O primeiro bar abriu em 2017, exactamente na altura em que Portugal discutia se a entrada de animais em restaurantes, bares e cafés devia ou não ser permitida. Venceu o sim e a lei acabaria por entrar em vigor em 2018. Verónica magicou e decidiu ir ainda mais longe no conceito: se tem para dono, também tem para "cachorro".
"Há muita gente a trazer animais, sobretudo os cães. Porque é muito engraçado. Os animais de quatro patas vêm quase todos os dias". A história tem todo um enredo, não foi assim "de primeira". Quando abriram o primeiro bar, o Delirium Café , no Chiado, ainda não era permitida a entrada de animais em estabelecimentos comerciais. "Demorámos um tempo a aderir, até porque na altura não tínhamos esplanada", explica Verónica Fernandes, dona das cervejarias.
A esplanada era só um plano B, para o caso de alguma coisa correr mal. Mas depois veio a segunda cervejaria, a Gulden Draak, em Picoas, já estávamos em 2023. "Começou a haver uma certa procura e pensei: vou experimentar e ver como corre. As pessoas começaram a trazer os seus cães e ficam felizes por achar um sítio de que gostam, onde se sentem bem e podem levar o seu animal de estimação. Nunca tivemos problema algum".
Só havia um senão, os donos chegavam e tinham o que beber. E comer também. "Sempre que chegavam pessoas com animais, nós já dávamos uma taça com água. Portanto, de alguma maneira o que fizemos foi desenvolver uma coisa que já fazíamos".
"Agora, os bichos têm direito a cerveja e até a aperitivos para cão"
Curiosa, Verónica foi pesquisar. "E descobri a cerveja para cão que, por acaso, é belga, a Snuffle Dog Beer. Fui procurar saber se conseguiria trazer a marca para Portugal". Conseguiu. Agora, os bichos têm direito a cerveja e até a aperitivos para cão". Se os donos quiserem, também podem comprar kits de cerveja para levar para casa.
Em rigor, a Snuffle não é exactamente uma cerveja, não contém álcool e não é gasosa. Mas é feita a partir de malte, extratos de cevada, frango e, claro, muita água. "É uma bebida para cão, mas também pode ser consumida por gatos. Eu tenho gatos, mas nunca saí com eles, mas já trouxeram aqui também".
Verónica conta que acaba por ser muito divertido, porque os donos depois postam fotografias e vídeos nas redes sociais. "E também enviam para nós". Sempre que somos autorizados, publicamos no Facebook e no Instagram. "O Facebook, mea culpa, às vezes fica mais abandonado, mas o Instagram funciona muito bem".
Beto Neves e Miguel - Beto é o dono, Miguel o cão -, são a prova disso. Saíram para beber uma "geladinha" e comer uns aperitivos e logo outras pessoas quiseram fotografar o animal pachorrento, mas já farto de tanta atenção, a tomar a sua cerveja e a comer snacks. E houve até quem tivesse inveja da situação por não saber que ali eram permitidos animais e garantisse que a próxima saída seria a dois.
Mas a coisa tem ainda mais piada, porque o símbolo da Delirium é um elefante e o da Gulden Draak é um dragão. "Às vezes as pessoas perguntam se somos pet friendy e brincamos: pode trazer se for elefante, dragão, cão ou gato, só não pode trazer ratos e cobras. Porque hoje, nunca se sabe", diz a rir.
De Braga para Lisboa e a viagem não pára aqui
Em 2012, Verónica Fernandes e Neko Pedrosa, parceiros na vida e nos negócios, vieram a Portugal pela primeira vez e adoraram. Chegaram pelo Porto, desceram até Lisboa. Na altura era Inverno, não chegaram a conhecer o sul do país, foram antes para Espanha.
Em 2015, "tive a sensação de que não estava mais feliz no Brasil, sentia-me insegura, queria mudar de ares", confessa Verónica. "Sempre gostei desta coisa das diferenças culturais e tinha muita vontade de viver uma experiência noutro país, mas achava que já não estava na idade, já estava casada e com dois filhos", hoje 12 e 19 anos.
