O espetáculo estava agendado para as nove e meia da noite no Teatro Ibérico, na zona de Xabregas, em Lisboa. Encontramo-los no ‘Cantinho dos Grelhados’, numa mesa coberta de travessas de carne, batatas fritas, vinho e cerveja. Pedro Durão é o primeiro a vir à porta fumar um cigarro. Sortearam a ordem a que cada um iria subir ao palco, calhou-lhe o primeiro lugar. Está nervoso.
Os outros não demoraram a juntar-se a ele à porta do restaurante. É noite de estreia, há vontade de ir. Há receio de ir. Sugere-se um bagaço para a viagem, empurra-se os nervos pela goela abaixo com o amargo e segue-se para o teatro, nem a 200 metros de distância, do outro lado da ponte.
Passam poucos minutos das nove horas da noite e já há algumas pessoas à porta do Teatro Ibérico. Nos bastidores, aprontam-se algumas garrafas e snacks para entreter o tempo até que o nome de cada um dos seis seja anunciado.
Fazer isto não é simples. Eles dizem que são de “segunda liga”, mas basta dar um salto à primeira divisão e olhar para um exemplo como o de Bruno Nogueira, que só este ano vai voltar a fazer um espetáculo de stand-up, anos depois da última vez que esteve sozinho em palco, só com um microfone e uma plateia de pessoas. “Depois do medo”. O título diz tudo. “Se ele, que é um génio, tem medo, imaginem nós”, diz Pedro Durão.
Ele é o mais inquieto. “O Durão é sempre o mais nervoso em tudo. Vamos jantar. 'O que é que comemos?' O Durão é o mais nervoso a escolher do menu”, brinca Guilherme Fonseca.
O antigo apresentador do Curto Circuito é um dos mais descontraídos. Diz que o truque é vinho do Porto, mas também os 13 anos de experiência de palco. Assim que chega aos bastidores, por entre a galhofa dos que mais tarde vão subir ao palco e o amigo Diogo Valsassina, que tinha vindo para assistir à estreia, impõe a voz: “De que é que se estão a rir? Isto aqui não é a Avenida Q. Aqui ninguém tem graça”.
Uns riem-se, outros servem-se de gin e enchem as mãos de salgados.
Pedro Sousa, aquele cujo sorteio ditou que seria o segundo a atuar, está tranquilo. “Sou o segundo, para já estou bem. Ainda vou ensaiar um bocadinho... quando começar a ensaiar vou ficar completamente na merda, mas para já estou tranquilo. Se o Durão me estraga o público vou matá-lo, é só o que tenho a dizer. Não diria que estou 100% dependente do Durão, mas pá, aqueles sólidos 97% estão do lado dele. Agora o resto não sei o que é que vai acontecer, eu espero que lhe corra bem só por minha causa, nem tem nada a ver com ele”, diz-nos ainda atrás da cortina.
Lá atrás, faz-se fila para a casa de banho. “Tenho que ir cagar. Estou mesmo à rasca, mas o Carapeto está enfiado lá dentro. Ainda por cima o cu maior”, indigna-se Diogo Abreu. O terceiro comediante da noite rejeita o nervosismo. “Estou ansioso, não estou nervoso. A sério, estou bué ansioso. Nervoso estou zero. Nervoso está o Durão, já viram a cara dele? Teve a Xanax ontem, a noite toda”, brinca.
Guilherme Fonseca passeia pelos bastidores enquanto bebe um copo de vinho do Porto, elixir da calma antes do palco. “Eu vou ser honesto, no que toca a stand-up normal, eu não estou nervoso. Estou confiante, sei que tenho um texto fixe e que vai correr bem. No que toca ao jogo do Roda Bota Fora, que nunca fizemos, estou muito nervoso. Estou nervoso como não estava há muito tempo na minha carreira. Portanto, como é que eu olho para o nervosismo dos “putos” deste grupo? Com companheirismo, com amizade e com empatia porque estou muito nervoso com o que vai acontecer hoje”. Faltam cerca de 15 minutos para o espetáculo começar e até ao mais experiente do grupo o Porto não está a fazer efeito pleno.
O jogo do Roda Bota Fora - um duelo entre humoristas com piadas curtas - é o fantasma dos bastidores. “É difícil não teres a pressão de ser o melhor. Quer queiras, quer não, tu não queres só ter graça, queres ser melhor do que os outros cinco e é fodido. Eu não vou ser, por exemplo. Pelo menos agora, desta vez. Para a próxima vou ser. Mas nesta é complicado”, diz Pedro Durão.
