Membro fundador da editora FlorCaveira, Samuel Úria, 38 anos, natural de Tondela, é um dos nomes maiores da sua geração. Comemora hoje um ano do lançamento do seu último álbum, "Carga de Ombro", com um concerto muito especial no teatro Tivoli BBVA. O videoclip de animação de "É preciso que eu diminua", da autoria de Pedro Serrazina, levou para casa um prémio da Monstra. Compôs um tema de raiz para participar no Festival da Canção 2017 que entregou às irmãs Falcão, Catarina e Margarida, as Golden Slumbers. Por aqui, no SAPO24, é o cronista das quartas-feiras desde setembro do ano passado.
Fernando Santos anunciava os convocados para a Taça das Confederações quando lhe ligámos. Tivemos sorte: atendeu prontamente. Quem o conhece diz que não é um homem fácil de ser contactado. Não se falou sobre o facto de Renato Sanches e Éder terem ficado de fora dessa lista, mas outros temas não faltaram. A rede é que nem sempre ajudou. "Vivo em cima dum cemitério índio e coisas estranhas acontecem", disse, já via SMS. Ficou a dúvida se a sério ou a brincar.
Não houve seleção nacional, mas o futebol não faltou. Afinal de contas, o título do seu último trabalho remete imediatamente para esse imaginário. Um trabalho do qual diz fazer um balanço francamente positivo. “Quando lanço um disco estou sempre desprovido de expectativas em relação àquilo que vai ser a receção do público e da crítica”, conta. “Os meus discos, mesmo que às vezes incorram em coisas que não me são características, indo até atrás de fórmulas que são mais ‘foleiras’ e assumindo coisas que não revelam propriamente o bom gosto, são discos muito pessoais na maneira como me descrevo e como me coloco lá. E, nesse sentido, refletem um bocado a minha vida. Logo, deixo de ter expectativas porque é um objeto de personalidade”, explica. “É sempre surpreendente quando as pessoas me acolhem”.
É sempre surpreendente quando as pessoas me acolhem
O concerto será, também devido a essa surpresa, de celebração, que parte da enorme gratidão que sente para com quem o acompanha. Em palco, serão várias as personalidades do mundo musical a fazê-lo: Ana Moura, Manuela Azevedo e as Golden Slumbers, com quem colaborou na edição deste ano do Festival da Canção, são algumas delas. “Havia outras na calha, mas que acabaram por não poder”, esclarece. Ainda que “Carga de Ombro” não conte com muitas colaborações visíveis: os convidados para este seu último disco fazem-no de uma forma mais “escondida”. “Não estão propriamente a fazer duetos comigo, são colaborações mais solitárias. Mas, apesar disso, eu queria fazer um concerto de celebração mais partilhado, pejá-lo de malta com quem eu gostasse de partilhar palco, e com quem nunca o tivesse feito em concertos meus”, afirma. Manel Cruz, que foi uma confirmação de última hora, entra nesse grupo. Bem como as artistas supracitadas. Da banda propriamente dita, farão parte Silas Ferreira (teclas), Tiago Ramos (bateria), Jónatas Pires (guitarra), António Quintino (baixo) e Miguel Ferreira (teclas e guitarra acústica).
O SAPO24 esteve nos ensaios para o concerto deste sábado. Veja algumas imagens
A humildade de Úria ao falar dos seus convidados e dos que o acompanharão em palco é notável. Diz ele que todos os que acorram ao Tivoli poderão escutar as suas canções a serem tocadas “por gente com mais talento” do que o próprio. Mas, ressalva, “também vão ter de levar comigo na velha forma tradicional”. A festa, essa, está garantida. Até porque, mais do que o próprio “Carga de Ombro”, se irá celebrar “o não-esgotamento das canções, e das fórmulas que elas ainda podem ganhar em palco”. Esperem-se, assim sendo, “novas atitudes em relação a canções que estão a ser tocadas há um ano, e a algumas que já têm quatro ou cinco anos”, visto que estas “também fazem parte de uma carreira que tem que se intrometer nesta gratidão e nesta celebração”.
Que quer Úria dizer, no entanto, com “esgotamento”? Acontece, explica o músico, quando uma canção “está ligada, sobretudo, à promoção de um disco, ou a um determinado período de tempo”. Não se espere, por isso, muita cedência no que toca a “discos pedidos”. “Acho fixe que as canções continuem a ser tocadas à revelia do público, porque até para quem as fez elas podem ganhar novos significados”, diz, criando assim “uma nova comunhão com a audiência que descobre as canções e que quer que elas se repitam, mas de uma maneira diferente, fora desse espaço enclausurado que é o conceito de um disco ou até de uma carreira”.
