“Biografia de uma consciência”, que conta editar em setembro, sai no ano em que Ace completa 50 anos de vida e é o primeiro que grava enquanto Brando.
Em entrevista à Lusa, em Vila Nova de Gaia, onde cresceu e ainda vive, Ace contou que o novo ‘alter ego’ surgiu, antes de mais, porque “toda a gente” lhe chama padrinho e Marlon Brando foi, para ele, “o melhor padrinho da história dos filmes do ‘Padrinho'”. Além disso, já tinha editado, em 2017, um álbum intitulado “Marlon Brando”.
Depois de ouvir, pela primeira vez, as músicas todas do novo álbum, Ace percebeu que, “se as pusesse numa certa ordem”, elas formavam “uma espécie de cronologia”.
“Consigo fazer aqui uma espécie de um filme em músicas, com uma narrativa, que ao mesmo tempo – isto foi tudo por acaso – funciona como uma narrativa para a minha história na música: ter começado a lutar, ter tido momentos espetaculares de sucesso, de fama, de a vida me correr super bem, de ser praticamente rico, porque morava com os meus pais, não tinha despesas, todo dinheiro que tinha era para jantaradas, sair à noite e para gasolina e fazer ‘tuning no carro’, essas asneiras, histórias com mulheres, traições, o decair da carreira e depois a morte”, contou.
A dada altura, Brando é assassinado e o álbum termina já com ele morto, algo que Ace considera “uma metáfora para o fim” da sua carreira, que “há de acontecer um dia, mas não com este disco”.
“Não tendo sido eu a dar um fim à minha carreira, sinto que muitas pessoas o fizeram já. Acaba por ser essa a metáfora, mas [o álbum] termina com uma música em que volto como fantasma, para assistir ao meu funeral, e outra em que acabo como espírito, a ter uma reflexão, que é uma música que originalmente escrevi a falar para o meu pai, mas que se adequa, comigo na terceira pessoa, tipo futebolista, a falar comigo próprio”, partilhou.
“Biografia de uma consciência” terá edição física e Ace gostava de desenvolvê-lo para outras coisas: “que os concertos não fossem concertos, que fosse uma peça de teatro, um musical, mas ainda estou aqui a perceber como é que poderia ser, gostava muito de desenvolver isto para uma série ou um filme, quem não?”.
Este álbum deveria ser o terceiro numa série de discos com produtores únicos, que começou nos anos da pandemia: “Rua da Frente”, com DJ Guze, dos Dealema, e “Herança”, com Madkutz.
O terceiro álbum deveria ter sido com Keso, que “definiu uma estética, mais ‘street’, mais ‘gangsta’, com muitas aspas”.
Esse álbum seria um regresso a A.Ventura, personagem que criou em 2004/2005 e “que só resultou em duas músicas”. “Hoje não posso assumir esse pseudónimo, mas a filosofia é mais ou menos a mesma”, referiu.
A colaboração com Keso já tinha começado a ser gravada, mas surgiram alguns “quiproquós artísticos criativos” e os dois decidiram que “era melhor parar”.
“Entretanto fiquei com dez músicas e ‘quero lançar isto de alguma forma’. Então resolvi ser eu a encarar esse desafio, de fazer eu ‘beats’ para esse projeto. Em 30 anos de carreira, foi o maior desafio que eu tive”, contou.
O objetivo seria terminar a série de álbuns com produtores diferentes com um disco produzido pelo Sam The Kid, projeto que está a ser feito, “mas se calhar ainda vai demorar algum tempinho”.
A carreira de Ace (Nuno Carneiro) começa a ser contada em 1993, quando decidiu fazer uma banda com Presto (Hugo Piteira), os Da Wreckas.
O ano em que conheceu Presto, num concerto, foi o mesmo em que percebeu que “não era o único gajo que gostava de rap” em Portugal, porque não conhecia ninguém que gostasse.
“Foi um ano super especial na minha vida, em que, antes de conhecer o Presto, conheci o General D”, partilhou.
Ace chegou a General D através de uma notícia no jornal Público. Escreveu uma carta para o jornal, para tentar chegar ao contacto com o ‘rapper’. “Passado não sei quanto tempo responderam-me, também por carta. E já não me lembro como, mas sei que cheguei à conversa com o General D”, recordou.
Nessa altura, General D – o primeiro MC a editar um disco em nome próprio (“Pé Na Tchôn, Karapinha Na Céu”, em 1995) em Portugal — preparava-se para gravar um videoclipe no Miratejo, concelho do Seixal, e convidou Ace para participar.
Meteu-se no comboio, rumo a Lisboa, onde ficou com um amigo a quem pediu que o acompanhasse à Margem Sul do Tejo. Tudo combinado por telefone fixo, que à época os telemóveis ainda eram uma miragem. “Cheguei lá, a pasmar, porque os graffiti já não tinham nada a ver com o nível de graffiti que eu pintava aqui. Eram coisas a sério, graffiti a sério. Houve uma sessão de improviso, andava sempre com um caderninho, onde escrevia rimas, abri e li uma letra”.
