Durante o período de confinamento, as redes sociais permitiram às grandes estrelas aliviar o seu próprio stress, e o dos fãs, com espetáculos virtuais e/ou versões caseiras dos seus temas, à distância ou presencialmente, adotando todos os cuidados possíveis para que um vírus insidioso não os afetasse. Os Rolling Stones fizeram-no. Os Metallica fizeram-no. E Post Malone fê-lo, num evento de angariação de fundos para o combate à covid-19, em abril de 2020. Tornado famoso através do seu rap mais pop, destacando-se temas como 'Rockstar' ou 'Circles', Post Malone conseguiu juntar nesse evento a "módica" quantia de 500 mil dólares e granjeou o amor e o respeito de todos quantos o viram atuar.
Fê-lo quando tudo apontava para que a sua atuação fosse um desastre. E porquê? Porque o que Post Malone levou a essa angariação de fundos não foi uma apresentação dos seus próprios temas, mas um set inteiramente composto por canções dos Nirvana, ajudado por Travis Barker, Brian Lee e Nick Mack. As gentes do rock torceram o nariz: um gajo do rap - e nem sequer do rap decente - a tocar Nirvana? O escândalo, o horror, a ignomínia. Uma vergonha, até. Inadmissível. Uma afronta aos valores do rock, sejam eles quais forem. Mas até essas gentes tiveram que erguer a cabeça em sinal de aprovação. O que Post Malone fez nessa atuação, tão enérgica quanto os Nirvana originais, tão punk quanto a cena que alimentou Seattle, não foi nada menos que extraordinário, sinal de que talvez tenha escolhido a carreira errada. Se todo o concerto merece ser visto e revisto, quem estiver numa de São Tomé só precisa de ir ouvir 'School', onde Post Malone não se limita a imitar Kurt Cobain mas sim a recuperar o seu espírito do mundo dos mortos. Poucos conseguiram imitar a voz do malogrado vocalista. O rapper não a imitou: encarnou-a.
Custa por isso perceber como é que Post Malone ainda não se lembrou de formar uma banda rock e dar um melhor uso à voz extraordinária que possui para o género. Nem é como se estivesse apenas a seguir uma estética antiga para vender discos agora: o rapper é um genuíno entusiasta dessas sonoridades mais pesadas e rasgadas, tendo convidado Ozzy Osbourne para colaborar em "Hollywood's Bleeding", álbum de 2019, e tendo mais recentemente feito uma versão de 'Better Man', dos Pearl Jam. Mas bastaram poucos segundos para que essa incompreensão se esfumasse no ar. Assim que entra, abandonado no Palco Mundo (nem banda, nem DJ), armado apenas de um microfone, de um cigarro e de um copo cheio, Post Malone conquista-nos de imediato com a sua pinta de estrela rock: as tatuagens, o metal na boca, a t-shirt preta e as Converse. E depois veio a garganta, o grito roufenho sob uma batida trap, o punk do século XXI contido em 'Wow.', tema que escolheu para abrir o espetáculo.
A atitude faz muita diferença quando a música não tem qualquer vertigem de maior. «Estou aqui para tocar música e ficar todo cego», atirou logo a seguir, para delírio geral de um público composto por uma maioria que não tinha sequer idade legal para consumir bebidas alcoólicas. Fê-lo o norte-americano por eles, e pareceu ter surtido efeito: foi um Post Malone incrivelmente jovial aquele que foi interpretando êxito atrás de êxito, como 'Better Now' ou 'Circles', tema que é «sobre o meu amor por triângulos». O bom humor não lhe faltou, sobretudo o auto-depreciativo, explicado naquela dancinha pateta que por vezes ia fazendo sem qualquer vergonha disso (mas temos de ter vergonha de ser felizes?), ou na tirada que mandou antes de pegar numa guitarra acústica para tocar 'Go Flex' e 'Stay': «podem ir fazer xixi porque esta é a parte mais aborrecida do concerto»...
