotografias que a mostram envergando a camisola do clube da Cruz de Cristo), «para irritar os meus irmãos, que eram do Carcavelinhos».
No entanto, a relação de Amália com o futebol não era uma de fanatismo. «Gostei do Benfica, naquela altura formidável», contou, referindo-se às proezas do emblema da Luz. Esteve ao lado de Eusébio, de quem gostava, em algumas ocasiões. E cantou em festas do Sporting, uma das quais de muito má memória – já que a isso foi obrigada. Aconteceu a 1 de julho de 1958: Amália, que também escolheu esse dia como data para o seu aniversário, foi convidada a marcar presença na festa de aniversário dos verde-e-brancos. Porém, antes da festa propriamente dita, recebeu inúmeras cartas anónimas onde, na ressaca das eleições presidenciais que ditaram a derrota de Humberto Delgado, lhe pediam para que não comparecesse à mesma – já que isso significaria, grosso modo, uma declaração de apoio ao regime ditatorial.
Dizendo-se doente, Amália resistiu até final. Mas, na noite da festa, a sua casa foi invadida por agentes da PIDE, que a obrigaram a deslocar-se até Alvalade. «Lembro-me que desci a escada do meu quarto a chorar e a dizer: “Não há direito que se faça isto a uma pessoa”», narrou, anos mais tarde.
4. Amália, ícone gay
Ao longo da sua carreira, Amália Rodrigues colaborou e foi amiga de poetas, compositores e fadistas como Pedro Homem de Mello, José Carlos Ary dos Santos e José Manuel Osório. Em comum, estes três nomes não tinham apenas a sua ligação com a cantora, mas também o facto de serem homossexuais – um tabu grandioso, à época, que os obrigou a esconder a sua orientação.
Mas Amália, apesar do catolicismo e da moral vigente, nunca os discriminou – nem a qualquer outra pessoa – pela sua homossexualidade. A comunidade gay tinha-a como ícone, e a cantora não se coibia da atenção que por esta lhe era dada. «As pessoas de quem ela gostava ou que dela gostavam eram recebidas lá em casa independentemente do que pensassem ou fossem», explica José Manuel dos Santos no livro “Amália – Ditadura e Revolução”, de Miguel Carvalho. «Com a sua intensidade emotiva, tornou-se uma espécie de musa e de voz para quem, em ditadura, tinha uma vida afetiva atribulada».
António Variações adorava-a, os Fado Bicha cantam hoje temas que Amália popularizou. Osório, que nos anos 80 descobriu ser seropositivo, teve nela um estertor emocional. E a figura de Amália, no meio, foi alvo de várias caricaturas, a mais emblemática das quais por parte de Júlio Coutinho, também conhecido como Lola, travesti. O transformista teve a “lata” de pedir um vestido a Amália para usar nas suas atuações, e esta gentilmente cedeu-lho, com um conselho: «Sempre que estiver composto com a personagem Amália, venha à pista atuar e depois vá logo para o camarim. Por favor, não faça sala». O ser-se diva também se ensina.
5. Um copo com Rui Reininho
Figura incontornável (e incontrolável) do pop/rock português, Rui Reininho foi um dos nomes que participaram em “Bairro da Ponte”, álbum de 2019 do produtor Stereossauro, construído a partir de masters antigos de Amália Rodrigues. Muito antes, foi-lhe também dada a oportunidade de escrever um fado para a cantora – oportunidade essa que só não avançou porque o vocalista dos GNR não quis.
«Foi numa altura em que havia uma certa desorientação em relação ao reportório dela – 'O Sr. Extraterrestre' era uma coisa um bocado esquisita», disse, em declarações ao BLITZ. «Pensando na 'Casa da Mariquinhas' ainda sugeri “só se eu fizer a Casa dos Mariquinhas”, até porque tinha ido ao Trumps. Acho que foi aí que decidiram que era melhor esquecer a ideia».
O encontro – fortuito – entre os dois deu-se em 1982, nos estúdios da Valentim de Carvalho, e é contado por Fernando Dacosta em “Amália – A Ressurreição”. O homem da 'Pronúncia do Norte' entrou na cozinha, onde a cantora jantava com os seus colaboradores. «Na cabeceira da mesa, Amália comia com gula massa guisada. Sem o reconhecer, ela perguntou-lhe: “É você que está a gravar lá em cima? A que horas acaba? É que nós vamos gravar a seguir.” E convidou-os a juntar-se-lhes, e beber, se quisesse, um “uisquizito”».
6. Afinidades com o PSD
Amália Rodrigues sempre disse não ser política, escudando-se numa suposta ignorância (por ter apenas feito a quarta classe) para não discutir temas mais acintosos. O facto de ter sido praticamente proscrita no pós-25 de abril, tendo sido rotulada de “fascista” por elementos da esquerda mais radical, contribuiu de igual modo para o afastamento da cantora das lides políticas. O que não quer dizer que Amália não se sentisse fascinada por algumas personalidades desse quadrante: Álvaro Cunhal, por exemplo.