Na sala ao lado, Duarte Correia da Silva só queria poder saltar já lá para cima. “Estou mais ansioso do que nervoso. Quando subir ao palco desaparece tudo. A minha cena é chegar lá”. “Trocavas de lugar com o Pedro Durão, então”, perguntamos-lhe. “Hum… mas ao mesmo tempo não, não é? Eu quero lá chegar, não quero ser o primeiro. O primeiro entra a frio. Imagina, se me dissessem: 'vais em primeiro, mas o público está quente'. Comprava na hora. O meu problema é ter de partir o gelo, isso é sempre ingrato”, admite.
A única sala de porta fechada é ocupada por Daniel Carapeto que revê alguns pormenores do texto que vai levar a palco. “Eu vou em último por isso ainda não estou nervoso. Ir em último é pior se tiver de ficar aqui atrás com pica para subir, causa mais ansiedade. Eu vou rebentar, mas já estou habituado, pá, as pessoas já sabem. Tenho medo que não lhes corra tão bem, as pessoas adoram esta oportunidade de atuarem comigo, é bom para eles, também aprendem, desenvolvem mais”, atira o humorista que a internet conhece como “O Estúpido”.
Está quase a começar, a sala está lotada. 169 pessoas absorvem o veludo vermelho das cadeiras de um teatro que recebe pela primeira vez um espetáculo de stand-up comedy.
Na primeira fila há um espetador especial. Ricardo Araújo Pereira, nome de respeito do humor nacional, há algum tempo que não pisa o palco em registo de stand-up. Talvez seja por isso que diz olhar “com admiração” para este grupo, “pelo trabalho e pela insistência”.
“Não sei se é uma novidade, mas isto é dificílimo. É preciso bastante coragem para enfrentar o público, ainda por cima eles fazem questão de que o texto seja todo novo. Tem um lado de previsibilidade e depois tem outro completamente aleatório, ou seja, pode correr mal”, diz o Gato Fedorento.
“É preciso bastante coragem”. A frase fica. Quando se olha para os seis, ao jantar ou nos bastidores, apesar dos nervos, sobressai sempre o ar bem-disposto. Mandam piadas, riem-se. No dia-a-dia, esperamos que eles sejam assim, de trato fácil, sorridentes e sempre com uma tirada de humor debaixo da língua, pronta a sair.
Temos, cá para nós, que são descontraídos, que aquilo lhes é natural. Mas o humor é uma arte, e como qualquer outra, trabalha-se, prepara-se. Sua-se, arrisca-se. O stand-up é o lado mais puro disto tudo. “É uma espécie de pega de caras, não é? Não há bigodes, não há perucas, não há efeitos especiais, são eles sozinhos no palco, com o microfone, com o texto, corpo a corpo com a plateia”, diz-nos Ricardo Araújo Pereira.
“[O stand-up] continua a ser a forma mais pura de se fazer humor, simplesmente pelo facto de que a reação é a mais instantânea possível, sendo que um sketch, um filme ou num vídeo para a Internet a reação nunca é instantânea. Aqui é logo, por isso é que eu acho... não sei se 'pura' é o adjetivo, mas é a forma onde a reação é mais fidedigna. É o que eu gosto mais de fazer, stand-up”, confessa-nos Pedro Sousa. O seu homónimo, de apelido Durão, fala em sintonia. “Dentro do humor, o stand-up é o último reduto da honestidade e de tudo o que podes dizer dentro da liberdade de expressão. É complicado numa crónica para o SAPO24, ou seja para onde for, dizeres mesmo o que queres e acho que o stand-up é o único sítio onde podes dizer mesmo o que queres. Pode correr mal, pode correr bem, obviamente, mas é o único sítio onde ainda podes fazer isso”, refere.
Abreu, encostado à parede num dos estreitos corredores que se multiplicam no andar inferior atrás do palco, começa a acusar a pressão. “Até entrar a primeira piada vai ser uma merda, tenho a certeza. Aliás, tu estás a olhar para mim e eu estou a suar. Não sei porquê, mas estou a suar. Estive a correr? Não estive”, diz entre risos.
Cada um lida com a pressão à sua maneira. Guilherme Fonseca diz que o grupo vai aos dois extremos. “Temos um gajo tipo Carapeto que finge arrogância, mas que está nervoso e depois tens um gajo tipo o Durão que sabe que é bom, mas que está nervoso à mesma. Ou seja, eles têm a mesma qualidade, mas abordagens completamente diferentes à sua prestação em palco. Onde é que eu estou? Que é a pergunta que ias fazer a seguir, não sei, ainda bem que não perguntaste porque eu não tinha uma resposta para te dar”.
Portugal é um país de curta tradição no stand-up. O formato é recente. Para Daniel Carapeto, para se fazer uma comparação, é imaginar que a música só tinha aparecido há 20 anos. “Está em fase de maturação”, diz.
