«O hip-hop está mais forte do que nunca, o que faz com que toda a gente queira um pedaço». As palavras não são nossas; são de Sam the Kid, em entrevista ao SAPO24, dias antes de atuar no Coliseu dos Recreios com os Orelha Negra – banda que ajudou a fundar – e uma orquestra de 24 elementos, dirigida por Pedro Moreira. Ao proferi-las, talvez Sam the Kid estivesse apenas a elogiar e a proteger a sua dama, o hip-hop enquanto cultura e estilo de vida. Ou talvez tais afirmações tenham sido algo de mais grandioso: uma profecia, digamos.
Chegámos até à rua do Coliseu bem antes da hora marcada e esse último pensamento veio-nos de imediato à cabeça, tal era a fila que se ia desde logo formando para entrar na sala, naquele que foi o primeiro concerto de Sam, a solo, num Coliseu (o segundo está marcado para o dia 8 de novembro, no Porto). Vimos fãs, conhecedores profundos ou meros ouvintes ocasionais, de todas as faixas etárias, cada um com o seu vestuário próprio: quer se vista um pólo ou uma tee dos Wu-Tang Clan, o hip-hop não discrimina. Nem o poderia fazer. Tornou-se marca global; o último reduto de rebelião, mantendo a sua frescura e a sua indomabilidade ao longo de quatro décadas.
Toda a gente, continuamos, quer e quis esta noite um pedaço do hip-hop. E quis um pedaço também de Sam the Kid, que é grosso modo o seu maior representante em Portugal, alvo de rasgadíssimos elogios desde a adolescência, seja qual for o métier: quer enquanto rapper, quer enquanto produtor. Se existe hip-hop no país, boa parte da “culpa” é sua. E se este mesmo hip-hop conseguiu quebrar a barreira do underground e enfiar-se garantida e merecidamente no mainstream, então toda ela será só mesmo dele.
Pelo que não seria preciso a esta multidão de gente que encheu o Coliseu dos Recreios querer um pedaço de hip-hop ou de Sam the Kid. Ele próprio entregou um e outro, ao longo de duas horas onde os beats e a poesia contaram histórias particulares: a do Sam músico, a do Sam melómano, a do Sam que não esquece os camaradas (as homenagens aos já falecidos GQ e Snake foram disso exemplo, e os muitos convidados também), a do Sam que, independentemente daquilo que cresceu e venha a crescer, será sempre Kid – o puto, o sócio, a contagiante expressão alegre de quem ama mesmo aquilo que faz (até porque 'Juventude (É Mentalidade)').
Na sua condição de puto eterno, Sam the Kid não poderia senão começar com uma das maiores influências na vida de um puto: o próprio pai, que subiu ao palco para declamar 'Santiago Maior', poema da sua autoria, já o público havia mostrado alguma impaciência pelos vinte minutos de atraso. E fez todo o sentido que uma celebração do hip-hop começasse com um poema: o rap é, muito sucintamente, a poesia das ruas – versos e trocadilhos e metáforas e jogos de palavras de uma riqueza extraordinária, seja qual for a temática.
Assim como fez todo o sentido que da boca de Sam os primeiros versos tenham sido os de 'A Partir de Agora', tema retirado ao celebrado “Pratica(mente)”, todo ele uma promessa de entrega ao seu People – não só aos fãs, mas também à Chelas que o viu afirmar-se. Chelas, essa área que através do hip-hop foi perdendo bastante da má fama que vinha tendo. Chelas, a magistral – o orgulho de subúrbio, o orgulho no sangue e na identidade. E que também não podia deixar de ser celebrada ao longo do espetáculo, como o foi.
A vasta audiência foi correspondendo como pôde: braços erguidos no ar, em regime de baloiço, acompanhando cada ritmo e cada estrofe que ia sendo cuspida por Sam the Kid e por nomes tão bem conhecidos do rap português como Carlão, Mundo Segundo, Zeg, Sanryse, NBC ou SP. O flow de Sam, acelerado e melódico, foi fazendo disparar os corações. Cada tema era recebido com gritaria furiosa, com a sensação de que se esperou demasiado tempo para que o rapper e produtor pisasse, só por si, o Coliseu. «Vamos viajar», foi uma das primeiras promessas feitas por Sam the Kid, antes de arrancar com o “telefonema” de 'P.S.P.', uma das mais entoadas da noite.
Poucos foram os que permaneceram sentados, e houve mesmo quem erguesse uma muleta bem alto, em êxtase – uma noite destas daria para todas as loucuras. Não que fosse possível permanecer imóvel perante a bateria fortíssima de 'Xeg & Sam' (resgatada ao “velhinho” “Entre(tanto)”, de 1999), ou perante o final jazz de 'O Recado', com o 'tá-se bem! fulminante transformado em grito de guerra pelos indefectíveis.
Se até aí tudo se tinha processado com um misto de alegria e surpresa, a casa veio completamente abaixo perante 'Não Percebes', a mensagem que o hip-hop tem (e terá para sempre) para os seus detratores. Tanto, que precisou de ser reconstruída com dois momentos mais calmos: duas canções dos Orelha Negra, com Sam the Kid a mostrar os samples a partir dos quais elas foram feitas. Entre elas, 'M.I.R.I.A.M.', que deve ser imediatamente mostrada a um tal de Afrika Bambaataa; o norte-americano não precisa de voltar a perder tempo a procurar o beat perfeito, porque ele já existe.
O final, com 'Poetas de Karaoke' (Dizem que cantam hip-hop, mas não dizem nada / Vêm com poesia mas é só fachada, o verso que “matou” dezenas de pseudo-rappers por todo o país) e 'Sendo Assim' foi o culminar de uma noite que, mais que querer ficar na memória, procurou reativar outras tantas e boas memórias – e a nostalgia, sabemo-lo, pode ser algo doce. Sem que do concerto, no entanto, se possa dizer que foi apenas nostálgico. As novas roupagens destes temas antigos, por força da orquestra, não o permitiram. No meio do furacão, Samuel Mira: o puto, que é ao mesmo tempo, e pratica(mente), o CEO de tudo isto. O público gritou, sem sucesso, o seu nome em busca de um encore; mas saiu de lá a pensar fazê-lo em busca de um sentido para a vida.
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