Hoje fazer chamadas é apenas uma das coisas que se pode fazer com um telemóvel e não arrisco muito se disser que nem é a mais importante. As mensagens escritas, primeiro, e as fotografias, depois, ganharam terreno a olhos vistos face à comunicação por voz. Só dentro do serviço whatsapp, o número de mensagens trocadas num só dia equivale, em volume, a dezenas de exemplares de toda a obra que Platão escreveu durante a longa vida que teve. O filósofo grego, pilar da cultura e pensamento occidental, não poderia conceber tamanha "produção intelectual" quando, no seu jardim, fazia Aristóteles e outros pensarem no sentido da vida. O que diria então Nicéphore Niépce, o primeiro dos fotógrafos, que na vertigem do tempo conseguiu apressadamente ser o primeiro a registar e, sobretudo a preservar com sucesso, a primeira fotografia (foto do grego luz e grafia escrita ou registo) ou melhor dizendo a primeira heliografia (helio do grego sol).
Só tinha passado pouco mais de um quarto do novo século XIX quando Niépce, que vivia em Chalon-sur-Saône, uma cidade muito simpática a cerca de 300 kms de Paris, escolheu como cenário da primeira fotografia histórica a vista da janela mais alta da sua casa. O breve "clique" demorou apenas oito horas, e desde logo resolveu um problema que ainda hoje atormenta fotógrafos de arquitetura ou paisagem: na primeira fotografia de todas, as duas fachadas opostas dos prédios estão igualmente iluminadas, o que só veio dar razão ao velho Galileu, e alegria aos dois vizinhos do fotógrafo primordial. O movimento da terra não tremeu a fotografia, mas fez o sol iluminar os dois lados da imagem. Ficámos também a saber com isto que os dados de geo-referenciação que hoje os telemóveis colocam como
tag
nas fotografias já lá estavam na primeiríssima com outra exatidão. Hoje sabemos sem sombra de dúvidas e justamente pelas sombras da imagem que a janela estaria a virada para norte.
Hoje em oito horas fazem-se milhões de novas fotografias. Com os sensores digitais modernos e uma técnica parecida à utilizada pelo pai da fotografia, estão na moda os timelapses, como podemos ver no genérico da série
House of Cards
. A técnica usada tem mais parecenças que diferenças, trata-se de uma câmara num tripé várias horas a apontar para o mesmo sítio, com a diferença que se vão fazendo vários disparos de forma intervalada e, já agora, também se vê a luz a mudar.
Niépce não era fotógrafo, não só por a fotografia não ter sido inventada ainda, mas porque o seu interesse recaía sobre a litografia, uma técnica que, na altura, já era quase centenária (foi inventada em 1796 por um alemão, Alois Senefelder, um actor e escritor de teatro que queria encontrar uma forma fazer cópias dos seus textos).
Senefelder soube usar esta técnica muito bem. A litografia ou litogravura (lito do grego pedra) consiste em "desenhar" ou gravar numa matriz de pedra calcária, com um lápis gorduroso. As partes da pedra que têm gordura "agarram" a tinta; nas outras, a tinta escorre, e depois basta calcar um papel, por exemplo, em cima da pedra e o desenho será transferido. Uma aplicação prática da velha máxima de que água e azeite não se misturam. Anos mais tarde isto seria muito inspirador para os senhores da Polaroid, pois a técnica das fotografias instantâneas, que hoje temos dificuldade em continuar a justificar face ao digital, é justamente obtidas por transferência.
A história da fotografia é consistente desde o início. Niépce não era dotado de grande mão para o desenho, pelo que precisava de encontrar uma forma de passar para a pedra as imagens, sem depender da habilidade com o lápis . Começou assim a explorar materiais foto-sensíveis, que já se conheciam há muito. Desde a antiguidade que se limpam as pratas de tempos a tempos, porque ficam escuras. Mas só em 1727, um professor de anatomia, Johann Heinrich, provou que os sais de prata escureciam com a luz e não devido ao tempo ou ao calor, desmistificando assim a razão pela qual as empregadas limpavam melhor as pratas no Inverno do que no Verão. Mais sol a entrar pela janela e lá vai a baixela ficar escura em menos tempo.
A solução passou pela utilização de betume judaico; uma espécie de petróleo ou alcatrão que se encontra em estado natural em poças, e que era já utilizado, reza a História, desde os tempos biblícos (Deus mandara a Noé: "Faz para ti uma arca de madeira (...) e a betumarás, por dentro e por fora, com betume. " Génesis 6, 14). O betume judaíco ou alcatrão é um isolante, impermeabilizante, combustível, e também é sensível à luz. Espalhando este betume numa placa, e colocando em cima uma gravura tornada translúcida depois de embebida em oleo, consegue-se a magia da imagem gravada.
O francês Niépce conseguiu passar imagens da gravura para a chapa de cobre através de uma exposição solar demorada, em 1822. Mas isto ainda não era uma fotografia, seria um fotograma, técnica que consiste em obter imagens colocando objectos em cima de superfícies sensibilizadas (papéis fotográficos) e expondo à luz. Durante o movimento surrealista do século XX, o artista Man Ray iria usar exaustivamente esta técnica chamando-lhe inclusivamente Rayogramas.