Sempre muito agradecido entre temas, não escondeu alguma emoção, mesmo que essa possa fazer parte de um espetáculo minimamente planeado. Platitudes como «isto é a cena mais fixe que já fiz na vida» ou «amo-vos mais que à vida», vindas dele, soavam verdadeiras, e num concerto deste género é sobretudo a ilusão que importa (a ilusão alimenta o sonho). E o rock? O rock veio com 'Take What You Want', a tal canção com Ozzy Osbourne (que ninguém aplaudiu, porque são jovens, Senhor, perdoai-lhes que eles não sabem), o rosto do Príncipe das Trevas nos ecrãs laterais e um mar de chamas à frente do rapper. Veio com os berros que Post Malone mandou em 'Rockstar', que acaba com o próprio a partir a guitarra que havia tocado pouco antes. Veio com 'Congratulations', que fechou o concerto com fogo de artifício e com uma verdadeira volta olímpica pelo recinto, cumprimentando todos quantos encontrava. E veio com o simples facto de ter tocado apenas uma hora, deixando toda a gente a salivar por muito mais. As grandes estrelas rock são assim: dão-nos sede.
Anitta voltou a pisar o Palco Mundo do Rock In Rio, agora como estrela internacional e não apenas do seu Brasil - o mesmo de 'Mas Que Nada', a canção que se escuta antes da sua entrada em palco, chegando montada em duas rodas. A prová-lo estava a maior enchente desta edição do festival, que deixou a efusividade à solta logo com 'Onda Diferente', canção que Anitta colocou na frente de um alinhamento que foi sobretudo uma manta de retalhos baile funk: 31 canções numa hora apenas, todas juntas como num qualquer DJ set.
Essa aceleração talvez tenha tornado, paradoxalmente, aquilo que poderia ter sido um enorme espetáculo em algo mais morno (e não foi por falta de fogos ou fogosas, em palco), ao contrário daquilo a que assistimos em 2018. Para a multidão pouco importou: sucessos como 'Sua Cara', 'No Chão Novinha' e 'Show Das Poderosas', esta a fechar, foram cantados e dançados com o êxtase que se lhes impõe. Pelo meio, os seus dançarinos apresentaram uma aula de capoeira imprópria para cardíacos, a própria Anitta fez soar as gargantas sempre que se rebolava no chão, Rebecca (que atuou horas antes neste mesmo Rock In Rio) apareceu para abanar a bunda, e o momento mais techno do concerto ('Rave De Favela') contou com a sua família em palco. Não foi extraordinário, mas uma rainha não tem que se esforçar muito.
Nome insuflado em palco, banda soul/funk cujo propósito é o de alimentar as boas vibrações e um pézinho ou outro de dança, os HMB abriram o Palco Mundo em ritmo de festa. E a festa, dizem-nos, está a acontecer lá no céu, palavras que dão o título ao segundo tema que apresentaram numa tarde onde a poeira não parecia querer dar tréguas. Pese embora a vontade e alegria de Héber Marques, o público não se mostrou tão interessado quanto isso em aproveitar a sonoridade de uma banda coesa. Talvez até demasiado: o funk dos HMB pode não conter erros, mas também não contém perigo (que é como quem diz: suor e entusiasmo, como exemplificado por James Brown ou pelos Parliament/Funkadelic). Chega até a ser óbvio, como confirmado pelas interpolações, a dada altura, de 'Another Star', de Stevie Wonder, e do clássico 'Apache'. Só com o gospel lento de 'Peito', cantado pelos presentes, é que se sentiu alguma energia coletiva. De resto era só quando o vocalista os incentivava. No entanto, pode ser que sigam a sua lição final: «se nós estamos aqui [a tocar], vocês também conseguem». Com certeza que sim.
Baudrillard descreveu a transformação da imagem em simulacro de acordo com quatro etapas: a imagem ela própria, real (Jason Derulo a cantar), a perversão dessa mesma realidade (Jason Derulo a fingir que canta), a ausência de realidade (a banda de Jason Derulo a fingir que toca) e o simulacro final (Jason Derulo e banda a fingirem que dão um concerto ao vivo). Se os Black Eyed Peas foram ofensivos, Jason Derulo elevou-o a cem. Tirando os b-boys e b-girls, as chamas e os jatos de fumo, e o facto de estar a acontecer em cima de um palco (quando poderia perfeitamente estar a acontecer numa feira de horrores e continuar a fazer sentido), nada do que aqui tivemos se assemelhou a um espetáculo pop. Teve, no entanto, muitas semelhanças com o espetáculo como definido pelos situacionistas, sobretudo quando Derulo afirma que vai apresentar um tema novo e pede ao público adolescente presente para «erguer bem alto os telemóveis e tornar aquele momento viral». Como nenhum desses adolescentes entendeu que estava a ser manipulado para fazer publicidade gratuita, lá se ergueram os telemóveis. Houve aqui algo que se safasse? Nem a "versão" de 'Con Te Partirò', nem algumas inanidades sobre o Rock In Rio ditas em modo autotune. Absolutamente nada.
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