Partindo dos números oficiais da Amnistia Internacional, que cifra em 153 milhões o total de crianças escravas no planeta, Maria João Luís construiu uma peça para denunciar esta “dura realidade” “de que todos acabam por ser cúmplices, mesmo sem que se apercebam”, como disse à agência Lusa.
O neorrealismo de “Esteiros”, de Soeiro Pereira Gomes, foi ponto de partida para a construção do drama, elaborado igualmente com os textos “Em homenagem aos nossos empregados”, de Mickael de Oliveira, e “A Gaivota”, de Anton Tchekov, afirmou a atriz e encenadora.
A partir da necessidade de “voltar à terra, à infância e adolescência”, numa viagem de retorno em que se cruzou com “a luta dos pobres”, Maria João Luís constrói em “150 milhões de escravos” uma peça que obriga o espetador a interrogar-se com frequência se não faz parte daquele mundo burguês, alheado, convencido de que tudo é capaz, apenas para obter os seus intentos.
Numa peça em que a atriz “leva” também ao palco fragmentos de Artur Rimbaud, utilizando a inquietude característica do escritor francês para pôr os atores a expressarem as suas opiniões pessoais sobre a escravatura infantil, Maria João Luís acaba por admitir que, a “determinada altura, sentiu que ninguém se iliba de culpa, desta coisa medonha”.
“Sou cúmplice, porque sou aquela que compra a camisola em que miúdos trabalharam e que compra chocolate, cuja apanha de cacau é quase toda feita por miúdos”, afirmou.
Levar as pessoas a questionarem-se sobre a sua cumplicidade com esta realidade violentíssima dos tempos modernos, foi outro dos eixos que norteou o trabalho de Maria João Luís.
A ação de “150 milhões de escravos” centra-se numa herdade com trabalhadores clandestinos, onde, a determinada altura, morre um menor de idade. Como o proprietário tem aspirações políticas e recusa consequências do incidente, todos os trabalhadores acabam mortos, para que não haja testemunhas.
“O que se passa naquela exploração agrícola não difere muito da realidade, porque quem explora a escravatura infantil é capaz de tudo. São grupos capazes de tudo”, sublinhou a atriz.
Este trabalho foi ainda, segundo a encenadora, muito duro, já que todos os dias os atores diziam “eu não posso estar a dizer isto, eu não sou isto”. “Daí que fosse preciso que esta posição dos atores também estivesse na peça. Por isso fui buscar o Rimbaud”, precisou, sublinhando que “era preciso trazer essa zona sanguínea ao espetáculo”.
A interpretação está a cargo de Beatriz Godinho, Catarina Rôlo Salgueiro, Emanuel Arada, Ivo Alexandre, João Saboga, José Leite, Hélder Agapito, Lígia Soares e Teresa Sobral.
A cenografia é de Ângela Rocha, o vídeo, de Inês Oliveira, o movimento, de Paula Careto, e o desenho de som e de luz de José Peixoto e Pedro Domingos, respetivamente.
Coproduzida pelo Teatro da Trindade INATEL e pelo Teatro da Terra, em parceria com a Câmara Municipal de Ponte de Sor e o Museu do Neorrealismo, a peça vai estar em cena a partir de quinta-feira, até 28 de janeiro, com espetáculos de quarta-feira a sábado, às 21:30, e aos domingos, às 16:30.
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