"Mas houve um clique, um chamamento. Lisboa me chamou, Portugal me chamou", conta Verónica. "Temos umas economias, vamos mudar-nos". Chegaram no final de 2015, constituíram juridicamente a empresa e voltaram para o Brasil para pedir o visto de residência. Foi uma migração familiar, veio a mãe, veio a irmã e a cunhada, que tem cidadania alemã, vieram todos e estabeleceram-se em Braga em 2016.
"A ideia foi sempre abrir um espaço de cervejas, porque o Neko tinha trabalhado com isso em Itália, tinha tido um bar já com vinte torneiras, na altura com sócios italianos e numa época em que a diversidade nem era muito falada. Eram cervejas alemãs".
Já em Portugal, entraram em contacto com a marca Delirium, na Bélgica, onde já existe o Delirium Café. "Porque tinha uma identidade parecida com aquilo que queríamos; era um bar que tinha uma grande quantidade de cervejas, diferenciada, com um ambiente giro e relaxado, o que tínhamos idealizado".
Sem saber muito bem o que esperar, se era ou não viável, "deu tudo certo". Primeiro "veio um representante ao Porto, tivemos uma boa conversa, depois fomos à Bélgica e fechamos negócio". Não é exactamente um franchising, é mais "uma parceria".
O Delirium Café abriu há sete anos, no final de Janeiro, "ainda a apalpar terreno, porque não éramos conhecidos em Portugal". Não foi sempre fácil, um segundo andar de uma rua com escadinhas no Chiado, levou um tempo até as pessoas descobrirem o sítio e o negócio começar a andar sozinho.
Além disso, no terceiro ano, supostamente quando as coisas iam finalmente começar a andar, chegou a pandemia. "Primeiro tínhamos de fechar às oito da noite, depois às 22:30". Nos três meses e meio de recolhimento fecharam completamente. "Recorremos às ajudas do Estado, tivemos esse apoio. Tudo teve de ser revisto, os planos tiveram de ser revistos. Foi difícil, mas sobrevivemos".
Duas casas, 40 empregados
Em 2023, fará um ano no dia 2 de Março, abriram nova casa, a Gulden Draak, também em Lisboa. Hoje empregam quase quarenta pessoas nas duas cervejarias. Se vão parar por aqui? "A 'gentchi' não pára", afiança com uma gargalhada. "Já tem uma coisinha apontada para 2024", em Lisboa, mas ainda está no segredo dos deuses.
Avançar nem sempre é fácil. Foi em Janeiro de 2020 que Verónica foi à Bélgica, a convite da Delirium, para criar uma cerveja para o Dia Internacional da Mulher. "A experiência foi fantástica, passámos o dia a juntar ingredientes, mulheres de várias partes do mundo, orientadas por um mestre cervejeiro e com a receita. mulheres de várias partes do mundo, uma experiência super bacana".
Foi então que a Gulden Draak, cuja cerveja Verónica e Neko já comercializavam, os convidou para uma visita à sua fábrica, localizada ali perto. "Já tínhamos conhecido outras, decidimos ir lá também, pensando que seria apenas uma visita de cortesia. Mas aí já houve um namoro", conta.
"A Gulden Draak já conhecia o nosso trabalho em Portugal, gostavam do que estávamos a fazer com a Delirium. E sinalizaram a vontade de fazer alguma coisa connosco". Tal foi a pontaria: estávamos em janeiro, em março a pandemia fechou tudo.
O tempo não fez passar a vontade. Em 2022, "o bichinho voltou". As coisas estavam mais calmas, decidiram voltar a pensar nisso. "Entrámos em contacto com a marca". "Os preços de tudo já estavam mais altos, mas achámos este espaço [um antigo rodízio de carnes], que é muito bom, mas estava completamente descaracterizado: tectos rebaixados, não tinha clarabóias, não entrava luz natural, não tinha os desníveis que tem agora nem os arcos, nem o soalho de madeira. Fizemos uma obra grande mesmo".
Verónica tem formação em Direito e em Teatro. No Brasil, trabalhava com produção de arte. Daí, de certa forma, o jeito para a cenografia. E o resultado da transformação do espaço. "O posicionamento da Gulden Draak é diferente do da Delirium, que é uma coisa mais relaxada, irreverente, como se pode ver até pelo seu símbolo, um elefante cor-de-rosa. A Gulden Draak tem um posicionamento mais arrumadinho, mais sofisticado e as cores são o preto, o vermelho e o branco, que não são muito fáceis de trabalhar em termos de decoração, para ficar uma coisa feia e pesada não custa", descreve.