“Acabámos de partir a fronteira da anedota, acabámos de deixar a cena de que humor é uma anedota e a piada vem a cada dez segundos. Acho que se aguenta melhor o storytelling, acho que eles aguentam melhor uma one liner com uma piada forte. Mas imagina, piadas dark, de um humor mais negro, ainda estamos a encaixar-nos, ainda estamos a habituar-nos a isso. Acho que o mercado ainda não é de stand-up, é de pessoas, sais de casa para ver ‘x’ ou ‘y’. Imagina se um comedy club não metesse nome nenhum no cartaz e dissesse 'Esta é uma noite em que você se vai rir muito'. Eu acho que ninguém sairia de casa. Acho que estamos a caminhar, mas acho que estamos atrás dos outros”.
Faltam minutos para o primeiro ser anunciado.
Um grupo de seis rapazes. Não têm medo de um protesto feminista à porta? “Estou ansioso para que isso aconteça, espero bem que as Capazes venham aí, façam uma manifestação e entrem em palco também. Imaginem elas a entrarem aqui, assim do nada, irem para palco e não nos deixarem atuar. Se fizessem isso antes de eu entrar em palco, antes de eu atuar era ótimo, era brilhante! Para mim funcionava e acho que para o Durão também”, diz entre risos Diogo Abreu.
“Eu tenho muitas amigas que fazem comédia, que são guionistas e que trabalham com humor, mas para este grupo fez mais sentido sermos este grupo de amigos e subirmos todos a palco do que propriamente estarmos à procura na lista de contactos de uma mulher que tivesse graça para cumprir quotas: uma mulher, um preto, um cigano, um judeu. Não fazia sentido estarmos à procura de quotas. Para trabalhar com mulheres que eu admiro tenho o 'Super Swing' do Canal Q, que já fiz com a Bumba na Fofinha e com a Rita Camarneiro. Não valia a pena estar a forçar isso. Isto é um grupo de amigos que por acaso são seis homens brancos”, explica Guilherme Fonseca.
Fala-se de nervos, bagaço e humor.
Silêncio. Vem uma voz do palco. Anuncia-se Pedro Durão, depois Pedro Sousa. Segue-se Diogo Abreu, Guilherme Fonseca e Duarte Correia da Silva. Encerra com Daniel Carapeto. Cada um passou dez minutos livres em palco para fazer o seu humor. No fim sobem todos, é hora do Roda Bota Fora. Um frente a frente, one liners, quase num registo de battle humorística e que se definia por uma regra simples: quem recebesse mais risos pela piada, ganhava. Aos seis juntaram-se dois convidados especiais, Os Primos, uma dupla do YouTube que se tornou conhecida por ter participado na Liga Knockout.
Iuri Pina e Rui Costa, mais conhecidos por Smile e Raptruista, surpreendem todos ao colarem-se ao microfone e aguentando as 'vidas'. No meio de um Roda Bota Fora em que a família de Pedro Sousa acabaria por ser decisiva na triagem até à piada final, foi Iuri quem ia surpreendendo, mas no final a vitória pendeu para Diogo Abreu.
A descontração com que estiveram lá em cima dá a imagem de que foi tudo fácil. Mas Ricardo Araújo Pereira levanta-nos o engano sobre a magia aparente da liberdade em palco, sobre o enfrentar o público.“É uma magia que no fim do espetáculo a gente diz 'epá olha, acabou por ser mágico aquele momento em que ninguém se riu', mas para quem está lá em cima dá vontade de fazer chichi nas calças quando isso acontece”, diz o humorista.
Esta é a história da estreia de um espetáculo em que seis humoristas, todos amigos, queriam saltar para palco. Queriam atuar juntos e ainda vão fazê-lo em mais três datas, no dia 30 de outubro e nos dias 6 e 13 de novembro, no Teatro Ibérico. Os bilhetes podem ser adquiridos aqui.
Ricardo Araújo Pereira lamenta que, sobretudo em Lisboa, não exista um circuito de bares. “Isto que eles estão a fazer, por exemplo, é mais arriscado porque as pessoas vêm mesmo para ver isto. Outra coisa é estar num bar e há um texto que está a ser experimentado que falha, não há problema porque estamos a beber, estamos a conversar. Aqui é só mesmo para isto. Isto são eles a tentar arranjar sítios para fazer as suas coisas, é pena que não haja um circuito em que eles não possam fazer isso não uma vez por semana, mas atuar várias vezes por noite. De quinta a domingo, por exemplo”, comenta.
Esta é a história dos que dão o corpo à bala, a um humor sem edição, no seu estado mais bruto. Dos que ousam ir onde os da primeira divisão têm medo. Dos que viram tudo de pernas para o ar para encontrar um sítio onde possam atuar.
São os que fazem com que tudo pareça fácil na vida, mas que no momento de prestar contas também tremem, como todos nós, e que por isso se aproximam mais do público. Humanizam-no.
Dizem que são a "segunda liga", mas são a linha da frente na batalha pela comédia, pelo riso e pelo humor num universo que já é tanto deles como de qualquer outro.
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