Acho fixe que as canções continuem a ser tocadas à revelia do público, porque até para quem as fez elas podem ganhar novos significados
E dá um exemplo recente: “eu não sei, por exemplo, se o Salvador Sobral se vai fartar de cantar a ‘Amar Pelos Dois’, porque é uma canção que está muito creditada ao início de 2017 e ao fenómeno que foi o Festival da Canção e é o Salvador Sobral”. Fartar-se-á Úria de tocar algum dos seus próprios temas? Sim e não. “Eu não tenho nenhum grande sucesso que esteja conotado com o que seja, mas tenho canções que estão muito próximas de discos, de épocas ou de gostos. E é bom quando eu percebo que as pessoas gostam de uma determinada música, não necessariamente por ela fazer parte de um sucesso fugaz; posso tentar reinventá-la, dando-lhe novas conotações ou intérpretes”, contribuindo assim para o não-esgotamento das mesmas.
Uma dessas músicas, “Lenço Enxuto”, na qual conta com a colaboração do ex-Ornatos Violeta, é exemplo disso. “Tenho percebido que há pessoas que querem ouvir essa canção e que não estão à espera que seja sempre um dueto”, afirma. Será precisamente esse o tema que Manel Cruz interpretará com Samuel Úria, logo à noite, pela primeira vez em Lisboa. “Nesse sentido, a roupagem volta a ser a inicial, mas esse é um ciclo que não é frequente. [“Lenço Enxuto”] É uma coisa que não teve um sucesso extraordinário, mas que fez um percurso discreto e sólido. Poder recuperar o seu sentido original não é recuperar um passado ultrapassado, mas sim um passado que pode ser revigorado”, justifica.
Desde setembro de 2016 que o músico se tem dedicado também às crónicas, sendo colaborador habitual do SAPO24. Uma experiência que o tem deixado bastante agradado, até porque o feedback recebido tem sido extremamente positivo. “Também já recebi hate mail [mensagens insultuosas por e-mail], quando escrevi sobre o José Sócrates”, conta, entre risos. No seu todo, o que mais o agrada nesta sua faceta de cronista é o facto de ainda não ter sido “despedido”. “Tem sido muito gratificante ainda não ter recebido aquele e-mail a dizer ‘deixa de escrever’ ou ‘não podemos contar mais contigo’”, brinca.
Até porque o seu objetivo, com as suas crónicas, não é o de agradar a toda a gente. “Não tenho apostado nisso e nem me refiro aos assuntos abordados, mas à forma como me dirijo a alguns deles. Tenho sido palavroso ou intricado porque sinto que, na altura, tenho que o ser. Perceber que tenho essa liberdade de escrever já é uma grande vitória”, comenta.
A escrita tem, também, potenciado um certo sentido de disciplina. E de fuga. “Tenho andado, sobretudo, a promover os meus discos – e fico um bocado farto de falar sobre mim e de fazer uma revisão às canções, quando elas próprias são uma revisão daquilo que penso”, diz. “É mesmo libertador poder voltar ao formato em que opino sobre coisas, e no qual não estou limitado a nenhuma cartilha ou temática. Navego ao sabor não só da atualidade mas do meu próprio critério díspar e caótico”. As reações dos seus leitores fazem com que Úria se sinta “grato, por perceber que há gente com paciência [para o ler], mesmo quando escrevo coisas em que estou a tentar testar a paciência das pessoas”, explica.
Gratidão: é esta a palavra que mais sobressai durante a nossa conversa com o músico. E tal tem uma razão de ser, evidentemente. “Isto pode soar a um discurso feel good, do género ‘gostem de mim, porque sou um miúdo que estou aqui muito contente com o que me estão a dar’. Mas é genuinamente verdade. Eu vivo exatamente aquilo que mais gosto de fazer, o que para mim é quase impensável”, justifica.
