Até aqui, a história não tem história nenhuma. O problema foi que o leão em questão, que se chamava Cecil, era muito bonito, um símbolo do Zimbabwe (usado para atrair caçadores ao país, sem dúvida…) e objecto de um estudo da Universidade de Oxford. Quando Oppah Muchinguri, a Ministra do Ambiente do país, deu pelo abate de Cecil, já Palmer tinha voltado tranquilamente para os Estados Unidos com a cabeça do bicho. Oppah referiu-se a ele em termos inequívocos: “Infelizmente foi tarde de mais para apreender o larápio, pois já se escondeu no seu país de origem.”
Milhares de caçadores deslocam-se todos os anos a África para praticar um desporto que é legal e bem-vindo em quase todos os países do continente – embora em alguns os termos “legal” e “bem vindo” possam ser fluidos e sujeitos a diversas interpretações. E não é uma prática nova; já era corrente no século XIX, e desde então literalmente milhões de animais foram mortos por caçadores – antigamente chamavam-lhes “aventureiros” – alguns dos quais conhecidos internacionalmente. É o caso de Teddy Roosevelt, por exemplo, que passou o ano de 1909 a caçar nada mais nada menos do que mil e cem (mil e cem!) peças, com o apoio de uma equipa de 250 guias e carregadores. As fotografias de Teddy sentado em cima de leões, búfalos, elefantes e rinocerontes percorreram mundo. Também é o caso, muito mais recente, do Rei de Espanha, Juan Carlos, fotografado em frente a um elefante, espingarda na mão. Mas a recepção mundial da fotografia de Juan Carlos ilustra bem o que se passou entretanto; caçar tornou-se uma actividade mal vista, mesmo criminosa, própria de almas sem coração e, ainda por cima, com muito dinheiro, uma combinação péssima para os padrões actuais de comportamento. (No caso do Rei de Espanha ainda acrescia o facto de estar com a sua amante e num período em que o país passava por severa crise, mas o elefante morto foi o que levantou mais polémica.)
Estamos a atravessar uma fase em que cada vez mais pessoas são vegetarianas – não apenas na sua alimentação, mas também nas suas convicções. Há movimentos, como os vegans ou a PETA (People for Ethical Treatment of Animals), que criticam em termos violentos o abate de animais, mesmo que seja para alimentação ou outro fim útil. Utilizando as redes sociais, estas pessoas querem criar um clima repressivo sobre as outras – as que comem carne, ou usam artefactos de couro, como sempre se fez desde os Neandertal. Agora, se criticam tanto o abate de animais – que consideram sempre cruel – para fins úteis, imagine-se o que acham do “assassinato” dos bichinhos por simples prazer!
Na realidade, e isso é o mais surpreendente da época em que vivemos, há muito mais indignação com a morte de animais do que com pessoas. Existe uma petição com mais de 140 mil assinaturas para que o dentista Walter Palmer seja entregue ao maravilhoso sistema judiciário do Zimbawe, onde arrisca a pena de morte. Mas não precisa de fazer a viagem: inúmeros tweets e mensagens no Facebook exigem que seja enforcado, sem precisar de julgamento. Parece que as pessoas que se indignam com a morte de animais acham justo que os humanos sejam mortos como punição pelo abate dos bichos. Em compensação, quando um cão morde uma bebé até à morte (como aconteceu em Portugal há pouco tempo) logo se ouvem milhares de vozes a pedir clemência para o pobre animal, que terá sido provocado, ou deixado sozinho com o recém-nascido.
Pois é, o dentista Walter Palmer está metido num sarilho. Teve de fechar o consultório e mudar de casa. Ainda não se sabe se o Ministério da Justiça norte-americano o acusará, ou extraditará para o Zimbabwe. Mais valia que tivesse morto uma pessoa qualquer nas ruas da sua Bloomington, Minnesota. Podia alegar que o outro o provocara; em certos estados, é legal andar armado e atirar aos humanos que arreganhem os dentes.
José Couto Nogueira, jornalista e escritor, nascido em Lisboa em 1945, estudou economia e começou como fotógrafo de publicidade. Viveu em Londres, São Paulo e Nova York, e tem três filhos e três romances publicados.
Comentários