Um gato fedorento em prime-time
No início de 2020: numa altura em que a aquisição da Media Capital por parte da Cofina não tinha sido abortada e que ainda não avizinhávamos todo o caos que nos esperava nas semanas seguintes, RAP decidiu criar a sua própria reviravolta.
A troca: num comunicado a 3 de janeiro, o humorista de 46 anos anunciou que ia trocar a TVI pela SIC, levando consigo não só o formato e equipa do seu programa “Gente Que Não Sabe Estar”, mas também os seus colegas do “Governo Sombra” - Carlos Vaz Marques, Pedro Mexia e João Miguel Tavares - que depois de vários anos na TVI24, seguiam agora para a estação de Paço de Arcos.
De volta: A decisão marcou um novo regresso do humorista à SIC depois de em 2009 ter apresentado "Gato Fedorento: Esmiúça Os Sufrágios", rubrica que acompanhou as eleições legislativas desse ano. “Gente Que Não Sabe Estar” transformou-se em “Isto É Gozar Com Quem Trabalha”, que começou a ser desenvolvido para estrear no dia 1 de março, a seguir ao Jornal da Noite de domingo, que passaria a ser o seu horário semanal. O “Governo Sombra”, por seu lado, manteve o seu nome e a sua presença na TSF, mas alterou os visuais e a banda sonora à qual já nos tínhamos habituado na última década.
Depois do Medo, Bruno esteve connosco quase todos os dias
No início de 2020: Bruno Nogueira estava a planear as última datas da sua tour de stand-up “Depois do Medo” que, entre 2018 e 2020, o levou a dar mais de 50 espetáculos de norte a sul do país. O final da mesma acabou por chegar no Dia dos Namorados, a 14 de fevereiro, com uma Altice Arena esgotada com mais de 15 mil pessoas, tornando-se o primeiro humorista português a fazê-lo.
Também na TSF: à semelhança de Ricardo Araújo Pereira, Bruno tem desde 2010 a sua rubrica “Tubo de Ensaio” na rádio portuguesa (produzido em parceria com João Quadros). Toda as manhãs, de segunda a sexta, faz segmentos de 5 minutos sobre um ou mais temas que estejam nas bocas do mundo.
Quando as redes sociais dão jeito: ao contrário de RAP, o humorista tem uma conta nas principais redes sociais, nomeadamente, no Instagram e no Twitter com o username @corpodormente. Ora, foi na primeira que a meio de março decidiu começar a fazer um live talk show no qual convidava diariamente, entre outra pessoas, os seus parceiros de “Uma Nêspera No Cu” (programa de humor no YouTube) - Nuno Markl e Filipe Melo. Inicialmente, não havia um nome para a coisa, mas passados alguns episódios, adotou o nome da expressão “Como É Que O Bicho Mexe”, que surgiu no meio de discussões com os primeiros convidados. O formato é muito simples: às 23h, Bruno inicia um live na sua conta; aguarda cinco minutos para que pessoas cheguem enquanto serve um copo de vinho a si próprio; dedica uns minutos a partilhar reflexões do seu dia com a audiência e, finalmente, desata a conversar com amigos e conhecidos que apareçam no seu “programa”.
Vamos aos números
“Isto É Gozar Com Quem Trabalha” vs “Como É Que O Bicho Mexe”
- 1,7 milhões de pessoas: é a média de audiência do programa de RAP (com 30% de média de share) de acordo com dados da GFK/CAEM.
- Rui Rio: foi o entrevistado do programa de RAP que atraiu mais audiência, com uma média de 1,87 milhões de pessoas a assistir.
- 10: é o número de episódios do programa do RAP até agora e também o número de semanas consecutivas em que foi o programa mais visto de domingo.
- 15.000-25.000 pessoas: foi o intervalo de audiência do programa de Bruno Nogueira nas primeiras semanas.
- >75.000: foi o pico de audiência de “Como é Que O Bicho Mexe”, no dia em que Vhils esculpiu Zeca Afonso na madrugada de 24 para 25 de abril. Nestes meses em que o Instagram Live começou a ser usado um pouco por todos, esta rubrica foi de longe a com maior audiência em Portugal.
- Fim de fevereiro: Bruno Nogueira ultrapassou os 200.000 seguidores no Instagram. A 15 de maio já ultrapassava os 500.000, o que significa que desde que começou o talk show mais que duplicou a sua base de seguidores.
“Governo Sombra” vs “Tubo de Ensaio”
- Apple Podcasts: Tubo de Ensaio é o podcast mais ouvido enquanto o Governo Sombra é o terceiro.
- Spotify Podcasts: Tubo de Ensaio é o terceiro podcast mais ouvido na plataforma enquanto o Governo Sombra é o quarto.
- TSF: Os dois programas dominam as audiências da rádio portuguesa.
O que é que os dois programas dizem sobre o futuro dos talk shows?
Em quarentena: As estações de televisão têm vivido um paradoxo nestas semanas. Por um lado, muitas estão a atingir recordes de audiência das últimas décadas, provocado pelo maior tempo que as pessoas estão a passar em casa, em que o pequeno ecrã acaba por ser uma das principais formas de ocupar o tempo livre.
- Mas..., por outro, de uma forma geral estão todas a estimar quedas nas receitas de publicidade, que são o seu sustento, visto que devido ao lento desconfinamento que se avizinha, a maior parte dos negócios não vai ser capaz de atingir o nível de vendas esperado e ao qual se habituou e, assim, o montante que vão ter disponível para anunciar e promover os seus produtos e serviços será inevitavelmente inferior.
Reality check #1: O programa de RAP simboliza aquilo que se sempre fez em televisão. Existem métricas como os ratings e os shares para medir quão bem correu o episódio da semana e existem anunciantes que sabendo que é o conteúdo mais visto do dia, em televisão, pagam um premium para poder promover os seus produtos e serviços antes, durante e depois do dito cujo.
Reality check #2: O programa de Bruno foi feito a custo zero, não tem qualquer tipo de marca associada, os convidados aparecem espontaneamente num live de Instagram e não há uma preocupação com os números porque também não existem obrigações para com uma estação que pagou pelo conteúdos e que tem de prestar contas a anunciantes a quem vendeu espaço de publicidade.
Não esquecer: Antes da pandemia, vivíamos num período em que as marcas estavam a movimentar o seu marketing mais para o “digital” e que a televisão estava a perder cada vez mais tempo de antena para as redes sociais (onde utilizadores podem encontrar conteúdo de igual qualidade, mais genuíno, transparente e produzido a um custo inferior) e para os serviços de streaming, que oferecem um produto de entretenimento mais flexível e mais vasto do que aquele que a televisão é capaz.
Fica a pergunta: Terá a pandemia retardado ou acelerado esse processo?
Então e quem ganhou?
Resposta certa: “nós” que, como audiência, numa das alturas mais negras que vivemos enquanto sociedade, tivemos dois mestres da comédia a acompanhar-nos. Hoje, Bruno Nogueira faz o seu último “Como É Que O Bicho Mexe” desta ronda, mas algo nos diz que não vamos ficar muito tempo sem o ver novamente. Quanto a RAP, irá continuar a fazer-nos rir e pensar, nos próximos fins de semana.
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