Publicamente, poucas vezes marcou posição. Exceto em 1996, quando não só deu o seu nome para a comissão de honra da candidatura de Cavaco Silva às presidenciais, como ainda foi vista a chegar, no carro particular deste, à sede de candidatura. «Nunca na minha vida tive uma atitude política e esta também não é política, mas uma questão de intuição», justificou à altura. Mesmo que nunca o tenha assumido, Amália estaria ideologicamente mais próxima do PPD/PSD de Sá Carneiro (e a cantora chorou no seu funeral), conforme explicou Pedro Roseta, antigo líder parlamentar do partido (em “Amália – Ditadura e Revolução”). Porém, à conversa com Miguel Esteves Cardoso e Paulo Portas, a cantora preferiu seguir por outro caminho: «Sou monárquica da capa e da coroa», garantiu.
7. Uma dedicatória “estranha”
De 21 para 22 de janeiro de 1961, o paquete Santa Maria, pertencente à Companhia Colonial de Navegação, foi alvo de um sequestro por parte de 24 exilados políticos portugueses e espanhóis, opositores dos regimes de Salazar e Franco. O plano, liderado por Henrique Galvão e Jorge de Soutomaior, foi um fracasso, mas chamou as atenções do mundo para o que se passava nas ditaduras ibéricas.
A ligação com Amália constituiria uma pequena bizarria numa narrativa que sempre a teve como “princesa da PIDE”. Aquando da morte de Soutomaior, em 1986, foi encontrado entre o seu espólio um disco da cantora com uma dedicatória em galego: «Sempre con moito apreço a Sotomayor [sic]», podia ler-se. Após algumas investigações, veio-se a perceber que a dedicatória em questão terá sido feita muito depois do ataque, após os dois se terem cruzado por ocasião do segundo casamento de Amália Rodrigues, com César Seabra, português radicado no Brasil. Mas a trama adensou-se com relatos de que este engenheiro, casado com Amália até à sua morte, em 1997, teria financiado Humberto Delgado. Estaria Amália ciente de quem era Jorge de Soutomaior? «Seria muito comprometedor para Amália» escrever tal dedicatória antes da queda de Salazar, refere o historiador Xurxo Martiz no livro de Miguel Carvalho.
8. A homenagem de um Nobel
Em 1999, aquando da morte de Amália Rodrigues, José Saramago fez uma pequena inconfidência a Ana Navarro, representante do jornal “Público” em Paris: a cantora teria financiado o Partido Comunista Português durante os anos da ditadura. A revelação, feita em semana de eleições, provocou discussões várias. Antes, já um outro Prémio Nobel da Literatura havia expressado a sua simpatia para com Amália: o nigeriano Wole Soyinka, que lhe dedicou o poema “Fado Singer”.
O original é facilmente encontrado pela Internet, mas o poema contou também com uma tradução de María Alonso Seisdedos. Alguns versos: «Rainha dos tormentos noturnos, tu tensas / suturas de música para suportar a imposição dos ritos / De vivos e mortos. Tu / Arrancas prantos estranhos da trovoada / Peneiras pedras raras das cinzas lunares, e elevas / Recados noturnos para o trono da angústia».
9. “Madrinha” de Camané
Tido hoje em dia como um dos maiores fadistas da sua geração (se não mesmo o maior), Camané atraiu as atenções de Amália no início dos anos 90, ao participar na peça “Maldita Cocaína”, de Filipe La Féria. A cantora assistiu à antestreia da obra no Teatro Politeama, em dezembro de 1992, e de lá saiu encantada – chegando a ligar a David Ferreira e a Rui Valentim de Carvalho, cobrindo o fadista de elogios. “Basicamente, 'ordenou-me' que o contratasse”, brincou o antigo diretor da label portuguesa.
Não foi Camané o único músico a beneficiar de um “jeitinho” por parte de Amália Rodrigues. «Fui eu que recomendei a Teresa Salgueiro para o Japão, e a Dulce Pontes para o Japão e para a França. E também levei a Simone a Paris e ao Brasil», afirmou, sem qualquer modéstia no tom. A qualidade reconhece-se.
10. Madonna, nem pensar
Muita tinta fez correr, ao longo dos últimos anos, a presença de Madonna em Portugal. A “rainha da pop” apaixonou-se pelo país e pelo fado, conheceu Celeste Rodrigues – irmã de Amália – e ainda contratou o sobrinho-bisneto da cantora, Gaspar Varela, para atuar a seu lado. Porém, em vida, Amália guardava poucos ou nenhuns elogios à autora de 'Like a Virgin': «Não tenho idade para a música dela», afirmou perentoriamente em entrevista ao Expresso. «E muito menos para o seu feitio. Fui criada por uma avó que morreria se visse o que a Madonna faz em palco». O que iria Amália pensar da versão de Madonna para 'Fado Pechincha', incluída na última digressão da artista norte-americana, terá forçosamente de entrar no campo da especulação.
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