Mas, para ter fotografias, faltava a câmara escura (do latim
camera obscura)
que, já agora, também já era conhecida há muito, pelo menos desde os tempos de Aristóteles. Se tivermos uma casa ou um tenda toda escura com apenas um pequeno buraco para passar a luz, a imagem do que está fora iluminado irá ver-se projectada invertida na parede oposta à entrada de luz. A câmara obscura era usada para a cartografia ou por pintores. Leonardo Da Vinci usava-a, por exemplo, para desenhar. No século XVI, a câmara é descrita em pormenor num manual pelo italiano Giambattista della Porta e foi amplamente utilizada pelos pintores do renascimento.
A combinação da câmara obscura com os materiais sensíveis à luz também não era exactamente uma invenção de Niépce. Muitos antes dele, no século XVIII, já usavam "snapchats" digamos "avant la lettre". Conseguiam registar imagens, só não conseguiam que elas durassem … exactamente na premissa do moderníssimo Snapchat, ou se vê agora ou não se vê mais. E as imagens não duravam, porque não era conhecida a forma de fazer com que um material sensível à luz, necessário para captar as imagens, deixasse de ser justamente sensivel à luz depois da captura. O que inevitavelmente acontecia era que a imagem, quando vista à luz, ia desaparecendo, enegrecendo por completo. Irónico que quase 200 anos depois uns tipos tenham ficado ricos por inventarem uma forma de mandar mensagens com imagens que desaparecem depois de serem vistas.
Um outro francês, Louis-Jacques-Mandé Daguerre, fazia grandes cenários para teatro, pintados numa papel translúcido e criava alterações de ambientes com jogos de luzes e cor, fabricando atmosferas dramáticas para as peças de teatro e os musicais. Era, portanto, um artista multimédia, e como os de hoje, interessou-se pela fotografia. Daguerre acreditava que os tempos de exposição para obter uma imagem teriam de ser mais curtos, caso contrário não se poderia obter imagens verdadeiras da natureza. Propôs-se então encurtar o tempo, numa primeira fase para meia hora, usando outros materiais e assente num novo conceito que acompanhou a fotografia durante todos os anos até ao digital. De onde vem o termo "revelar"? Daqui. Daguerre não foi o primeiro a inventar a fotografia, mas foi o primeiro a revelá-la.
A sua grande invenção foi o conceito de imagem latente. O que é isto? Daguerre descobriu que, uma vez que o material sensível recebesse uma determinada quantidade de luz, a imagem ficaria formada ainda que invisível, daí latente; depois, quimicamente, poder-se-ia intensificar essa imagem para a tornar visível. Os iões de prata expostos à luz e depois "revelados" cumpriram a função desejada, e um frasco de mercúrio mal fechado num armário completou o resto da descoberta. Os vapores de mercúrio sobre a chapa escureciam as partes expostas à luz. Mas isto não chegava. Daguerre gastou mais dois anos da sua vida com o mesmo problema de Niépce: como encontrar forma impedir que as partes claras da imagem não continuassem a escurecer gradualmente até a imagem se sumir na escuridão?.
Em 1837, Daguerre encontra a solução num lixiviante utilizado na indústria dos curtumes, o hipossulfito de sódio, e em 1839, com o processo afinado e completo, Daguerre e o filho de Niépce vendem os direitos da invenção ao governo francês, em troca de uma pensão vitalícia. O daguerreótipo torna-se então o primeiro processo fotográfico generalizado e espalha-se rapidamente pelo mundo. No mesmo ano, assim que o daguerreótipo é conhecido em Inglaterra, William Henry Fox Talbot, um inglês, apresenta na Academia das Ciências um processo denominado calótipo que apresentava vantagens face ao de Daguerre. Baseava-se num negativo e permitia várias cópias em papel, enquanto o daguerreótipo era apenas uma prova única positiva uma chapa de cobre.
Mais uma nota de paralelismo estes primórdios e os nossos tempos. Durante o segundo e terceiro quartel do séc XIX, o daguerreótipo foi amplamente utilizado, muito embora fotógrafos e inventores continuassem à procura de outro processo que resolvesse alguns problemas do processo francês. Os daguerreótipos geralmente eram guardados em estojos que cabiam na palma da mão e, para se ver a imagem, abria-se a protecção e era necessário encontrar uma posição em que a chapa não fizesse o efeito espelhado. Algo que nos faz lembrar a forma como hoje se vêem fotografias num iphone ao sol.
Ao início, a técnica inglesa não teve a repercussão da inventada em França, mas em duas ou três décadas a situação inverteu-se e, durante todo o século XX, a técnica fotográfica tem por base a invenção de Talbot. É ainda no ano 39 do século XIX que Robert Cornelius, do outro lado do Atlântico, em Filadelfia, na tentativa de experimentar e aperfeiçoar o daguerrotipo, e provavelmente na falta de uma cobaia melhor, senta-se em frente da câmara e faz a primeira selfie ficando imóvel cerca de um minuto. Algo que tinha sido um desafio para a Ellen DeGeneres, na cerimónia dos Óscares de 2014.
Hoje todos fotografam tudo e sobretudo fotografam-se a si mesmos. Se o chapéu vitoriano se tornou a câmara do telemóvel, talvez o sefie stick esteja a tentar impor-se como a bengala daquela época ...
Paulo Rascão é fotógrafo e foi por causa da paixão pela imagem e pela iluminação que se tornou também produtor de vídeo e realizador. É autor e realizador do The Next Big Idea, em exibição na SIC Notícias desde 2012, e há mais de 10 anos que produz filmes e documentários. Fez o curso de cinematografia no King’s College, em Londres, e frequentou a licenciatura em Filosofia da Universidade Católica que tenciona concluir um destes dias.
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