Sempre de “caneta afiada”, Ace herdou do pai os talentos artísticos, mas não a nível musical. Ainda frequentou a escola de música, quando era miúdo, mas aprendeu “apenas o básico”, o resto foi como autodidata.
Embora o ‘rap’ seja a vertente do hip-hop em que se tornou mais conhecido, o primeiro contacto que teve com aquela cultura foi através do ‘breakdance’, “uma moda mundial que bateu ali em meados dos anos 1980”.
“Foi através do ‘breakdance’, mas não tinha consciência do que aquilo era. Sabia que o graffiti tinha que ver com aquilo, porque via nos filmes ou nas capas dos discos e das cassetes. E foi quando comecei também a dar os meus primeiros riscos, com latas de spray. A primeira coisa que escrevi foi ‘Beat Street’, na rua onde cresci: Antero de Quental. Comecei a tentar imitar os graffiti e a fazer coisas, espalhando pela cidade”, recordou.
Foi com os “primeiros riscos” nas paredes que o nome Ace surgiu, já não se lembra bem como nem porquê. Nessa altura “não havia nada” que o chamasse para o rap.
Só mais tarde, “provavelmente de forma inconsciente”, despertou para o rap nas matinés em discotecas aos domingos à tarde. “Eu era muito ‘discotequeiro’, e era animador não oficial, ia para cima das colunas e vestia umas roupas esquisitas. Alguns DJ de discotecas em Gaia achavam-me piada e eu ia para cima das colunas e fazia ‘playback’ do rap que estava a tocar por cima de músicas de house”, partilhou.
Com os programas de vídeos que se apanhava naquela época “por acidente” nos televisores, através de antenas parabólicas, chegou a dois álbuns que o marcaram: os primeiros dos Public Enemy e De La Soul.
“Daí para a frente nunca mais nunca mais larguei o rap, apaixonei-me mesmo. De La Soul pela piada, pela forma quase ‘naif’ como passavam as mensagens. E Public Enemy pela força, pela mensagem, pela revolta. Tenho um rebelde dentro de mim que nunca há de morrer”, disse.
Os Mind Da Gap ocuparam grande parte dos 30 anos que já leva de carreira, o grupo que começou por criar com Presto e ao qual mais tarde se juntou Serial, e é responsável por um dos álbuns que marcou a história do rap em Portugal: “Sem Cerimónias”, de 1997.
Além disso, o grupo foi um dos pioneiros do chamado rap do Porto, que abriu caminho para coletivos e artistas como Dealema (Maze, Mundo, Expeão, Fuse e Guze), Keso, Virtus, Berna, Capicua ou Conjunto Corona.
Responsáveis por temas como “Dedicatória”, “Todos Gordos”, “Bazamos ou Ficamos”, “És onde quero estar”, percorreram palcos de Norte a Sul do país, atuando também nos grandes festivais de música.
Em 2016, anunciaram o fim da carreira do grupo. Para Ace, os Mind Da Gap terem acabado da forma como acabaram foi, “sem sombra de dúvida”, o pior momento dos 30 anos de carreira: “O pior foi termos chegado a uma altura em que já não nos entendíamos uns com os outros”.
Já o melhor, foi terem “conseguido vencer”. “Termos conseguido chegar ao patamar que chegámos, a pisar os palcos que pisámos, a chegar a muita gente, a tocar as pessoas realmente com a nossa música. E termos aberto portas e sermos inspiração e referência para tantos outros que se seguiram”.
Ainda com os Mind da Gap juntos, em 2003, Ace editou o primeiro álbum a solo, “Intensamente”. O desenvolvimento pessoal do ‘rapper’ começou a levá-lo para temáticas que “não conseguia explorar em parceria” e, além disso, começou a criar ‘beats’, que nunca sugeriu fazer em Mind Da Gap por nunca ter achado que esse fosse o seu lugar naquela equipa.
Quando não deu para “aguentar mais essa vontade”, decidiu editar “Intensamente”. Vinte anos passados, o melhor que essa decisão lhe trouxe foi o ‘feedback’ que foi recebendo.
Já o pior, Ace considera que “acaba por ser uma consequência normal do passar do tempo, do passar dos anos”. “Sinto que hoje em dia não tenho grande importância no meio, além de ser completamente abafado pela quantidade gigantesca de ‘rappers’ que existem”.
Embora, “obviamente”, não se sinta feliz com o facto de “não ter tanta importância” como já teve, Ace percebe que tal tenha acontecido “porque é normal, é a vida, como as coisas acontecem”. “É uma consequência dos tempos”, que hoje “estão completamente diferentes” do que eram em 1993, quando decidiu que o ‘rap’ era o caminho a seguir.
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