Mas não ficou, pelo contrário. O espaço é quente e acolhedor. "Quis criar a minha imagem dessa marca, como eu a entendia. Claro que lhes mostrei as ideias, os materiais. Pensei nas cores deles, mas também pensei em Portugal e lembrei-me dos azulejos. Como os azulejos aqui são muito para o azul, tive a ideia do mosaico e comecei a pesquisar materiais de várias texturas e com as cores da marca, o preto e branco a pontoar com o vermelho".
Precisava ainda de uma peça "dramática", "um elemento que chamasse a atenção. E criei as luminárias com os copos da marca, que são o ovo do dragão. Fica bonito à noite, mas também de dia, quando a luz natural bate nos vidros faz um efeito bonito". Aqui teve a ajuda de um iluminador premiado no Rio, hoje professor na Universidade de Évora, Renato Machado. Também houve uma altura em que Verónica pensou que não seria capaz de continuar, "não sou decoradora de interiores profissional, sou meio autodidacta". Mas aconteceu e no dia 2 de Março já faz um ano.
O bar-restaurante Gulden Draak aposta nas cervejas, mas não só. São 450 metros quadrados dedicados a 50 cervejas de pressão (50 torneiras), e a uma vasta carta de bebidas, entre vinhos, cocktails e outras bebidas, além de uma carta variada de entradas para picar ou pratos completos, incluindo almoço executivo e happy hours.
Nas cervejas fazem curadoria própria, procuram as melhores do mundo e têm sempre duas ou três marcas portuguesas. "No Delirium , quando abrimos, a empresa que fazia a importação não queria que tivéssemos cerveja nacional, porque não vendiam. Mas brigámos por isso. Então vamos abrir um bar em Portugal e não posso ter cerveja portuguesa?" E tem. "É interessante, porque no Delirium Café recebemos muitos turistas. A Urraca foi feita lá e a casa acaba por ser uma montra para o mundo do que produz cá".
As cervejas variam e algumas chegam a ter um grau alcoólico de 7.5%, 10.5% ou até 11.8%. "São cervejas encorpadas, de sabores encorpados, uma até envelhecida em barris de Bourbon". Dessa área, Neko é o especialista. Destaca-se a Fourchette, garfo em francês, uma cerveja feita por medida pela Gulden Draak para um evento de chefes da Michelin na Bélgica, ou a De Garre, pela raridade.
"O Delirium Café é como o filho mais velho, o pai e a mãe já podem deixá-lo só por umas horas, já tem uma vida própria, os pais não precisam de estar lá o tempo inteiro. Mas é filho, tem de ficar de olho, tem de dar puxão de orelhas se for preciso, chamar a atenção", diz com algum orgulho. Agora a atenção é dedicada ao novo espaço, o Gulden Draak.
"Ter uma equipa e mantê-la não é fácil". Nesta fase, Verónica já tem duas pessoas que encabeçam cada equipa e que são da sua confiança. "Já dá um conforto, saber que as pessoas estão ali, vestem a camisola e querem que dê certo", desabafa.
Garantir uma lista de empregados também não é fácil. "Este sector tem movimentos que são naturais, sabemos que na restauração muita gente está de passagem. E tudo bem, tenho o maior orgulho de já ter dado o primeiro emprego a vários miúdos, que muitas vezes voltam". Foi o caso da Inês, filha de um militar a quem comprou umas talhas de azeite antigas. "Estava a estudar e esteve connosco um ano e meio, deixava os miúdos doidos. É linda e sabe que é linda. Hoje mora em Berlim e trabalha na área dela, mas vem visitar-nos", recorda.
Tem gente do Brasil "que esteve cá e voltou para lá", gente nova que procura um trabalho temporário, muitas vezes estão a estudar e depois regressam às terras de origem. "No Gulden Draak somos mais flexíveis, mas no Delirium têm de falar inglês muito bem. Mas são pessoas preparadas". Se há mais estrangeiros a pedir emprego? "Agora, por acaso, tenho mais portugueses empregados, mas não aparecem muito. Não contrato quem não fale português, já tive italianos que falavam português, um chileno que arranhava português, ainda assim estava no bar, não atendia às mesas. Sempre tentei ter portugueses, mas nem sempre consigo".
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