A festa começa a tomar forma poucos minutos antes do início do concerto, com o público, numeroso, já a testar a ebulição que se seguiria através de gritos, saltos, selfies e o que mais. Era este o nome mais aguardado da edição deste ano do Super Bock Super Rock: Migos, trio rap oriundo de Atlanta que tem dominado não só as tabelas de vendas como o subgénero hip-hop mais conhecido como trap (“armadilha”, em inglês), fenómeno de popularidade por todo o mundo e que vai buscar o seu nome ao jargão utilizado naquela cidade norte-americana para descrever um local onde são produzidos e vendidos todo o tipo de narcóticos.
Narcótica é, também, a música: batida quebrada, melodia arrastada, adlibs (pequenas expressões repetidas largas vezes e que conferem alguma comicidade à coisa, como skkrt skkrt, cujo significado é provavelmente não significar nada), versos que mais que serem cantados ou rimados são balbuciados – o que lhe valeu um epíteto mais ou menos insultuoso, o de mumble rap. Discussões que ficam para outras ocasiões, até porque, como eles próprios cantam em 'Narcos', um dos seus temas mais celebrados, este é rap verdadeiro: nada tem de balbuciação.
A festa, dizíamos, começou a tomar forma ainda antes de os Migos – Offset, Quavo e Takeoff, todos tendo relações familiares entre si – pisarem o palco, naquela que foi a sua estreia por Portugal. Pouco passava da hora marcada quando o DJ que os acompanha, Durel, começa a disparar ritmos e canções outras, como forma de animar um público que possivelmente não precisaria disso; a enchente foi tal que esvaziou quase que por completo as demais áreas do recinto do festival. O grito de guerra, que foi ecoando ao longo de uma hora de espetáculo: “se estiverem prontos para os Migos, digam yessir!”.
Não seriam talvez precisos os habituais artifícios pop, como o muito fumo e as chamas que foram brotando da frente de palco, para encantar uma audiência que já sabia à partida o que esperar. O trio foi-se revezando entre os versos, tal como nos discos, entre o autotune, entre as backtracks que os iam acompanhando de forma a não cansarem muito a voz (imaginamos nós). 'MotorSport', logo a abrir, fez disparar as emoções, a dança, os movimentos de braços de um gangue. Não há aqui mensagem; só a promessa de um bocado bem passado. Isso, por vezes, é mais do que suficiente.
A dada altura, e a pedido da banda, abrem-se dois círculos destinados ao mosh, ideia que o hip-hop roubou à cultura punk e metal e que foi prontamente concretizada. Dezenas de corpos chocam entre si, levantando a muita poeira presente no recinto. Parece difícil encontrar quem não saiba na ponta da língua todos os versos das canções dos Migos; 'Walk It Talk It' foi disso exemplo, já depois de Offset lhes ter pedido para que erguessem um manguito “se não se importarem com o que pensam de vocês”.
Foi notória a relação entre banda e público, o que por vezes ia prejudicando o concerto, com tantas e tantas pausas entre temas (ainda assim, de forma não tão irritante quanto é costume neste tipo de concertos). Offset, em particular, mostrou-se bastante interventivo: “se gostarem da vossa mamã, gritem 'mamã'”... e depressa se ouve o primeiro verso de 'T-Shirt', canção soberba que até Janelle Monáe dançou, na régie. Ao espetáculo não faltou sequer 'Bad and Boujee', o maior dos seus êxitos, nem uma bandeira dos Estados Unidos, erguida a dada altura por um fã. Só faltou um final que não fosse anticlimático: o concerto acaba com DJ Durel novamente a lançar algumas faixas e a sair rapidamente de cena, já depois de o trio ter abandonado o palco e quando muitos clamavam por um encore. Mas haverá espaço para isso numa nova vinda a Portugal, que se espera que aconteça o mais depressa possível.
Enquanto não dançou ao som dos Migos, Janelle Monáe deu um espetáculo pop riquíssimo em nova incursão por terras lusas, naquela que foi a última data da digressão em torno de “Dirty Computer”, álbum editado em 2018. A norte-americana, afro-andróide tornada afro-humana (ou vice-versa), trouxe algum futurismo (estético, que bebe muito das tecnologias atuais e vindouras) a um festival que se fez sobretudo do presente. Rodeada pelas suas bailarinas, Monáe entrou ao palco ao som de “Assim Falou Zaratustra”, de Strauss, e do icónico discurso de Martin Luther King sobre o seu maior sonho (crianças negras e brancas, livres e de mãos dadas), até começar com 'Crazy, Classic, Life', tema desse seu último trabalho.