Perceber que o meu suporte parte de gente que nem conheço deixa-me, para além de grato, estupidamente feliz e reconhecido
Não há lugar para o pessimismo na forma de estar de Samuel Úria, mas talvez alguma auto-depreciação. “Vivo aquilo de que mais gosto e acho que não o mereço. É de desconfiar... E há um caudal de gente generosa a elogiar o que fazes, e a patrociná-lo”. Posto isto, seria de todo impossível não sentir gratidão pelo que tem, ele que se descreve ainda como “uma pessoa extremamente feliz, e grata a quem me proporciona essa felicidade” – tanto no que diz respeito aos rostos familiares como aos mais anónimos. “Perceber que o meu suporte parte de gente que nem conheço deixa-me, para além de grato, estupidamente feliz e reconhecido”.
Um reconhecimento que passou, também, pelo facto de ter sido convidado a participar como compositor no Festival da Canção, que acabou ganho por Salvador Sobral (que, como se sabe, encantou a Europa alguns meses depois). O convite para o fazer partiu dos jornalistas Henrique Amaro e Nuno Galopim, que explicaram ao músico o formato novo que pretendiam adotar para o Festival, despoletando a sua imediata anuência. Formato esse que foi, desde o primeiro dia, completamente descomprometido. “A maioria dos autores presentes estava-se um bocado a marimbar – até foi esse o briefing”, graceja. “A Luísa [Sobral, autora de “Amar Pelos Dois”], quando escreveu a canção, não calculava que podia ganhar aquilo”.
O tema com o qual concorreu, “Para Perto”, foi agraciado com a voz das irmãs Golden Slumbers. As irmãs Falcão, Catarina e Margarida, que antes do Festival haviam deixado uma boa impressão em Úria, com uma versão de “É preciso que eu diminua”, segundo single de “Carga de Ombro”. “Gosto bastante do último disco delas, é muito bom. Mas mais do que a ideia de tê-las como intérpretes, no Festival da Canção, percebi que ao levá-las lá poderia iniciar com uma espécie de colaboração que fosse mais permanente”, conta. “Acho que elas têm muito talento, e não me importava de começar ali um futuro no qual podemos ir-nos misturando em palcos, em discos”, remata, afirmando que um dos objetivos é, também, “trazê-las para o meu séquito”.
Um séquito do qual poderiam fazer parte as inúmeras figuras que têm feito da música portuguesa, nos últimos anos, um poço fértil em criatividade. Exemplos, dados pelo próprio Samuel Úria (que em muitos casos foi igualmente influência): “o Éme, as Pega Monstro, o Luís Severo, Filipe Sambado, Primeira Dama”... Que o são através daquilo que o músico descreve como “uma irritação”, em tom jocoso. “Irrita-me aperceber-me da solidez em termos de escrita de canções e de carreira de alguns miúdos, de gente muito nova que está a sair-se com discos muito bons, muito maduros na sua forma de pensar e nas fórmulas que usam para escrever canções, até nas suas referências”, conta.
O futuro da música nacional, se depender desta nova geração, está assegurado. É esse o desejo, e a previsão, de Úria: “tenho quase a certeza que muitos desses miúdos vão singrar de forma mais generalizada. Acho que o panorama musical do futuro não vai estar refém apenas das grandes fórmulas pop, ou apenas dos grandes fadistas, ou apenas da nova injeção de música africana que apela a meninas de boas famílias... Vai passar muito por um ecletismo fixe, e não pobre, como já aconteceu noutros tempos”, garante.
Também por isso, o músico não foge à opinião corrente de que Portugal, enquanto nação, vive um dos melhores períodos das últimas décadas. Contudo, fica o aviso: “espero sinceramente que esta onda de otimismo não seja um balão que está a encher, para que o pessimismo volte quando rebentar”, diz. “Estamos a viver um período raro de pacificação política em Portugal, e esta semana é uma continuação desse recém-descoberto Portugal otimista, que recebe a Madonna e mais umas quantas celebridades... Até por isso tenho estado com os olhos mais virados para o que se passa no Brasil e na Venezuela, onde há imensos portugueses – sendo quase escandaloso o que se tem passado por lá”, refere.
E onde fica o futebol, com o qual iniciámos esta conversa? Muito resumidamente, na “tristeza” de Úria por não poder escrever novamente sobre o “seu” Tondela, que garantiu a manutenção na Primeira Liga, na última jornada do campeonato. “Já escrevi sobre o Tondela e até fiquei quase triste por o ter feito, há umas semanas, no SAPO24, porque queria voltar a fazê-lo. Mas acho que já tinha esgotado assunto... É uma cidade pequena e isso acontece rapidamente”, esclarece. Uma cidade pequena, mas da qual brotou um gigante. E ele, logo, comprová-lo-á uma vez mais.
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