A experiência “Dirty Computer” fez-se através de jogos cénicos implicando uma ou outra mudança de figurino, como quando veste um manto e se senta num trono que é seu (rainha, claro), através das coreografias que mostrou em palco e através de versos tão feministas, certeiros e hilários quanto “deixem que a vagina tenha o seu monólogo”, de 'Django Jane'. Em 'Electric Lady', permitiu ao público cantar parte da letra, a quem depois pediu para que erguesse bem alto as luzes dos telemóveis. “O amor é luz”, garantiu.
Durante uma hora sobretudo mexida, a cantora ainda teve tempo para mostrar alguns dos seus dotes à guitarra (em 'Make Me Feel'), antes de terminar com 'Cold War' (em formato mais intimista e menos dançável do que o registo em disco), onde apelou aos direitos das mulheres, dos negros, dos emigrantes, da população LGBTQ+ e ao impeachment de Donald Trump. Com a energia de 'Tightrope', despediu-se de cena ao som desse funk moderno que é, também, uma das suas melhores canções. “Grandiosa” é o adjetivo certo.
Grandioso foi também Masego, e o público que encheu o palco EDP para o ver. Logo a abrir o concerto, um ás de trunfo: 'Tadow', tema escrito em parceria com FKJ (que atuou neste mesmo festival na noite anterior), e que tem rodado insistentemente nas rádios que importam, com um saxofone smooth jazz a abrir e logo depois um R&B romântico e sensual, com uma pequena palavra em eco dando soltura à coisa.
De novo em Portugal para apresentar “Lady Lady”, o seu álbum de estreia (já o havia feito na última edição do Super Bock Em Stock), o músico jamaicano foi surpreendendo cada vez mais à medida que o concerto avançava. Houve ali toques de D'Angelo, mas mais mexido, movimentos de dança de fazer inveja a qualquer um (a dada altura arrisca um moonwalk à Michael Jackson, 50 anos após o Homem ter pisado a Lua), temas modernos de amores impossíveis tornados possíveis ('Sego Hotline', onde ela é iPhone e ele Android...), rosas atiradas às muitas mulheres ali presentes e, sobretudo, uma canção construída de raiz através de beatboxing e máquinas de loops, quase um Ed Sheeran da soul. Não fosse a forte concorrência e seria dele o Super Bock Super Rock.
Fora do contexto do cartaz deste último dia, mais dedicado à música de expressão urbana e afro-americana, os Superorganism assinaram um dos concertos mais divertidos do festival. Ao todo, sete pessoas em palco e uma certa irreverência infantil, plasticina pop à espera de ser moldada, com uma pitada de psicadelismo para adocicar a coisa. Fazem lembrar os mágicos Saint Etienne, mestres na construção de uma identidade pop sem ser popularucha. Isso, ou uma espécie de 'Baby Shark' para indies. E isto, atenção, é um elogio.
Com sete pessoas em palco (são oito, ao todo), o foco poderia perder-se não fosse por Orono Noguchi, pequena vocalista de apenas 18 anos que mal parece ter entrado na puberdade mas que, armada com a sua capa de super-heroína, canta e encanta como gente grande. É ela a grande mestre de cerimónias do espetáculo Superorganism: mete-se com o público (lê ela numa t-shirt: “a tua banda favorita não presta”. “Sou eu a tua banda favorita”, a pergunta que impôs), toca guitarra, faz piadas auto-depreciativas e referências mais juvenis, como à plataforma Twitch.tv.
A música, eletrónica, fofinha, bizarra, roqueira e sempre pop, até pareceu o menos – mas há boas, excelentes canções nos Superorganism, como 'Everybody Wants to Be Famous', até ver o seu grande êxito. Tamanha brincadeira de criança (e havia pelo menos duas a assistir ao concerto, às cavalitas dos pais) só poderia resultar nisto: um sorriso largo em todos aqueles que a ela assistiram. Por tudo e mais alguma coisa, pela piada com os chapéus de cowboy que se andava a distribuir pelo festival (“é alguma mania com a 'Old Town Road'?, questionou), pela sua postura em palco e pelo tamanho da sua coolness, arriscamos dizer: Orono Noguchi é a melhor frontwoman da música de hoje em dia. Os melhores perfumes vêm nos menores frascos.
O Super Bock Super Rock regressa em 2020, e já há datas: 16, 17 e 18 de julho.
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